Correio da Cidadania

Em defesa da USP

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Ensino e pesquisa científica e tecnológica de qualidade são fundamentais para o desenvolvimento de qualquer país. Universidades, em especial as públicas, são responsáveis pelos melhores cursos de graduação e de pós-graduação e por parcela significativa da pesquisa científica e tecnológica no Brasil. O ‘produto’ final dessas atividades, que é a geração e transmissão do conhecimento, contribui para o desenvolvimento e a autonomia da sociedade. O conhecimento e tecnologia gerados repercutem diretamente na saúde, educação e nos setores agrícola e industrial, além de subsidiar políticas públicas nessas áreas. As universidades públicas contribuem também para a formação de profissionais especializados, independentes intelectualmente e críticos, de modo que a sociedade seja capaz de refletir e encontrar soluções para seus problemas e de planejar o seu futuro.

 

A Universidade de São Paulo (USP) se destaca nesse sentido. Ela é responsável pela formação de cerca de 30% dos doutores e de 25% dos mestres do país. Além disso, cerca de 25% de toda a produção científica brasileira é gerada nesta universidade (http://rusp.scielo.br/pdf/rusp/n89/05.pdf). Há décadas, a USP vem formando Mestres e Doutores que atuam em instituições de ensino e pesquisa em todas as regiões do Brasil. Esse desempenho vem sendo possível porque a maioria dos docentes se dedica integral e exclusivamente à docência e à pesquisa.

 

Tem-se veiculado que a USP enfrenta dificuldades financeiras, com 105% de seu orçamento comprometido com a folha de pagamento, e que essa crise foi gerada recentemente. Essas dificuldades, lamentavelmente, vêm sendo atribuídas ao crescimento dos salários dos servidores docentes e não docentes, e à prática de gastos excessivos. De tais alegações, a única que resiste a uma análise objetiva dos fatos é a de que a USP enfrenta dificuldades financeiras.

 

As demais não se sustentam e representam conhecidos ataques à universidade pública, como tão bem analisados no artigo “A importância da universidade pública” (Ciência Hoje, 28, No. 165, 2000, http://cienciahoje.uol.com.br/revista-ch/revista-ch-2000/165/pdf_aberto/UNIVERS.PDF), cuja leitura recomendamos enfaticamente.

 

Os indicadores da USP evidenciam com clareza a origem da atual crise financeira: as dificuldades surgiram como consequência da significativa expansão das atividades de ensino de graduação e pós-graduação, de pesquisa, e de cultura e extensão na USP, ao longo dos anos, sem um correspondente aumento na dotação orçamentária por parte do governo do estado de São Paulo.

 

A Tabela abaixo traz alguns desses indicadores da USP, juntamente com a variação do número de servidores docentes e não docentes, assim como uma comparação relativa do salário básico da maioria dos docentes, nos anos de 1989 e 2012.

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Nos últimos 23 anos, enquanto o número de alunos em todos os níveis aumentou 83% a 231% e o número de graduandos, mestrandos e doutorandos aumentou 110% a 307%, o número de docentes aumentou apenas 4%. Além desse incremento nas atividades de ensino, a publicação científica qualificada aumentou 875%. Somam-se a isto as atividades de cultura e extensão que também aumentaram substancialmente, como o número de visitantes nos museus e à Estação Ciência, bem como o atendimento médico e odontológico no Hospital Universitário. Apenas em 2012, foram registrados 1.143.663 atendimentos neste hospital.

 

A maioria dos docentes da USP dedica-se exclusivamente e em tempo integral às atividades de ensino de graduação, pós-graduação, pesquisa, cultura e extensão, além de atividades administrativas. É notável que uma melhora substancial de todos os indicadores dessas atividades tenha ocorrido a despeito do pequeno aumento no número de docentes (4%) e até mesmo uma redução no número de servidores não docentes (-5%). Parte dessa melhora pode estar relacionada ao aumento de 49% no número de doutores no corpo docente e também ao fato de que aumentou a percentagem de docentes em regime de dedicação integral à docência e à pesquisa (18%).

