Correio da Cidadania

‘Temos a impressão de que a chamada transição democrática não vai acabar nunca’

0
0
0
s2sdefault

 

 

O Brasil se reencontra com sua história e, mesmo a contragosto, faz cada vez mais exames críticos de seu passado, ainda repleto de fatos desconhecidos da sociedade, como exemplificam diversos trabalhos divulgados da Comissão da Verdade. Na “descomemoração” deste infeliz cinquentenário, entrevistamos Marcelo Zelic, diretor do Grupo Tortura Nunca Mais, um dos mais perseverantes movimentos por justiça e reparação que o país conheceu.

 

“A transição, parece, continua acontecendo. Temos a impressão de que ela não vai acabar nunca. No momento, temos trabalhado a questão da “justiça de transição”, para ver se viramos a página do período da ditadura e conseguimos tocar adiante a construção da democracia, tirando da frente a herança do regime militar, que perdura até hoje”, diz Zelic, também colaborador das Comissões da Verdade Nacional e Estadual (em SP).

 

Na conversa, o entrevistado desmistifica a boataria que alguns setores espalham a respeito de “perigos golpistas” nos dias de hoje. Primeiro porque, como explica, a direita já desenvolveu outros mecanismos de assalto ao poder, menos violentos e mais eficientes. Em segundo lugar, porque aventar o velho fantasma parece também do interesse de grupos atualmente incrustados no poder, ainda depositários de um passado de lutas e fibra política.

 

No mais, Marcelo Zelic mostra-se pessimista com a atual forma do nosso Estado dito democrático se relacionar com a população. “Penso que o recado está dado. E com um enfrentamento de consequências muito ruins, no sentido de que a repressão está muito grande. A forma do Estado em lidar com as manifestações é equivocada. Em vez de buscar formas de diálogo, o Estado busca aperfeiçoar legislação de repressão, reforçar os mecanismos e estruturas de repressão...”.

 

A entrevista, realizada em parceria com a webrádio Central3, pode ser lida a seguir.

 

Correio da Cidadania: Que balanço você faz de nossa chamada transição democrática, agora que se completam 50 anos do golpe militar de 64?

 

Marcelo Zelic: A transição, parece, continua acontecendo. Temos a impressão de que ela não vai acabar nunca. No momento, temos trabalhado a questão da “justiça de transição”, para ver se viramos a página do período da ditadura e conseguimos tocar adiante a construção da democracia, tirando da frente a herança do regime militar, que perdura até hoje.

 

Correio da Cidadania: Sobre as forças armadas, como você as analisa hoje? O que poderia ser dito a respeito de suas orientações ideológicas, no sentido de possivelmente ainda manterem apreço pelo regime militar?

 

Marcelo Zelic: Hoje, Temos uma situação bem diferente do passado. Não sou daqueles que acredita ser tudo igual. Uma coisa são os militares que ainda defendem a ditadura, dentro dos clubes militares. São pessoas aposentadas e que se relacionaram com a época. Temos hoje forças armadas que não atuam na sociedade somente com esse tipo de pensamento. Também há pessoas dentro das forças armadas que pensam em virar tal página.

 

Precisamos parar de olhar as forças armadas como um monobloco. Tudo que é enxergado como monobloco deixa a possibilidade de leituras erradas, porque tudo tem suas nuances, correlações de força... Como em qualquer instituição da sociedade, temos de tudo também dentro das forças armadas. Ela é toda formada por seres humanos que têm preferências políticas e gostos ideológicos. No caso dos militares ativos, o apreço pela ditadura não aparece muito, pois não se manifestam publicamente sobre o assunto.

 

Correio da Cidadania: Acredita que as movimentações que setores de direita têm anunciado, principalmente nas redes, são ameaças reais, que encontrarão eco nas ruas?

 

Marcelo Zelic: Acho importante olharmos esse tipo de situação. Uma coisa é o que acontece no facebook, outra é o que acontece na sociedade. Tem gente que vê coisa rolando no facebook e acha sério... Já tivemos, pela direita, passeatas e chamadas ao golpe e aos militares que não levaram 50 pessoas na Avenida Paulista, como no ano passado.

 

Portanto, precisamos complementar as coisas, para que efetivamente não se ache que a força e organização de tal tipo de pensamento são maiores do que a realidade mostra. Não estou desmerecendo, ou me recusando a ver, uma articulação de direita colocada na sociedade. Mas não é só a direita que se organiza e manifesta. Há uma articulação de todas as forças. Todos os grupamentos políticos e sociais se organizam e manifestam hoje em dia.

