Correio da Cidadania

Política, manifestações e o pensamento conservador no Brasil (1)

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"Desconfio de todo o idealista que lucra com seu ideal."

Millôr Fernandes - Roda Viva (1989).

 

Atualmente é comum ouvir e ler comentários, mesmo que tímidos, sobre uma “onda conservadora” que está pouco a pouco se formando no Brasil, a exemplo da Europa e de alguns dos países dos BRICS, como na Rússia, por exemplo. Bom, no Brasil não se pode negar um nítido cerceamento e repressão das manifestações nas ruas, ao mesmo tempo em que também experimentamos um momento de revoltas contra os constantes abusos policiais em comunidades e favelas e de formação de movimentos e coletivos sociais em meio a proibições das manifestações e greves, como a mobilização do MTST, ou seja, uma realidade com diversas nuances sociais em ebulição.

 

Mas as ações do Estado e dos diversos movimentos sociais não podem ser consideradas antagônicas, apesar de opostas, pois surgem em um cenário de interdependência entre si e são fruto do atual momento histórico e do arranjo de forças do capitalismo no Brasil e no mundo, com reverberações socioculturais no campo da política. Essa não é uma provocação ao debate para aqueles que comemoram dados espetaculares e estatísticas em relação a outros países, que acham bacana a “corrida maluca” por índices como o de Gini ou PIB, os quais foram criados como forma de medir, ranquear e julgar o desenvolvimento capitalista dos “países em desenvolvimento” em relação aos “países desenvolvidos”.

 

Nessa perspectiva, é necessário considerar que as mudanças nos Estados nacionais e a influência neoliberal ocorreram em diversos países e de diferentes maneiras ao longo dos últimos anos. Contudo, evidencia-se que algumas características em comum estiveram presentes em muitos países, como a reconfiguração do poder mercantilista sobre a força e o mercado de trabalho com as reformas trabalhistas, o agenciamento de muitos sindicatos, a concessão para a iniciativa privada de muitos serviços sociais e das empresas estatais, bem como um maior refluxo das forças históricas e políticas de esquerda. Observa-se, em escala global, como atualmente com a crise em muitos países da Europa, uma segmentação crescente dos Estados de bem-estar social e a dualização do seu papel social com uma participação cada vez maior dos grupos privados e de uma rede de organizações que em sua maioria cumprem um papel assistencial e filantrópico, o que seria no Brasil conhecido como terceiro setor.

 

No Brasil, com o governo Lula, a partir de 2003, e com o governo Dilma, sua sucessora, ocorreram mudanças que sinalizaram uma determinada reorganização financeira do Estado, com investimentos em infraestrutura (com o Programa de Aceleração do Crescimento, PAC), políticas de inclusão produtiva e educacional para as comunidades consideradas em situação de baixa renda e em condições de pobreza e uma emergência destacada do país no cenário internacional. Nesse período ainda, o mercado interno passou a ser fomentado pelo pré-sal, pela construção civil e habitacional com alta especulação imobiliária, pelo setor de fabricação de máquinas e equipamentos, bem como a produção de alimentos para o consumo interno. Essa reorganização financeira do Estado auxiliou na formação e reformulação de grupos econômicos, que redesenharam a acumulação de capital no Brasil, que têm a sua reprodução e os seus negócios vinculados a um modelo de desenvolvimento gerenciado pelo Estado por meio das suas instituições e empresas estatais.

 

Atualmente, áreas como a saúde, a assistência social e a economia solidária, por exemplo, foram espaços efetivos de implementação de políticas com algumas iniciativas interessantes, mas são constantemente mediados ou tolhidos em seu orçamento pelo Ministério do Planejamento, Orçamento e Gestão e pela lógica do Estado gerencial por meio da subserviência à política de pagamento da dívida pública que ainda chega a 50% do PIB brasileiro (destaca-se que esse índice era maior no governo FHC). O atual governo, até então, não contesta esse pagamento, nem se propôs a auditar a “dívida” e fazer tal debate com a sociedade.

 

Tomar lado será necessário

 

O atual governo do PT não alcançou a presidência por conta de um alinhamento histórico a certos preceitos dos empresários, transnacionais e banqueiros. Se ganhou as eleições e tem apoio popular, foi pela acumulação de forças das organizações e movimentos sociais, sindicais e pastorais nos últimos 40 anos. Entretanto, esse governo e o próprio partido parecem estar com uma grande dificuldade em administrar o compromisso político e se manterem próximos das bases populares, para além dos períodos eleitorais.

