Correio da Cidadania

O legado econômico da ditadura: o retrato de um desastre

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Não é incomum ouvirmos da boca raivosa daqueles que ainda têm coragem de defender o regime implantado nesse país a partir de 1964 que, apesar dos “escassos mortos” (mas que fizeram por onde serem aniquilados) e “alguns excessos” ocorridos nos porões da “Revolução” (sic), ele, o regime, além de ter restabelecido a autoridade, o amor aos valores ligados à família e a Deus (!), à democracia (sic) etc., teria se notabilizado pelo seu inegável sucesso em termos econômicos. O qual se manifestaria principalmente em duas áreas: o do crescimento da economia (o Produto Interno Bruto) e as várias obras que fizeram dessa nação um verdadeiro e continental canteiro de obras. Além de pretensioso, o argumento é por demais fajuto.

 

O crescimento foi enorme sim, mas sem nenhuma consistência, todo ele baseado num irresponsável endividamento público, que de pouco mais de 3 bilhões de dólares ao tempo de Jango saltou para estratosféricos 100 bilhões com Figueiredo. E este ainda tendo que se humilhar para pedir dinheiro emprestado ao FMI, alegando que o país estava simplesmente falido.

 

O PIB inchou sim – essa é a expressão correta, mas a forma como se deu beirou a covardia: extremamente concentrado, beneficiando e locupletando uma elite e algumas mínimas parcelas da classe média. Do outro lado, bem, melhor seria dizer: lá embaixo no abismo, a massa trabalhadora empobrecia a olhos vistos, era vitimada por uma absurda política de arrocho salarial (numa antecipação do que viria a ocorrer novamente com o ajuste neoliberal de FHC).

 

O povo, trabalhador e pobre, a quem os militares prometeram salvar das garras do comunismo, era covardemente aviltado. E era deste povo que, além de arrancar suor e sangue, o regime extraía dinheiro e mais dinheiro para financiar a compra a crédito barato de secador de cabelo, TV, rádio, geladeiras, automóveis por parte de um segmento privilegiado – este sim protegido. E hoje, com toda razão, tem por que chorar pela volta da ditadura. Nesta, o povo tinha que trabalhar duro para que elas (as madames) deixassem suas perucas brilhando.

 

O ridículo a que se chega por parte dos saudosistas só se agrava quando passam a recorrer aos chamados “grandes empreendimentos” do regime. Pura bazófia. Obras sem nenhuma transparência e controle de gastos – quem denunciasse era morto; inúmeras se mostraram um fracasso (Transamazônica, estádios de futebol gigantescos em praças sem nenhum apelo, usina de Angra); e só contribuíram para o alarmante endividamento do país, fazendo a alegria dos bancos internacionais e empreiteiras.

 

E se já não bastassem as construções bizarras, ao menos no Rio a ditadura primou também pela destruição insana de preciosidades do espaço carioca, como o Palácio Monroe. Marcos da Cidade Maravilhosa, postos abaixo pela boçalidade tecnocrática. Um ato simplesmente criminoso. Mais um dentre milhares.

 

E mais do que a corrupção, muitas dessas obras acabaram ceifando a vida de inúmeros trabalhadores. Calcula-se que só nas rodovias construídas na Região Amazônica 8 mil índios tenham sido exterminados. Para “limpar o território” recorreu-se fartamente às práticas denominadas “correrias”, expedições organizadas para dizimar etnias indígenas até o final da década de 1970, principalmente no sul do Acre e do Amazonas. Ou seja, estamos diante de um verdadeiro genocídio. E não esqueçamos da Ponte Rio-Niterói, tão endeusada, mas que vitimou centenas de operários, que trabalhavam sem qualquer proteção, em situações de flagrante perigo. Resultado: muitos deles acabaram sendo “concretados” vivos.

 

Recorrer à realização de obras faraônicas para enaltecer a selvagem ditadura militar que foi imposta aos cidadãos e cidadãs brasileiros com base no terror e – muito pior! – tentar absolvê-la dos seus inúmeros crimes (prisões arbitrárias, torturas, sevícias, choques, afogamentos, perseguições, estupros, ocultação de cadáveres etc.) é não apenas um insulto ao mais reles senso de dignidade, como uma afronta à verdade histórica.

 

Se já não bastassem os crimes prescritos contra seres humanos, as viúvas da sanguinária ditadura “cívica, redentora, cristã e democrática“ seguem com seu espetáculo abominável de agressões, só que agora tentando vitimar a própria história e, de quebra, a razão. Triste!

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Leonardo Soares dos Santos é professor de História da UFF.

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