Correio da Cidadania

Por um povo mais expressivo

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Em artigo publicado na Folha de S. Paulo do último dia 10 de junho (Opinião, p. A3), o professor Ives Gandra da Silva Martins afirma que “A Política Nacional de Participação Social (PNPS), tal como descrita no decreto n.º 8.243/14, tende a substituir o Congresso Nacional na representação popular” por instâncias de participação controladas por “amigos do rei”, resultando em “aparelhamento do Executivo e redução do Congresso Nacional à sua expressão nenhuma”, o que feriria a autonomia e a independência dos poderes e seria inconstitucional.

 

Entretanto, o referido decreto não suprime quaisquer competências do Congresso Nacional, mas tão somente trata da organização e do funcionamento da Administração Federal, o que a Constituição Federal (Art. 84, VI, a) autoriza expressamente, e regulamenta os Artigos 3º, caput, I e 17 da Lei nº 10.683/ 2003, segundo os quais, respectivamente, compete à Secretária-geral da Presidência da República “assistir direta e imediatamente ao Presidente da República no desempenho de suas atribuições, especialmente: I - no relacionamento e articulação com as entidades da sociedade civil e na criação e implementação de instrumentos de consulta e participação popular de interesse do Poder Executivo”; e compete à Controladoria-Geral da União, dentre outras atribuições, “assistir direta e imediatamente ao Presidente da República no desempenho de suas atribuições quanto a ... atividades de ouvidoria e ao incremento da transparência da gestão no âmbito da administração pública federal”.

 

Portanto, não se trata de uma regulamentação autônoma – encontra respaldo na Constituição e em Lei Federal. Além disso, instrumentos de participação popular como conselhos e conferências são consagrados, por exemplo, na legislação que regulamenta o funcionamento do Sistema Único de Saúde e o Sistema Único da Assistência Social, os quais são há muito tempo aplicados nas diferentes esferas da Federação.

 

Em segundo lugar, a edição do decreto n.º 8.243/14 em nada altera o dever de o Poder Executivo respeitar o princípio da legalidade e, consequentemente, as competências do Congresso Nacional, ao editar normas ou adotar medidas concretas de execução – a única diferença é que, ao fazer isto, antes deverá atender aos procedimentos de participação popular. Ressalta-se, ainda, que nada impediria que tais consultas fossem realizadas de maneira informal; porém, ao serem institucionalizadas, ganha-se em garantia de transparência e contraditório entre os diferentes interesses em disputa na formulação das políticas públicas.

 

Evidentemente, existe o risco de predomínio de determinados interesses e grupos nas instâncias de participação. Mas isto não ocorre com a atuação dos grupos de pressão, sobretudo os representativos do poder econômico, junto ao governo e ao poder legislativo? Ou, então, com as bancadas corporativas no Congresso Nacional e o financiamento privado de partidos e parlamentares, desequilibrando o jogo democrático em favor dos mais ricos? Em uma democracia pluralista não é possível (nem correto) evitar a formação e atuação de grupos de interesses. É preciso criar instrumentos institucionais que ajudem a reequilibrar o jogo, de maneira que todos os interesses da sociedade, inclusive dos grupos mais excluídos, possam ser explicitados e ecoarem nas instâncias decisórias legislativas e executivas. O decreto não resolve este problema e apresenta limitações, mas, com certeza, dá um passo importante neste sentido.

 

Enfim, na segunda década do século XXI, os instrumentos de democracia representativa continuam fundamentais e precisam ser aperfeiçoados, inclusive, para melhorar a autenticidade da representação e conferir-lhe alguma autonomia em relação ao poder econômico. Porém, diante da crise de legitimidade do sistema representativo, das novas temporalidades, da reestruturação do espaço político e das novas formas de organização social desenvolvidas no contexto da globalização, a democracia não pode ser reduzida ao voto em representantes (ou em consultas formais como plebiscitos e referendos). Mecanismos mais flexíveis, menos formais, não-hierárquicos e mais autênticos precisam ser construídos.

 

Aprofundar este debate, com criatividade institucional e compromisso com o espírito democratizante da Constituição de 1988, seria uma grande contribuição do Congresso Nacional para que tenhamos um povo mais expressivo nos processos decisórios do Estado brasileiro.

 

Murilo Gaspardo é professor de Ciência Política e Teoria do Estado da UNESP/Franca e Doutor em Direito do Estado pela USP.

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