Correio da Cidadania

Dodjo, dêxe dessa: Os ‘babas’ sergipanos também interessam à CBF?

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Diego Costa saiu de uma brenha que José Maria Marin mal deve saber apontar no mapa.
Sair do roteiro original e explicar o que é o futebol brasileiro também faz parte desse debate.


No Agreste de Sergipe, o menor estado do Brasil, uma cidade leva o nome de Lagarto. Pouco mais de 100 mil habitantes e um estádio charmoso, com um gramado cheio de falhas e estrutura bem precária. Provavelmente desconhecido pela atual cúpula superior do futebol brasileiro.

 

Eu conto: é o Barretão. Um estádio construído pelo Regime Militar em homenagem a Paulo Barreto Menezes, governador de Sergipe entre 1971 e 1975. Foi sucessor de Lourival Batista, outro que dá nome a estádio, o Batistão, na capital Aracaju.

 

Mais um daqueles “Ditadurões”, estádios de alcunhas que representavam a megalomania do “Brasil do futuro” do Regime Militar (ou a suposição de que isso existia). Foi a principal política “cultural” implantada à época, distribuindo praças esportivas onde fosse necessário garantir amizades.

 

Que a Ditadura Civil-Militar teve relações íntimas com o futebol, inclusive na periferia da sua estrutura, todos sabem. A verdade é que o Brasil inteiro mudou e a CBF parece ainda estar totalmente presa aos tempos em que as coisas funcionavam assim: no apadrinhamento e na hipocrisia nacionalista e ufanista.

 

Foi de lá de Lagarto que saiu o nome mais polêmico do futebol atual: Diego Costa. Atacante do estilo brocador, que nunca teve um contrato como atleta profissional em um clube brasileiro. Comprou uma briga com a CBF e a equipe que comanda a Seleção ao optar por se naturalizar espanhol e competir a Copa do Mundo de 2014 pela Fúria de Iniesta, Xavi e Fábregas.

 

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Governador do estado de Sergipe Lourival Batista na
cerimônia de inauguração do Estádio Estadual Lourival Batista

 

Corte 1: Lagarto, os clube-prefeitura e o futebol de Sergipe

 

Mas como pode um craque desses, artilheiro do torneio em que jogam Messi e Cristiano Ronaldo, não ter passado pelo futebol local? Não passou, como tantos outros, e deu sorte de não o ter feito. O futebol de Lagarto é uma loucura e provavelmente só o prejudicaria.

 

O primeiro clube de destaque foi o Esporte Clube Lagarto, vice-campeão sergipano em 1972 e 1975, que chegou a representar o futebol local na Série C do Brasileiro de 1990 para depois sumir de vez. O segundo clube que apareceu foi o Atlético Clube Lagartense, em 1992, sendo até campeão estadual em 1998, enfim extinto na Série A2 de 2008.

 

Exatamente em 2009, surgiu o Lagarto Futebol Clube, que chegou à Série A1 em 2013 e por pouco não volta a cair. Compôs seu elenco com o atacante Nadson, aquele que passou por Vitória, clubes do Japão e Corinthians.

 

Isso acontece porque os clubes de cidades interioranas como Lagarto, em especial em estados com o futebol precário como Sergipe, sobrevivem de acordo com as articulações políticas e o bom humor dos gestores municipais das cidades que “representam”. Convênios, patrocínios, pagamentos de salários de jogadores mais renomados estruturam os clubes que podem garantir ganhos futuros ao seu patrono – a depender da estratégia política adotada.

 

Segundo me informou um jornalista lagartense, em 2013 o clube que “representa” a cidade recebeu os mesmos 45 mil reais de “subsídios” da prefeitura de Lagarto que o time de futsal. A modalidade do salão é uma competição organizada e patrocinada pela filial sergipana da Globo, e por isso atingiu mais relevância local (leia-se: público e anunciantes interessados) do que o futebol de campo.