 

É evidente, entretanto, que a experiência de governo está tendo (e com a reeleição de Dilma haverá ainda) mesas redondas e encontros para reunir os movimentos sociais conforme atualmente foi regulamentado pelo Decreto de Participação Social. Mas com uma questão essencial: enquanto os setores oligopolistas do capital levam suas demandas ao atual governo e as efetivam, as demandas das organizações e movimentos sociais que tenham fundo estrutural, por mais mudanças e inovações que tenham ocorrido, não são geralmente atendidas ou executadas em larga escala.

 

No atual governo, uma considerável fração da classe média se formou e também é oriunda da base social e partidária do PT e de muitos dos partidos que compõem a sua base aliada. Muitos nesse setor apoiam as concessões à iniciativa privada, ao agronegócio e aos especuladores das mais diversas categorias. Junto a isso, mais uma coisa é fato: quase todo mundo obteve benefícios com o PT na presidência, desde os banqueiros aos trabalhadores formais e informais.

 

Se uma parcela significativa do eleitorado histórico do PT está identificando no governo Dilma retrocessos, no que tange a qualidade do debate político e aos direitos democráticos, é porque no seu mandato as forças conservadoras com quem o PT fez acordos estão mais exigentes. Junto a isso, desencadeou-se o processo que culminou, em 2013, com outra parcela da população querendo retornos e mais resultados do governo, como mobilidade, mais investimentos públicos em saúde, segurança pública que proteja o povo, mais educação em todos os níveis e qualidade no serviço público. Contudo, estamos chegando em um momento em que parece que uma outra questão também tem de ser feita: quando não é possível que todos ganhem como antes, qual é o lado que vai perder ou ser impelido a renunciar?

 

Outra situação que está ficando corriqueira e naturalizada, não somente em São Paulo, é a criminalização ou tentativa de regulação das greves. Antes de ser anunciada a greve dos metroviários paulistas, a Justiça do Trabalho decidiu liminarmente proibir greve no horário de pico e manutenção de 70% dos trens em funcionamento nos outros horários. Como os metroviários de SP, os rodoviários no RJ foram praticamente impedi­dos de exercer o direi­to de greve. Outro caso, pouco divulgado, foi o dos funcionários federais de Cultura, que se não voltassem a trabalhar teriam os seus pontos cortados, no acender das luzes da Copa do Mundo. Mais exemplos desse tipo não estão faltando. Há nitidamente um recuo significativo com relação a conquistas que implicavam na convivência entre os diferentes – a base da suposta democracia.

 

Ao governar e conceder, com um olho nos recursos naturais e no que pode ser gentrificado ou aumentado o consumo, e outro olho pensando em se igualar a índices, estatísticas e taxas de desenvolvimento criados por eles mesmos, vai se sintetizado um tom da política nos limites do Estado gerencial e capitalista, junto à desregulação gradual do mercado econômico mundial. Sob essa perspectiva, começamos a pensar na acomodação, padronização do ato político e distopia quando se fala em projeto de desenvolvimento para o Brasil, pois o modelo já está dado e a meta é sempre estar comparando PIB e demais indicadores com os outros países. E quem ousar interromper isso? Pelos últimos fatos, parece que ou poderá a qualquer momento ser escanteado do jogo político ou detido por “prevenção”.

 

Fugir dos falsos debates

 

Estaríamos em um duelo entre o complexo de vira-latas (cabeça subdesenvolvida e que torce contra o Brasil) e o complexo de pet shop (espécie de protótipo neocolonial e neodesenvolvido tocado por “cidadãos de bem”)? Optar por esse tipo de debate parece contraproducente para pensarmos um projeto político contextualizado com o mundo atual e situado à esquerda para um Brasil soberano. Ao rebaixar o nível do debate e da cultura política, e ao reproduzir esses preceitos, a colonização do pensamento segue nos impactando, seja na produção de conhecimento, seja na formação de cultura política, e deixa de efetivamente fazer a crítica e elaborar outra alternativa além da experiência eurocêntrica no Brasil. E setores que se dizem à esquerda ou vinculados ao PT optam pelo maniqueísmo para fazer o diálogo com a sociedade, em especial via redes sociais.