 

A obtenção do título de Doutor, comumente antecedida pelo Mestrado, demanda aproximadamente 6 a 10 anos adicionais de estudo e pesquisa científica e/ou tecnológica após a graduação. Frequentemente, é seguida por 1 a 3 anos de pós-doutorado, realizado no exterior na maioria das vezes. Assim, os indicadores mostram que houve uma melhora na qualificação dos docentes da USP, com benefícios diretos para a qualidade da formação de seus estudantes.

 

Em suma, esses números revelam que a USP fez o que se espera de uma instituição pública: melhorar sua eficiência na utilização dos recursos nela investidos e devolver à sociedade profissionais, serviços e produtos de qualidade.

 

Nesse mesmo período, constata-se que os salários dos docentes sofreram uma redução de 9,5% do seu poder de compra. Portanto, considerando que o número de docentes aumentou apenas 4% no período analisado, que o número de servidores não docentes diminuiu 5%, e que o poder de compra dos salários dos docentes diminuiu 9,5%, é certo que as dificuldades financeiras da USP não decorrem de aumento dos salários. Como teriam surgido, portanto?

 

Em julho de 2005, o Conselho de Reitores das Universidades Estaduais Paulistas (USP, UNICAMP e UNESP) enviou ofício ao governador Geraldo Alckmin solicitando um acréscimo de 0,695% da quota-parte sobre o ICMS líquido destinado às três universidades (Of. CRUESP n° 22/2005 – http://www.sintunesp.org.br/cruesp/Oficio%20CRUESP%20022_2005.pdf). Os Reitores justificaram essa solicitação alegando:

 

1) os esforços bem sucedidos dessas três universidades para expandir a quantidade de vagas na graduação à razão de 5% ao ano entre 2001 e 2005, em plano conjunto com o governo do estado de São Paulo, idealizado em janeiro de 2001;

 

2) a necessidade de providenciar novas salas de aula, laboratórios e equipamentos de infraestrutura para acomodar essa nova população de alunos;

 

3) o fato de que a expansão representaria “uma forte pressão sobre o orçamento das universidades”, portanto, apresentando estimativas de despesas regulares com pessoal e outros custeios para a manutenção das atividades;

 

4) a quantidade de recursos necessários para a incorporação de outras Instituições de Ensino Superior isoladas (FAENQUIL, FAMEMA e FAMERP), incorporação esta solicitada pelo próprio governador Alckmin;

 

5) a existência de dificuldades estruturais decorrentes do modelo de financiamento adotado quando do estabelecimento da autonomia das universidades, que deixou de considerar diversos fatores, entre eles o fato de que “pressões sobre o orçamento advindas do crescimento do quadro de pessoal aposentado estatutário, que continua vinculado à folha de pagamento, e do aumento da demanda de serviços oferecidos pelos hospitais universitários reduziram drasticamente o orçamento de custeio e investimento das três universidades”.

 

Já em 2005, portanto, os reitores das universidades estaduais paulistas alertaram sobre a delicada situação financeira das instituições, após terem executado a expansão planejada em 2001, conjuntamente com o governo estadual. A solicitação de mais recursos não foi atendida pelo governador Alckmin, muito embora o mesmo tenha participado do planejamento que levou à expansão das universidades, nem pelos seus sucessores, agravando o quadro financeiro da USP ao longo dos últimos nove anos.

 

Mais recentemente, houve uma reestruturação da carreira dos servidores na USP, trazendo uma perspectiva de progressão baseada no mérito. Não se deve confundir essa progressão por mérito com reajuste de salários.

 

A crise atual da USP é principalmente política. Ela decorre da tentativa da atual gestão de financiar a expansão previamente acordada com o governador por meio de arrocho salarial dos servidores docentes e não docentes. Professores, funcionários e alunos da USP fizeram a sua parte e ampliaram seu serviço à sociedade. Trata-se de um esforço continuado para formar mais e melhores profissionais, e para atender às demandas de pesquisa e inovação para nosso desenvolvimento.

 

As universidades estaduais de São Paulo são um patrimônio intelectual, científico e tecnológico inestimável do estado e do país. A ampliação de sua contribuição à sociedade é necessária e está em curso, mas deve ser feita com a valorização de seus profissionais, por meio de reajustes salariais que pelo menos compensem as perdas geradas pela inflação.