 

Não podemos colocar as coisas fora do seu contexto real, porque aí damos ênfase para algo que não existe, e de repente tornamos maior algo que não é tão grande assim.

 

Correio da Cidadania: Em tempos em que já temos uma razoável historiografia a respeito das mentiras que alimentaram o golpe e que também passamos por uma Comissão Nacional da Verdade, você acredita mesmo que haja espaço concreto para uma tentativa golpista?

 

Marcelo Zelic: Eu não acredito em golpe do jeito que aconteceu no passado, como se fala. É evidente que setores que almejam o poder vão se organizando conforme a realidade, para tentar alcançá-lo. Hoje, existem outras formas de chegar ao poder, não só pelas forças armadas. Temos o exemplo do que aconteceu em Honduras e Paraguai, onde os presidentes foram destituídos por outros mecanismos.

 

Temos de estar sempre atentos. Mas no Brasil, apesar de termos um marco muito importante, como a Constituição de 1988, ainda temos uma democracia pouco participativa, incipiente. É uma democracia onde as pessoas praticamente só votam. Votam e reclamam. Não participam da construção da sociedade. Assim, penso que há um amadurecimento a ser feito, que ainda não atingimos.

 

Mas não acredito muito que estejamos em situação pré-golpista ou que os cenários se assemelhem. Tem muita cortina de fumaça e interesses que criam esse tipo de impressão.

 

Correio da Cidadania: Sobre a Comissão da Verdade, que avaliação você faz dela, após quase dois anos de trabalhos?

 

Marcelo Zelic: Dentro da Comissão da Verdade, tenho me dedicando à questão indígena. E nesse ponto avançamos muito pouco. Como em vários outros pontos. Há um reclamo geral a respeito da pouca transparência da Comissão, e ela tem trabalhado muito no sentido de investigar casos mais emblemáticos. Porém, creio que uma Comissão da Verdade tem de se dedicar a levantar a maioria dos casos ocorridos.

 

Não há sentido em transformar a violência contra os indígenas em uma violência de segunda categoria. Os indígenas foram atropelados por um modelo de desenvolvimento. E tal modelo se repete, é continuado depois do fim da ditadura militar. Temos um desenvolvimento que ataca os indígenas até hoje. E isso não é verificado pelas pessoas, pois acham que não tem importância.

 

Penso ser fundamental, para avançar a democracia no Brasil, olhar o direito das minorias, porque é uma régua que pode medir o quanto avançamos. Os direitos indígenas, portanto, são uma régua que mede a situação dos direitos humanos, como um todo, no Brasil.

 

Correio da Cidadania: Do ponto de vista dos movimentos que têm ido às ruas, como acha que será marcado esse ano político de 2014, com a Copa do Mundo cercada de polêmicas e contestações, tentativas parlamentares de aprovar legislações punitivas mais duras e um processo eleitoral logo a seguir?

 

Marcelo Zelic: Acredito que tem sido um ano no qual a sociedade intensificou o reclamo sobre questões de maior impacto na sua vida. Os despejos da Copa, a discussão a respeito de onde se investe o dinheiro etc. elevaram o nível das reivindicações relativas à satisfação das pessoas com o cotidiano de suas vidas. Daí o grande volume de protestos.

 

Temos no país uma situação onde a educação, apesar de ter melhorado em alguns indicadores, segue muito ruim. Tem lugar onde sequer há carteira escolar, a escola é totalmente detonada. Temos transportes totalmente entregues a máfias, empresas rapineiras. Como o Estado muda essa postura em prol do desenvolvimento e do bem estar social?

 

Penso que o recado está dado. E tem sido dado com um enfrentamento de consequências muito ruins, no sentido de que a repressão está muito grande. A forma do Estado em lidar com as manifestações é equivocada. Em vez de buscar formas de diálogo, o Estado busca aperfeiçoar legislação de repressão, reforçar os mecanismos e estruturas de repressão, criando novas polícias, autorizando a atuação de forças que não deveriam agir internamente...

 

Dessa forma, temos uma situação que mostra o quanto o Estado está despreparado, em todas as frentes, para uma relação democrática com a sociedade.

 

 

Ouça aqui o áudio da entrevista

Gabriel Brito e Paulo Silva Junior são jornalistas.

0
0
0
s2sdefault