 

Uma vez que um jeito de administrar o governo foi arranjado, em especial durante o governo Lula, evidencia-se que alguns setores do atual governo mantêm e conservam confortavelmente uma rotina, em um mundo lento de certezas, que com otimismo permite algumas mudanças controladas. Conservadores preferem ordem, rigidez, controle e resultados previsíveis. Não se pode negar que há uma sabedoria nisso, e há, de fato, vantagens para um restrito grupo seguir nessa perspectiva, já que demanda apenas políticas de ajustes e o gerenciamento do que está concebido. Parece que alguma mudança mais drástica e à esquerda nesse jeito de gerenciar o Estado é temida por, talvez, afetar rotinas, levar a situações que exigiriam posições políticas mais coerentes, mais esforço e dinamicidade do que apenas gerenciar demandas e fazer ajustes nas políticas públicas. "Conservar" pode ser uma estratégia, mas não deixa de ser algo arriscado politicamente, apesar de eleitoralmente eficiente a curto e médio prazo.

 

O conservadorismo que está em voga e se formulando pouco a pouco é diverso e tem de ser analisado com cuidado, evitando generalizações. Ele também se forja em uma classe média que não se distingue pelo consumo dos produtos da alta cultura europeia ou norte-americana, mimetiza gostos, modos, se pasteurizam. Essa classe média que vaia a Dilma por aí é um tipo de classe média que, por exemplo, também gosta de forró universitário, festas juninas, vai em comédias stand up “politicamente incorretas”, curte as comédias do cinema nacional. Esse estilo cria um devir nos variados setores da classe média, propagado pelos grandes meios de comunicação e uma intelligentsia conservadora, não só pelo padrão de consumo, mas também na forma de destilar ódio, segregação social e preconceito em relação a grupos sociais que historicamente são considerados subalternos.

 

Contudo, Löwy (2014) dá uma dica interessante sobre a possível crença atual de determinados setores da esquerda, em nível mundial, sobre uma leitura ainda economicista em relação à direita ou a posturas mais conservadoras de influência fascista, pois o “o grande capital não tem interesse em sustentar movimentos de extrema direita”, e ainda completa:

 

Trata-se, mais uma vez, de uma visão economicista, que não abarca a autonomia própria aos fenômenos políticos – os eleitores podem escolher um partido que não tem a simpatia da grande burguesia – e que parece ignorar que o grande capital pode se acomodar em todos os tipos de regimes políticos, sem muitas preocupações.

 

Diante desse cenário, alguns atores utilizam bengalas discursivas e se escoram sobre questões superficiais, como, por exemplo: “Porque a elite está tão revoltada com o governo Dilma, então?”, pois na acepção destes é a chancela para que o governo seja considerado de esquerda. Não é um “privilégio” só do PT ser alvo do “ódio” de um grupo elitista que está tendo uma perda lenta e gradual dos seus privilégios em detrimento de outros grupos que ocupam atualmente o poder no Estado, ou porque mudou a forma de se beneficiarem do Estado (em forma, não em quantia). Além disso, outros setores da sociedade, ao ascenderem socialmente, deixaram de ser mão de obra fácil e barata da exploração desses grupos (jardineiros, copeiras, domésticas, babás, motoristas etc.).

 

Dialogar as lutas que emergem

 

Mas essa contextualização apenas inicia a conversa sobre a emergência popular da esquerda, essencial para a eleição de Lula e que apoiou o governo atual e a formulação de um conservadorismo de apelo político atraente e com alicerce popular que está vindo à tona e poderá ser hegemônico em um ciclo histórico não muito longínquo. É interessante que isso não seja ignorado, inclusive pelo atual governo. Ainda cabe lembrar que quando os setores históricos de esquerda se furtam de fazer um debate ideológico mais consistente, fazem política cotidiana de forma muito ambígua, com o pêndulo inclinado ao capital, e reduzem a disputa política a maniqueísmos, deixam os flancos bem abertos para que outros setores, inclusive os setores conservadores mais sagazes, ocupem o espaço e a partir de um determinado ciclo histórico exerçam hegemonia política.

 

Ao mesmo tempo, também não podem ser ignoradas as situações de manifestação nas ruas desde junho de 2013, fortemente reprimidas pela polícia, com o aval do Ministério da Justiça e a omissão da Secretaria Nacional de Direitos Humanos, as revoltas comunitárias contra as UPPs no Rio de Janeiro e contra a intensificação da gentrificação, a tentativa de invasão do Consulado do Uruguai para prender a advogada e militante de Direitos Humanos Eloisa Samy, a consolidação de coletivos midiativistas, a resistência dos indígenas e dos povos e comunidades tradicionais, que tensionam esse conservadorismo em gestação e questionam o atual cenário político com uma forma de atuação mais ampla do que nos partidos, organizações e movimentos sociais amalgamados pelo Estado.

Essa provocação, não termina aqui, continua...

 

Sérgio Botton Barcellos é pesquisador e um monte de outras coisas. Doutor pelo CPDA/UFRRJ.

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