 

A atual crise estrutural e financeira não pode ser interpretada e tratada segundo uma ótica simplista e equivocada, como tem ocorrido na maioria dos meios de comunicação. A redução da jornada de trabalho de docentes, apresentada como uma possível “solução” para a crise financeira da USP, representa um dos ataques mais brutais ao espírito que norteou sua fundação há 80 anos, pois é consenso que o regime de dedicação integral à docência e à pesquisa é um dos principais responsáveis pelo sucesso da instituição.

 

A intransigência da atual reitoria, se mantida, levará à degradação dos salários, das condições de trabalho e da própria excelência da USP, colocando em risco o futuro da instituição.

 

Leia mais:

‘Não aceitaremos arrocho de salário e de verba para atividades de ensino, pesquisa e extensão na USP’ - entrevista com Chico Miraglia, membro da Associação dos Docentes da USP (ADUSP)

‘Governo tucano e reitoria terão que aprender a negociar com movimentos estudantis na USP’ – entrevista com Luisa D’Avola, do DCE

Adusp denuncia o domínio autoritário na USP – entrevista com Heloisa Borsari e Cesar Minto, da ADUSP.

 

Docentes mobilizados do Instituto de Biociências

Universidade de São Paulo

Agosto/2014

Comentários   

0 #2 professor do IB, USPMarcelo Pompêo 18-08-2014 18:29
Senhores, outros interessantes manuscritos que resgatam o importante papel da USP como instituição pública são apresentados nos seguintes links:

http://www.adusp.org.br/files/database/2014/Joao_Sette.pdf

http://www.adusp.org.br/files/database/2014/CARTA_ABERTA.pdf
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0 #1 Pirulito de TroiaAdalberto T. Phita 17-08-2014 13:47
Depois de ler esse excelente texto e de ver a notícia de quinta na Folha fiquei pasmo. A macabra intenção da Folha de privatizar a USP não é nova. Mas através da publicação na última quinta, com tons oficiais, da proposta da Reitoria da USP de oferecer pirulitos com açúcar privado para os docentes foi explicitado um pano de fundo que é descortinado aos poucos.
A flexibilização da carreira docente com dedicação exclusiva às atividades de pesquisa e docência é um convite para que cada docente busque por conta própria um aumento de renda, através de um salário oferecido pela iniciativa privada. O doce agrado para os docentes ansiosos em resolver seus problemas financeiros deve causar preocupação não apenas na comunidade de docentes, discentes e funcionários da USP, mas em toda a sociedade. Isto porque todos os docentes que não obtiverem fontes alternativas de recursos serão punidos com redução de salário e, todos os que aderirem estarão possibilitados a exercer força, na balança de poder da universidade, para obterem máximo ganho financeiro com a venda de seu tempo. Além do fato que o discurso em defesa do salário e da Universidade pública e de qualidade será feito apenas por aqueles que não estão com o pirulito na boca, que pode se tornar uma pequena minoria em pouco tempo. Desta forma, a tentativa contínua de privatizar a universidade que sempre esbarrou em um conjunto de docentes que possuí vínculo com a universidade baseado no regime de dedicação exclusiva terá uma estrada adoçada para percorrer. O surgimento de um regime de trabalho novo inserirá a corrosão da universidade pela privatização não de seus prédios ou seu nome. Levará à privatização da universidade pela privatização das pessoas, que de boca cheia pouco poderão falar, além de correrem o risco de terem os dentes apodrecidos pelo açúcar privado.
Por mais que pareça paranóica essa análise, é óbvio que a oferta de flexibilização não resolverá no curto prazo o problema de caixa da universidade, desvendando que a proposta nada tem a ver com a crise citada no texto. A folha de 105% não é composta majoritariamente por docentes, mas sim por funcionários não docentes. Nesse sentido, mesmo que todos os docentes venham a se vincular ao novo regime de trabalho instantaneamente a conta não fecha. A única exceção é se pensarmos no longo prazo, mas aí somente haverá redução na folha de pagamento se houver um ainda maior arrocho salarial, para além dos 7% atual. Isso reforça ainda mais o cenário de que o único regime de trabalho possível será o flexibilizado.
Perderemos um dos nossos mais valiosos bens, a USP, por nada...
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