Correio da Cidadania

Classes e luta de classes: classes em luta

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Jessé Souza tem razão ao afirmar que luta de classes não é apenas a greve sindical, ou a revolução sangrenta. Mas ele acrescenta que ela é, antes de tudo, o exercício silencioso da exploração, “construída e consentida socialmente”, inclusive abordagens “científicas” que se constroem a partir do senso comum ao invés de criticá-lo. Ainda segundo ele, nos seus estudos das classes, “dignidade” é um conceito “procedural” e não substantivo. Ou seja, “dignidade” não é um valor moral específico, mas um conjunto de características psicossociais incorporadas.

 

Na realidade, luta de classes é um jogo de opostos. Ela é tanto o exercício silencioso da exploração quanto o exercício resistente, silencioso ou não, a essa exploração. Nesse jogo contraditório, ocorre a disputa científica, teoricamente formulada como ideologia e como política, justificadora ou crítica quanto à ação prática, que inclui uma série considerável de formas de luta, de um lado e de outro, a exemplo da greve e da repressão, e da revolução e da contrarrevolução. Portanto, na luta de classes, não se pode enxergar apenas um dos lados.

 

Cada classe social historicamente existente possui, como diz Jessé, sua própria dignidade, ou seu conjunto de características psicossociais incorporadas. No entanto, isso não ocorre de forma estanque, em especial no que diz respeito às classes dominadas e exploradas. Estas vivem sob a pressão do conjunto de características psicossociais das classes dominantes e exploradoras. Essa pressão, através da educação, da comunicação social e de outras formas de transmissão de conhecimentos, tende a fazer com que a exploração e a dominação se tornem socialmente consentidas pelas classes dominadas e exploradas.

 

No Brasil, a lealdade das escravas caseiras a suas amas, mesmo após a libertação legal dos escravos, fez parte de sua dignidade até muitos anos depois do fim do escravismo, como pode ser verificado em boa parte da literatura nacional. A lealdade de camponeses agregados aos latifundiários, que os deixaram produzir de favor em suas terras, levou muitos deles a se tornarem jagunços e/ou assassinos. Isto, tanto para a luta contra outros latifundiários quanto para matarem camponeses fugidos da servidão por dívida. O que talvez perdure ainda hoje, também estando descrito num sem número de obras literárias. Assalariados que furam greve, ou funcionam como delatores de seus companheiros, se encontram em idêntica situação de subjugação à ideologia e à política dominantes.

 

Por outro lado, as condições reais de existência, produção e sobrevivência das classes dominadas lhes impõem valores, características psicossociais, ideologias e expressões políticas que se chocam com seus correspondentes dominantes. As classes dominadas aprendem, na luta pela sobrevivência e na reação natural à exploração, que a solidariedade entre seus membros não é a mesma da solidariedade das classes dominantes. Aprendem que o individualismo tem muito menos eficácia do que a união na conquista de qualquer pequena vantagem. Aprendem que os direitos usufruídos pelas classes dominantes, mesmo consagrados em lei, são direitos que só se tornam reais para as classes dominadas se forem reconquistados através de luta. A luta econômica dos garis do Rio de Janeiro é exemplo recente.

 

Portanto, alcançar a consciência de que são uma classe própria, diferente da classe dominante, tem sido um longo aprendizado para todas as classes dominadas que passaram pela história da humanidade. Às vezes, em geral, mais precisamente para cada geração de uma mesma classe. No Brasil, a geração que constituiu a classe trabalhadora assalariada dos anos 1950 era principalmente constituída por parcelas oriundas do campo, que não haviam vivido e aprendido com as lutas operárias dos anos 1930. Algo idêntico ocorreu com a geração que formou a classe trabalhadora assalariada dos anos 1970, que não viveu a experiência de luta dos anos 1950 e início dos anos 1960. E está ocorrendo agora com a nova classe trabalhadora, que está sendo construída a partir do novo crescimento econômico e das gerações camponesas que se tornaram urbanas.

 

De qualquer modo, como frisa Sonia Fleury, para as elites, a categoria social dos pobres sempre se constituiu em séria ameaça à ordem estabelecida. Vistos pelo prisma do medo das classes perigosas, os conflitos de classe teriam tomado o caráter de violência rural e urbana, demandando uma postura repressiva por parte do Estado para assegurar a ordem e o domínio. Fleury também poderia ter dito que o Estado surgiu como resultado dos conflitos de classe, desde que as classes surgiram na história, tanto para proteger os interesses das classes economicamente dominantes quanto para garantir a sobrevivência das classes realmente produtoras das riquezas. O que, às vezes, também gera contradições entre as classes dominantes e o Estado.