 

O presidente da Federação Sergipana de Futebol está à frente da entidade desde 1990, ano de nascimento deste que vos escreve. Conduz o precário futebol local dessa forma: dá espaço nas divisões inferiores para clubes estruturados por prefeituras, para que esses subam à Série A1 e disputem as mesmas vagas para Copa do Brasil, Série D e Copa do Nordeste com os clubes mais tradicionais, também carentes de recursos.

 

O resultado é que o futebol sergipano vive de clubes-prefeitura de vida curta, enquanto os clubes mais tradicionais, como Sergipe, Confiança e Itabaiana, penam em sobreviver quando não conquistam a vaga para as competições de maior calibre. São pelo menos 5 meses sem atividades até o retorno dos longos, infrutíferos e dispendiosos estaduais de todos os anos.

 

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Roteiro Original: CBF, o papai Felipão e o ufanismo canalha

 

A ponta-de-lança do debate público que envolveu a opção de naturalização de Diego Costa foi, sem dúvidas, o treinador Luiz Felipe Scolari. Abre aspas:

 

“Um jogador brasileiro que se recusa a vestir a camisa da Seleção Brasileira e a disputar uma Copa do Mundo no seu país só pode estar automaticamente desconvocado. Ele está dando as costas para um sonho de milhões, o de representar a nossa seleção pentacampeã em uma Copa do Mundo no Brasil”.

 

Não é preciso ser um defensor da legitimidade da opção de Diego Costa para dar risada da declaração estapafúrdia de Felipão. Os conterrâneos do atacante provavelmente lançaram mão da expressão “doooodjo, deixe deeeessa”, tão comum naquela terra pra se dirigir a uma situação que dispensa comentários.

 

Mas essa é a ideia desse texto, então aqui vamos. Primeiro: Felipão treinou a seleção de Portugal, comandando o paulista Deco e o alagoano Pepe. Mesma seleção pela qual, pouco depois, o baiano Liedson passaria a jogar. Todos traidores da pátria?

 

Ainda que fosse honesta, a tentativa de justificar o seu lado de um cabo-de-guerra, da forma que fez, só tornaria Felipão mais um adepto de um ufanismo canalha. “Tudo pela pátria, pelo povo, e pela camisa amarela” nos remetem a uma ideologia fascista.

 

Mussolini usava isso, Hitler usou isso. Sendo o futebol apenas mais um dos veículos de propaganda nacionalista, é óbvio que nossos atletas devem se comportar como disciplinados homens da baixa patente do exército. O Regime Militar usou os 90 milhões em ação.

 

Diego Costa é um Wonderlust King do futebol brasileiro. Ele e mais tantos milhares driblaram os obstáculos extracampo dessa atividade tupiniquim. Está corretíssimo em fazê-lo.

 

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Corte 2: Futebol precário e fuga

 

Na temporada passada (2012/2013), quando começou a se destacar, Diego Costa era apenas um dos 22 brasileiros em La Liga, a primeira divisão espanhola. Em Portugal, país coirmão e vizinho, onde começou sua carreira no Sporting Braga ainda em 2006, no mesmo período supracitado, tínhamos um total de 125 jogadores, brasileiros.

 

Um número que representa a realidade do futebol português há muito tempo: mesmo jogadores que apenas comporiam um elenco mediano na Série B do Campeonato Brasileiro migram para Portugal. É possível formar pelo menos cinco diferentes elencos em clubes distintos apenas com os “brazucas”. Isso significa praticamente 1/3 dos clubes que jogam a principal divisão do Campeonato Português de Futebol Profissional.

 

Nas terras tupiniquins é ainda mais complicado atingir bons espaços nos principais clubes. A interferência dos agentes na escalação, os “proprietários” das divisões de base (mesmo nos grandes clubes) e os treinadores relâmpagos desinteressados em lançar novos nomes são exemplos disso.

 

São diversos empecilhos para um jovem jogador, em especial a falta de estrutura dos clubes formadores num quesito: fortalecer e desenvolver os músculos à medida que se atrofia o intelecto. Os atletas brasileiros são possivelmente os mais despreparados do mundo para lidar com a atividade profissional que vivem.

