Correio da Cidadania

Disputa por legado da copa vai além das eleições

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Os efeitos do campeonato de futebol independem da polarização retórica, afetam concretamente o povo e deixam marcas profundas nos conflitos políticos dos próximos anos.

 

Independentemente do resultado do futebol e da seleção campeã da Copa do Mundo, o Brasil vive acirrada disputa em torno do legado do torneio organizado pela FIFA, uma entidade privada que convenceu o governo brasileiro a investir a bagatela de 30 bilhões de reais em ações e obras questionáveis, como a remoção de comunidades pobres, ocupação militar de bairros populares, construção de aeroportos e estádios de futebol e forte aparato de segurança para proteger os segmentos mais privilegiados da sociedade.

 

O legado, pelo lado do governo, que assumiu papel preponderante no megaevento das grandes corporações internacionais, é um amontoado de coisas positivas, a começar dos próprios aeroportos e estádios, as obras da chamada mobilidade urbana (novas avenidas, asfaltamento de vias antigas, corredores expressos, veículos sobre trilhos), os gastos de milhares de turistas, a divulgação do país nas redes mundiais de comunicação, até a ação articulada das Forças Armadas –treinadas no Haiti – com as polícias federais, estaduais e municipais.

 

Na defesa do evento, a presidente da República enfatizou que o legado está no fato de que a FIFA e os turistas não poderão levar na bagagem as obras dos estádios, aeroportos e da mobilidade urbana. Elas ficarão no país para os brasileiros. O ministro da Justiça também se adiantou ao considerar que o maior legado de sua área é a integração policial – um aparato sem precedente exclusivamente montado para assegurar a realização do evento e anular o incômodo provocado pelos protestos sociais, políticos e populares.

 

É evidente que a FIFA e seus patrocinadores não colocaram na bagagem as mazelas do caos social, político e jurídico que causaram ao país, como, por exemplo, corromper os poderes da República para a aprovação de leis e normas que contrariam o regime jurídico existente, entre as quais a que permite vender bebidas alcoólicas nos estádios, utilizar o trabalho infantil e de adolescentes durante o evento, criar zonas de segurança em áreas densamente habitadas e inúmeras isenções fiscais especiais – que criam iniquidades entre os impostos pagos pelas empresas patrocinadoras do evento e o que deve ser pago pelas demais empresas.

 

É claro que as forças da situação, em especial de sustentação do governo federal, querem tirar o máximo proveito político do futebol para fins eleitorais, como já aconteceu inúmeras vezes no Brasil e em muitos outros países. É impossível esquecer a Copa de 1970, quando o governo Médici explorou a paixão da torcida pela seleção para mostrar um país que dava certo, que vivia um milagre econômico, e para esconder a mais feroz ditadura e a mais brutal violação dos direitos humanos. Na época, as esquerdas criticaram o ufanismo da publicidade oficial como forma de entorpecer as consciências e desmobilizar a oposição ao regime militar.

 

Nesse aspecto, o legado revela também a fragilidade intelectual de importantes setores da esquerda, em especial de pesquisadores universitários, acadêmicos e de jornalistas que acompanharam o desenrolar do circo da FIFA sem se posicionar de forma clara e sem fazer críticas, apenas para manter o alinhamento automático com um governo de composição com o que há de mais atrasado no país. Ao contrário, muitos intelectuais que outrora criticavam o futebol como sendo o ópio do povo, agora silenciam na covardia ou passam a justificar a forte repressão contra os críticos do megaevento. Nunca antes neste país se reprimiu manifestações populares com tamanha violência, e nunca as polícias militares ganharam tamanha dimensão de impunidade.

 

As oposições neoliberal e de centro-direita têm grande interesse em desgastar o atual governo (uma composição de PT, PMDB, PTB, PP e mais uma dezena de siglas) com vistas às eleições gerais de 5 de outubro, mas atuam basicamente no campo institucional, no Congresso Nacional, nas redes sociais e na grande mídia empresarial – que nutre simpatias pelas candidaturas lançadas pelo PSDB e pelo PSB, na expectativa de uma decisão no segundo turno.

