Correio da Cidadania

O Chile de Allende: a greve de outubro de 1972 e a impressionante reação popular

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Apenas iniciada a revolta contra o governo de Salvador Allende, em 9 de outubro de 1972, a base popular que o apoia compreende que o confronto é decisivo e enfrenta um desafio inédito: manter o país funcionando contra a tentativa patronal de paralisá-lo. Que se consegue graças a uma mobilização colossal e criativa.

 

Preparada durante quase um ano pelos sindicatos patronais, a “greve de outubro” toma rapidamente os traços de uma insurreição que busca a dissolução do governo de Allende, ou a fabricação de tamanha crise que provocasse uma “intervenção” militar. A Democracia Cristã (DC) e o direitista Partido Nacional, agora unidos na “Confederação Democrática”, se mobilizam e manifestam. A justiça, a Controladoria e a maioria parlamentarista usam seus poderes para travar as ações do Executivo, enquanto grupos fascistas sabotam as infraestruturas e atacam os caminhões ativos. Em resumo – afirma Mattelart – a burguesia chilena se dá o luxo de um primeiro de maio de 1968, ao contrário.

 

Medidas governamentais

 

Três semanas antes, o dia 14 de setembro, o presidente Allende havia denunciado um Plano Setembro: “pretendia paralisar o país, promovendo um conflito no sindicato do automóvel... criando dificuldades aos barcos que traziam trigo... e grupos fascistas têm preparado revoltas de rua”. Dias depois demitiu o general Alfredo Canales, envolvido no projeto do golpe. O enredo perde assim seu principal apoio militar, então escasso.

 

Iniciada a greve, Allende fala ao país. Recorda que só há 20 dias tinha conseguido um acordo com os transportadores: aumento de 120% das tarifas e da estabilização dos preços do combustível e das reposições. Portanto – explica – a greve dos transportes é completamente ilegal e ocasiona dificuldades incríveis no abastecimento dos alimentos do governo, “tem que se impedir o que eles querem; colocar uma ponte entre o governo e as Forças Armadas”. E reitera, com ênfase, que fará tudo o que esteve ao seu alcance para evitar um enfrentamento entre chilenos. Decreta “Estado de Emergência” em 12 das 25 províncias, estendido depois a 20 (2).

 

Eles estão no comando do poder militar para restringir o direito de reunião e modificar a operação de transporte. Instauram as patrulhas de rua e aplicam os decretos de abertura a comércios fechados. Fecham rádios de direita que infringem as restrições impostas pelos líderes militares de área. Em Santiago, General Bravo impôs um toque de recolher das 00h às 6h.

 

O ministro do interior Jaime Suárez (PS) anuncia a expiração dos acordos com os proprietários de caminhões; anula a entrega de 1.500 caminhões Fiat, retém outros 160, e adverte que todo caminhão parado ou que impeça estradas pode ser confiscado.

 

Escala os motoristas dos serviços públicos para conduzir os veículos disponíveis. Aplica a lei de segurança do Estado aos dirigentes da greve e um juiz ordena sua detenção durante alguns dias e estabelece prioridades para distribuir o combustível; primeiro hospitais, bombeiros, guardas, em seguida o transporte público, depois os postos de gasolina. Ao mesmo tempo, o governo utiliza ao máximo sua faculdade de decretar cadeia nacional de rádio e TV (3).

 

A reação popular

 

O combate da base de esquerda por manter o país em funcionamento toma a forma de trabalho voluntário, ocupação de indústrias para que sigam em marcha e criação de novas organizações adaptadas às circunstâncias, como os cordões industriais. O trabalho voluntário é massivo. Dezenas de milhares de estudantes organizados pelas juventudes dos partidos de esquerda, incluindo o MIR, e pelas federações de estudantes da Universidade do Chile e da Universidade Técnica (atual U. de Santiago), assumem quase cotidianamente, trabalhos de carga e descarga de trens, o meio de transporte público que continua funcionando, e de uns 500 caminhões ativos, conduzidos por motoristas opositores à greve, organizados no Movimento de Recuperação Sindical (4).

 

Uns 5.000 cidadãos se oferecem como voluntários para conduzir os veículos confiscados, enquanto outros fazem guarda para proteger os caminhoneiros que trabalham para os comerciantes ativos, desafiando intimidações e atentados.

 

Os trabalhadores das empresas públicas organizam vendas diretas aos comerciantes em funcionamento, ou distribuem através das JAP (5) para evitar que os produtos vão ao mercado negro. A primeira iniciativa é tomada pela têxtil Ex-Yarur, que resolve não entregar “nenhum metro de tecido” aos comerciantes em greve; o mesmo fazem a Textil Progreso e outras indústrias. Em algumas, como Poliester de Sumar, os trabalhadores fiscalizam os caminhões e os põem para trabalhar.