 

No Brasil, essa situação aparentemente esdrúxula se tornou presente na segunda metade dos anos 1970. O Estado militarizado, mesmo contando com a participação servil de teóricos representantes da burguesia, já não conseguia atender aos interesses globais dessa classe dominante, composta das frações industrial, financeira, comercial, de serviços e agrária. O papel dado pelo Estado a suas empresas estatais fora útil durante a preparação das condições para o chamado milagre econômico, mas as tornaram concorrentes indesejáveis das empresas privadas à medida que a elevação dos preços do petróleo e a crise da dívida externa se instalaram no país.

 

Nessas condições, como reconhece Amélia Cohn, os movimentos sociais dos anos 1970 e 1980, tanto os movimentos populares quanto o novo sindicalismo, foram capazes de constituir, junto com outros segmentos e organizações da sociedade, um fenômeno social e político novo no país, com grande capacidade de mobilização. No entanto, não são muitos os que se aperceberam de que a estagnação econômica dos anos 1980 colocou a fração industrial da classe dos trabalhadores na defensiva. Suas mobilizações sociais entraram em descenso a partir de 1986, ao mesmo tempo em que aumentou sua mobilização política, decorrente das conquistas democráticas que levaram a ditadura militar a sair de cena e culminaram na Constituição de 1988 e nas eleições presidenciais de 1989.

 

Foi esse processo que trouxe à luz uma composição de classes mais complexa do que aquela que servia de parâmetro para os movimentos sociais dos anos 1970 e 1980. A proclamada classe trabalhadora era, na verdade, pelo menos duas: a classe trabalhadora assalariada e a classe trabalhadora proprietária de pequenos meios de produção urbanos e rurais.

 

O destaque conquistado pela fração industrial da classe dos trabalhadores assalariados, representada pelo novo sindicalismo e pelo PT, por um lado, mascarava o fato de que as demais frações assalariadas, como os empregados no comércio, nos serviços e na agricultura, também faziam parte da mesma classe. Porém, por outro, criava confusão com os trabalhadores que também eram proprietários de meios de produção, como os camponeses e os donos de fabriquetas de quintal e pequenos comércios e serviços.

 

As reivindicações dos trabalhadores proprietários às vezes eram idênticas às dos trabalhadores assalariados. Porém, muitas vezes eram contrárias a elas. Essa situação se tornou particularmente esdrúxula nos sindicatos de trabalhadores rurais, basicamente associações sindicais de pequenos proprietários camponeses, que passaram a sindicalizar também trabalhadores assalariados agrícolas, causando confrontos internos de difícil solução.

 

Além disso, ficou evidente a existência de uma imensa classe de descalços, desamparados, desvalidos, excluídos, lumpemproletários, ralé, ou qualquer outra denominação aparentada, sua maioria sobrevivendo na pobreza e miserabilidade. Os membros dessa classe se diferenciavam mesmo dos pobres e miseráveis da classe dos trabalhadores assalariados e dos camponeses proprietários de minifúndios. Eles haviam chegado, mais de 20 anos após terem migrado dos campos para as cidades, àquela situação em que se classificavam, como diz Jessé Souza, analfabetos,inferiores, preguiçosas, menos capazes, menos inteligentes, menos éticos, e incapazes de serem gente e dignos. Por outro lado, a essa descrença em si próprios e em seus iguais, sua condição negativa de vida gerava raiva e espírito destrutivo, contra tudo e contra todos os que pareciam socialmente acima, mesmo que só aparentemente.

 

Constituindo parcela significativa do total da população brasileira, essa classe recebeu o direito de voto, na onda democratizante dos anos 1980, que estendeu tal direito aos analfabetos. E se transformou no principal pivô da campanha presidencial de 1989, quando Collor aproveitou suas características negativas, incluindo sua recusa em votar em alguém quase igual a ela, para jogá-la contra todos e conquistá-la com sua fantasiosa caça aos marajás.

 

O mesmo preconceito prevaleceu nas eleições presidenciais seguintes, só mudando radicalmente em 2002, quando a própria burguesia se dividiu diante dos resultados devastadores dos governos neoliberais. Desse modo, qualquer espelho retrovisor é capaz de mostrar, no período que vai de 1986 a 2012, que a luta de classes no Brasil se travou, fundamentalmente, nos limites da disputa político-eleitoral. As mobilizações estritamente sociais haviam ingressado num vale, ou descenso, profundo e de longa duração.

 

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Wladimir Pomar é analista político e escritor.

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