 

Para essas oposições, o maior legado da Copa do Mundo está na incapacidade gerencial do governo federal, na incompetência de planejar e executar um projeto de tamanha grandiosidade dentro dos orçamentos e prazos estabelecidos. Os neoliberais centram a crítica nos aspectos relativos ao desvio de recursos públicos, superfaturamento das obras e na denúncia da corrupção – ou pelo menos na suspeita de financiamento das campanhas eleitorais com propinas das empreiteiras que fizeram obras e das empresas que gozaram de isenções de impostos e outros benefícios previstos nas leis especiais para o campeonato de futebol.

 

Legado social


As oposições no campo da esquerda e os movimentos sociais populares criticam principalmente os danos sociais e políticos da Copa para o país, o legado de inúmeras ações privadas e públicas que produzem efeitos contrários ao que se esperava de um processo democrático e da construção de uma sociedade mais justa e igualitária, com respeito aos direitos sociais e às liberdades civis. Ao contrário de um processo civilizatório, o legado da Copa, já computado e materializado, é um grande retrocesso político na direção da barbárie, da exclusão, do preconceito e do desrespeito aos direitos dos que mais precisam do apoio do Estado.

 

Desde os primeiros momentos de preparação das obras para a realização do torneio, em 12 capitais estaduais, os primeiros atingidos foram as populações de baixa renda despejadas de suas casas para obras de estádios e de vias públicas nos acessos. Calcula-se que mais de 250 mil famílias foram desalojadas a manu militari por todo o país. Está aí um legado de difícil reparação, num país em que o déficit por moradia aumenta mais rápido do que os programas habitacionais. Os movimentos dos sem teto pipocam pelo país afora enquanto os patrocinadores da Copa curtem a especulação imobiliária.

 

Depois aconteceram as ocupações militares e policiais de morros, favelas e comunidades pobres do Rio de Janeiro e de outras cidades, sempre com o pretexto de se combater o tráfico de drogas, mas sempre também com abusos de toda ordem e violações de direitos constitucionais. Essas ocupações cinicamente denominadas de “pacificadoras” continuam a produzir um rastro de sangue que coloca o Brasil no ranking dos países mais violentos do mundo. Se a ideia era silenciar o descontentamento das populações excluídas, o legado de assassinatos tem sido um grito que ecoa por todas as partes – em especial nas várias cortes internacionais de defesa dos direitos humanos.

 

Nunca antes neste país se ocupou bairros inteiros com tropas militares e policiais como aconteceu no complexo da Maré, no Rio de Janeiro, com autorização genérica do Poder Judiciário para a realização de operações de busca e apreensão em 40 mil residências, sem justificativa determinada, uma violência sem precedentes e em flagrante violação dos direitos democráticos e humanos previstos na Constituição Federal. Essa ação, evidentemente, demonstra que o legado da Copa inclui a discriminação praticada pelo Estado com o apoio dos setores mais reacionários da sociedade – aqueles que pedem sempre mais “porrada” e mais “cacete” nos mais pobres. Como sempre, a direita e o governo, com todo o aparato midiático, tentam o tempo todo criminalizar os movimentos sociais e os que se manifestaram contra a Copa.

 

Ainda precisam ser computados no legado social os incentivos ao turismo sexual, a exploração da prostituição infantil e o aumento da segregação dos que podem frequentar os novos estádios do futebol no padrão FIFA e os que ficarão de fora do espetáculo depois da Copa. Tudo indica que o maior legado esportivo e cultural é mesmo a expulsão dos pobres e negros da geral, no processo de seleção pelo poder aquisitivo, na busca de um novo público eleito – notadamente branco – pelo padrão de consumo. Para os anunciantes e patrocinadores já estava na hora de os estádios serem ocupados pelas classes médias, limpas e educadas, sem a ameaça das torcidas integradas pelas “classes perigosas”.

 

Legado econômico


Comemorada pelo governo como um evento que veio para injetar enorme quantidade de dinheiro na economia, em especial nas sedes dos jogos, pela presença de turistas e pelo gasto em hotéis, restaurantes e todo tipo de comércio, com ganhos generosos para todos, na verdade a maior parte da grana fica mesmo com a FIFA e seus associados, que recolhem o caixa dos estádios e dos pacotes internacionais (passagens aéreas, hotéis e translados). No bojo desse legado estão também as empreiteiras, que cobraram absurdos por todas as obras (estádios, aeroportos, vias públicas etc.), os patrocinadores e, muito provavelmente, alguns espertinhos que descobriram brechas para tirar algum trocado da FIFA.