 

Em umas 150 empresas privadas, os proprietários ordenam cessar as atividades e voltar pra casa, com o pagamento garantido. Os trabalhadores respondem, quase sempre, ocupando as plantas para impedir que paralisem, organizando a produção. Incluindo os que nesses dias de greve por questões econômicas, como a Cemento Melón, decidem unanimemente voltar ao trabalho, “para que não nos confundam com eles”. O governo intervém em 65 indústrias, que se adicionam às 177 nacionalizadas ou sob intervenção (6).

 

Em quase todos os complexos industriais, especialmente em Cerrillos e Vicuña Mackenna, se desenvolvem “comitês coordenadores” que logo são chamados “cordões industriais”. Trata-se de organizações territoriais – que não estava previsto – compostas por delegados de cada indústria, onde participam trabalhadores sindicalizados ou não, de pequenas e grandes empresas, nacionalizadas ou privadas (ocupadas) e, no plano econômico, se encontram membros da Unidade Popular, do MIR, outras forças de esquerda e também democratas opostos à greve.

 

Durante a batalha, os cordões coordenam o funcionamento das indústrias: se ocupam do fornecimento de matérias-primas, fiscalizam veículos para deslocar os trabalhadores entre a indústria e o domicílio e substituem técnicos grevistas por outros não grevistas, ou por estudantes do último ano. Também vigiam as empresas para evitar atentados. Há desperdício de abnegação. Trabalham sem contar as horas extras e, em cidades quase sem transportes, muitos trabalhadores caminham quilômetros diários para chegar a seu posto. Graças a eles, o essencial do aparato produtivo permanece ativo. Sem conseguir seu objetivo, a insurreição patronal retrocede.

 

Em 3 de novembro, Allende forma um novo gabinete com dois dirigentes sindicais e três militares (7), buscando uma forma de aliança entre trabalhadores e setores médios, o que pouco antes havia sido rejeitado pela DC. Os novos ministros negociam com os grevistas e, em 6 de novembro, os sindicatos patronais convocam o reinício do trabalho.

 

A primeira ofensiva, apesar de seu fracasso, deixa danos consideráveis que facilitaram a segunda, em julho de 1973. As perdas são estimadas em U$200 milhões e o transporte tardio de sementes e fertilizantes comprometem as colheitas de 1973.

 

Mas, por tudo isso, aquelas jornadas revelam a disposição popular. Apesar dos panfletos que exclamam “o Chile funcionou sem patrões” ou “Os patrões estão demais”, a ação coletiva efetuada “pelos de baixo”, sem dúvida, a mais importante na história do Chile, não pode explicar-se só por suas reinvindicações econômicas. A maioria dos trabalhadores se identifica com o projeto socialista e está disposta a fazer sacrifícios por ele.

 

Notas:

 

1. Documentário “A espiral”, publicado em DVD pela editora Ainda Acreditamos nos Sonhos.

2. González Miguel, Fontaine A Arturo (editores), 1997, Os mil dias de Allende, Ed. CEP, 477-485.

3. A lei permite ao Poder Executivo impor às emissoras de rádio e canais de televisão a transmissão obrigatória de comunicações de importância.

4. Baltra Mireya, 2008, A participação dos trabalhadores no governo popular de Allende, Presença na ausência, LOM.

5. As “Juntas de Abastecimento e Preços” são uma resposta ao desabastecimento que se manifesta em 1972, ano em que se organizam cerca de 1.200 delas. Um decreto de março de 1972, precisa que seu objetivo seja conseguir um abastecimento adequado difundindo os preços oficiais. São compostas por líderes e comerciantes do bairro. Não dispõem de atribuições para organizar a distribuição direta. Apesar de a oposição acusar de sectarismo e de ser uma rede de informação sob controle marxista, a maioria das JAP conseguem, pelo menos, diminuir os efeitos da escassez regularizando as vendas.

6. Najman, Maurice, 1974, Le Chili est proche, Ed Maspero, p18.

7. Sindicalistas: Trabalho, Luis Figueroa (PC, presidente da CUT); Agricultura, Rolando Calderón (PS, secretário geral da CUT). Militares: Interior, general Carlos Prats (conhecido por seu apego à democracia); Obras Públicas, almirante Ismael Huerta (será ministro de Relações Exteriores de Pinochet); Mineração, general aéreo Claudio Sepúlveda.

 

 

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Jorge Masasich é historiador chileno e leciona em Bruxelas. Série de artigos originalmente publicada pelo Le Monde Diplomatique francês e espanhol.

Tradução: Daniela Mouro, Correio da Cidadania.

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