Correio da Cidadania

Plínio Sampaio, em memória

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Custava-me vê-lo tão alheio a tudo, como se estivesse mergulhado no mais profundo de si mesmo. A luz, que irradiava do santuário, a todos envolvia numa verdadeira imantação. Porém, algo me tolhia à distância, sem que lhe pudesse dizer uma só palavra. Num solilóquio ao menos.

 

A rigor, a evidência inexorável me calava. E eu, que tanto quisera relembrar-lhe o tempo das Arcadas da Faculdade de Direito, dos grandes instantes do Parlamento, das agruras do exílio anos a fio. Pois, desde sempre, Plínio de Arruda Sampaio partilhara comigo os compromissos da vida pública.

 

O silêncio imperativo triunfara. O diálogo tornara-se impossível. Mas, de repente, acima do mistério que nos separava, tudo ressurgira tão pleno, que até agora me indago se realmente eu revivi o quanto naquela manhã pudera ouvir.

 

A rigor fora um lampejo abençoado: ali, na igreja São Domingos – que tanto me encanta como democrata e cristão–, frei Carlos Josaphat, com a voz de barítono e a firmeza da juventude renovada, trouxera à luz a grandeza de Plínio de Arruda Sampaio: o defensor intimorato das causas sociais, dos desafios nacionais, das liberdades públicas, tendo sempre no corpo e na alma a couraça da honradez!

 

Ao ouvir o frei Josaphat, era como se eu relesse as páginas do semanário "Brasil, Urgente", que ele ousara fundar e o transformara na trincheira das reformas de base.

 

De fato, pela sua palavra, eu pude reviver o púlpito dividido entre as lições perenes de Jesus e a defesa corajosa da reforma agrária, da liberdade sindical, das Ligas Camponesas e da sociedade livre e igualitária. Chegara a convencer-me de que, em plena nave, ali estavam as figuras de frei Domingos Maia Leite, frei Mateus e frei Chico –o consagrado pregador que, a cada domingo, enlevava a tantos e tantos.

 

Como se não bastasse a grande síntese – o passado renascido naquela manhã –, logo mais a palavra de dom Angélico Sândalo Bernardino se alteara.

 

De começo, fora a serenidade a dialogar com o grande morto; e sem tardar, quase tribuno transfigurado, ganhara espaço o verbo incendiado. Que oratória sem igual! Com que precisão admirável soubera recriar a prática política de Plínio de Arruda Sampaio, desde a liderança da Juventude Universitária Católica até o momento extremo – tão nobre e tão audaz – de sua candidatura a presidente da República.

 

Por fim, suave como se a própria alma falasse – companheira desde os albores da juventude, pelos ideais e pela ação – Marieta tivera forças para evocar e enaltecer o marido, em todas as dimensões da vida, com um carinho incomparável, que só os que viveram a plenitude do amor sabem tê-lo.

 

Que destino luminoso o envolvera, até que se impusera à sua frente o caminho do além. Contudo, reporto-me à palavra de Rui Barbosa na câmara ardente de Machado de Assis: "A morte não extingue: transforma; não aniquila: renova; não divorcia: aproxima".

 

E ouso ressaltar: sobretudo de quem, como Plínio de Arruda Sampaio, tenha deixado a sementeira do amanhã.

 

Almino Affonso, 85, é advogado. Foi deputado federal (1995-1999), ministro do Trabalho (governo João Goulart) e vice-governador de São Paulo (governo Orestes Quércia).

Publicado originalmente no jornal Folha de S. Paulo.

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