 

Nunca antes neste país se inauguraram tantas obras inacabadas. Na véspera da abertura do mundial pelo menos 50% das obras previstas não tinham sido concluídas. O problema desse legado não é apenas o custo financeiro futuro para que tais obras sejam devidamente entregues. O legado está no reforço de uma prática política que já deveria ter sido superada, pois remete aos tempos de mando absolutista do coronelismo e das oligarquias.  Imaginar que isso tudo está sendo comandado pelo PT e pelo PCdoB, outrora partidos comprometidos com a transformação cultural e política, é mesmo um grande retrocesso, que, mais uma vez, só favorece o conservadorismo e a direita, e mais uma vez a farra das empreiteiras.

 

Como legado para o povo brasileiro vai ficar a conta de tudo aquilo que a administração direta gastou com o evento, e aquilo que foi financiado de forma subsidiada, e aquilo que teve isenção tributária e aumentou a evasão dos cofres públicos, sem contar o risco de picos de inflação em função de um brutal aumento nos preços em aluguéis e na alimentação.

 

Evidentemente, se a inflação der sinais que vai estourar o limite máximo da meta de 6,5% ao ano, corremos o risco de ter novas medidas de austeridade com mais arrocho salarial e maior controle do crédito. Uma coisa é certa: o trabalhador brasileiro vai sentir na própria carne o legado da Copa ainda por vários anos.

 

Para citar um exemplo bastante singelo de como o legado vai ser mesmo pesado para o povo, basta comparar o custo do estádio do Real Club Deportivo Espanyol, em Barcelona – inaugurado recentemente, no valor total de 100 milhões de euros (aproximadamente 300 milhões de reais), um estádio moderno, confortável, para 60 mil lugares, com sistemas de energia solar e captação e reaproveitamento de água da chuva –, com o custo do Itaquerão, um estádio bem acanhado e inacabado, que já custou mais de 1,1 bilhão de reais, quase quatro vezes mais do que o estádio espanhol. Isso significa que a nação corintiana – da qual faço parte – terá que saldar a dívida do estádio nos próximos anos não apenas com o repasse integral da renda dos ingressos, mas vai pagar também com efeitos no próprio elenco e desempenho do time – para o desespero da fiel torcida.

 

Legado político

 

Sem maiores chances nas eleições de outubro e com espaços reduzidos no jogo institucional, as oposições de esquerda apostam que o maior legado da Copa será, em primeiro lugar, tirar mais algumas máscaras do governo federal, que, de um lado, exerce forte influência nas classes trabalhadoras e nas camadas de menor renda (devido a programas sociais e alianças com diferentes setores políticos) e, de outro lado, continua favorecendo o grande capital, nacional e internacional, com políticas neoliberais, com pagamento de juros altos e a total liberdade dos mercados e do fluxo dos capitais.

 

Além disso, as oposições de esquerda e os movimentos populares apostam também no ascenso das lutas sociais, com um número crescente de mobilizações, manifestações, greves e protestos – dados pelas condições objetivas de vida precária da maioria da população e da escassez de políticas públicas de saúde e saneamento, educação, moradia, transportes e proteção social. A Copa instigou a visão popular sobre a desigualdade, o descaso das autoridades e ampliou o descontentamento com as condições de vida nos grandes centros urbanos. O legado da Copa, para as oposições de esquerda, é a possibilidade de um salto quantitativo e qualitativo de conscientização e organização das lutas populares, com cobranças cada vez mais firmes junto aos governos e poderes públicos.

 

Essa disputa extrapola o discurso e a perspectiva puramente eleitoral. Independente de quem ganhar o pleito de 5 de outubro (presidente da República, governadores estaduais, senadores, deputados federais e deputados estaduais), o que importa para os setores mais combativos da esquerda (excluindo-se as forças que passaram a colaborar com o neoliberalismo, com o empresariado e com as oligarquias conservadoras) é manter e ampliar os caminhos alternativos para a construção de uma outra sociedade – mais democrática, mais justa e mais igualitária.

 

Esse legado não se confunde com a retórica ufanista e enganadora da crônica oficial e nem com a crítica superficial e oportunista das oposições neoliberais e de direita. As verdadeiras batalhas políticas vão muito além do jogo eleitoral.

 

Hamilton Octavio de Souza é jornalista e professor.


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