 

Dos 4% dos jogadores que recebem mais do que três salários mínimos, grande parte sofre de problemas psicológicos, de relação social, de alcoolismo, ou mesmo de controle das próprias finanças e da vida de “novo-rico”. Imagine para aquele que não tem um corpo de auxílio que possa encaminhá-lo para o elenco principal de um grande clube.

 

O talento individual pode ser importante no futebol, mas não é suficiente. A roda viva do futebol brasileiro, onde milhões são jogados e descartados anualmente, tem atalhos para alguns bem assessorados, e portas pesadas com várias correntes para aqueles desinformados, como seria para um jovem de Lagarto.


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Roteiro original: Os Pontos dos I’s

 

O real motivo da opção de Diego Costa é o jogo de cartas marcadas em que se tornou o esquema-convocação da Seleção Brasileira. Um amontoado de agentes dividindo espaço e planejando quem veste a camisa amarela. Tal qual a Partilha da África foi feita pelas potências europeias, na régua e no traçado.

 

Tão claro quanto o motivo da CBF e de Scolari: desfalcar aquela que é a grande favorita ao título mundial, a maior Espanha de todos os tempos e seleção mais vitoriosa dos últimos anos. Scolari, nesse processo, não passa de mero gestor dos interesses de diferentes agentes com seu cardápio de jogadores “indispensáveis” ao plantel canarinho.

 

Abro aqui espaço para a opinião de Felipe Leite, uma enciclopédia humana quando se fala de futebol sergipano e nordestino:

 

“Na história das convocações, o lobby quase sempre funcionou. Nunca antes testado, Nunes foi convocado para a seleção em março de 1978. E após marcar o gol da vitória sobre a Alemanha Ocidental, ganhou vez desbancando o queridinho Dinamite. Somente uma lesão tiraria o centroavante sergipano da Copa de 78. E foi justamente o que aconteceu.

 

Na fase de preparação para a Copa, Lídio Toledo, médico da seleção, relatou a Nunes a pressão sofrida para cortar o mesmo. E mesmo com as lesões de Gil, Rivelino, Reinaldo e Amaral, juntamente com Nunes, apenas o sergipano fora cortado. Seu corte estranhou o técnico Evaristo de Macedo, pelo simples fato de ter sido realizado no Recife.

 

O corte foi tão esquisito que, na mesma semana, Nunes estreou no Campeonato Brasileiro pelo Santa Cruz e marcou o gol da vitória sobre o Goiás. Confirmou sua boa fase ao marcar 10 gols pelo Santa Cruz antes da estreia da Seleção na Copa.

 

E ainda me perguntam se Diego Costa fez certo em escolher a Espanha?”.

 

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Conclusão: O capital é mundializado. O futebol-negócio também

 

Diego Costa é um jogador profissional de futebol. Ponto. Jogou e desenvolveu suas atividades profissionais em outro país, e já faz isso há tanto tempo que se torna tão espanhol quanto brasileiro.

 

Nossas identidades culturais e geográficas estão mais complexas do que já estiveram um dia. Ainda mais no Brasil, esse ajuntamento de tantas coisas diferentes, falar de nacionalidade não passa de uma grande balela. Mesmo o nosso projeto-nação fracassou redondamente. Graças a deus!

 

Chamar Diego Costa de oportunista por optar jogar pelo país que o acolheu há anos não passa de uma expressão moralista e extremamente retrógrada. A CBF e Scolari, como bons donos do bastão do poder, utilizaram isso para proteger a sua própria imagem. Pecaram feio.

 

Por outro lado, gostaríamos de ver a Espanha acolher trabalhadores braçais de outros países como acolhem os talentosos jogadores de futebol. Quando gandulas, porteiros e maqueiros forem convidados à naturalização, estaremos falando de um novo momento da humanidade, de fato.

 

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Irlan Simões é jornalista e membro da diretoria da Revista REVER, onde este texto foi originalmente publicado.

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