Correio da Cidadania

Classes e luta de classes: proletariado

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Passou a fazer parte do senso comum tratar de classe trabalhadora o proletariado, ou a classe trabalhadora assalariada. Isto pode funcionar sem tropeços em países capitalistas desenvolvidos, onde praticamente não existem classes trabalhadoras não-assalariadas. No Brasil, porém, o campesinato, o artesanato e o pequeno comércio ainda permanecem uma classe trabalhadoras tendo presença na sociedade, sem que as relações de produção internas a essas classes sejam mediadas pelo salário. É evidente que isso vem se modificando pela crescente expansão das relações mercantis capitalistas, mas o campesinato, o artesanato e o pequeno comércio ainda não foram extintos como frações de uma classe social específica.

 

Apesar disso, muitos dos estudiosos acadêmicos que estudam as classes sociais se referem a uma classe trabalhadora única, sem fazer distinção entre a classe trabalhadora que vive de salário e a classe trabalhadora que é proprietária de meios de produção e vive da extração da renda da terra ou de seu próprio trabalho direto, como os artesãos e pequenos comerciantes. Alguns, como Waldir José de Quadros, Denis Maracci Gimenez e Davi José Nardy Antunes chegam a dizer que a massa trabalhadora engloba os trabalhadores pobres que se encontram entre os miseráveis e a baixa classe média. Dessa forma, fazem uma generalização conceitual que pouco ou nada define.

 

Jessé Souza, por seu lado, afirma que o trabalhador moderno do setor competitivo tem que ter incorporado, ou seja, tornado corpo, reflexo automático e naturalizado, tendo a disciplina e o autocontrole necessário ao ritmo das máquinas como o conhecimento para sua operação bem sucedida. É esse tipo de incorporação de capital cultural que caracterizaria as classes trabalhadoras modernas e que reencontraríamos nos “batalhadores”. Portanto, cunhou o conceito de batalhadores para as classes trabalhadoras modernas que teriam incorporado o capital cultural que lhes permite conhecimento e operação bem sucedida das máquinas.

 

Em outras palavras, temos classes trabalhadoras, um plural que demandaria conhecer os sujeitos singulares, que seriam os batalhadores, uma qualidade que, como comentamos anteriormente, pode até mesmo agregar setores da burguesia. Depois, temos a incorporação do capital cultural, que parece ser a aquisição do conhecimento necessário para a operação das máquinas modernas.

 

Supomos que essas máquinas possam ser os robôs das montadoras, os computadores e os softwares que controlam o andamento das linhas de montagem, ou a operação de colheitadeiras automatizadas, as máquinas operatrizes programadas, e uma série considerável de equipamentos aos quais foram incorporados sistemas eletrônicos de comando e de controle operacional. Paradoxalmente, se verificarmos a situação real, quanto mais as máquinas incorporam sistemas científicos e tecnológicos, menos conhecimentos profundos são necessários a seus operadores.

 

A rigor, os trabalhadores que operam tais máquinas precisam saber ler, ou ter bons ouvidos, para entender as instruções escritas ou ditadas pelas próprias máquinas. Onde o conhecimento, ou capital cultural, precisa realmente ser incorporado em profundidade é na pesquisa e na transformação das ciências em novas e altas tecnologias. Isso faz com que o trabalhador moderno, em especial o dos setores competitivos, tanto da área industrial, quando agrícola, comercial e de serviços, tenda a ser cada vez mais um trabalhador de conhecimento ou escolaridade média, substituível ou totalmente descartável a qualquer momento.

 

Portanto, também paradoxalmente, o capitalismo de países medianamente desenvolvidos precisa, ao mesmo tempo, de trabalhadores com escolaridade média genérica para os setores competitivos, e trabalhadores com escolaridade média e qualificação profissional para os setores considerados mais atrasados, como os fordistas ou tayloristas. Estes, embora também sejam competitivos, tendem a desaparecer e dar lugar aos de mais alta produtividade, à medida que o capitalismo substitui cada vez mais, com seu desenvolvimento científico e tecnológico, o trabalho vivo pelo trabalho morto. Ou seja, tende a intensificar a existência de uma população excedente que, crescentemente, deixa de desempenhar o papel de exército industrial de reserva.

 

É isso a que Sonia Fleury se refere quando diz que a marginalidade social dos trabalhadores foi inserida na análise do processo de exploração capitalista. Para ela, essa marginalidade torna-se inútil para funcionar como exército industrial de reserva e rebaixar salários. Ela só pode se inserir de forma precária e instável no mercado de trabalho, em virtude da incapacidade de as relações capitalistas se generalizarem. O que é cada vez mais verdadeiro para o capitalismo desenvolvido, mas não para o capitalismo subdesenvolvido.

 

Neste, as forças produtivas ainda se encontram num baixo estágio de desenvolvimento científico e tecnológico, como é o caso do Brasil e de uma série de outros países periféricos, podendo fazer com que o exército industrial de reserva ainda desempenhe seu velho papel de atiçar a concorrência entre os trabalhadores e rebaixar salários. Tudo depende de que o país se liberte das amarras da estagnação neoliberal e retome um desenvolvimento econômico e social, seja de tipo capitalista ou de tendência socialista.

 

O que inclui a retomada da industrialização e o consequente aumento da fração industrial da classe trabalhadora assalariada, colocando na ordem do dia, como necessidade, tanto a escolarização quanto a qualificação profissional. Isto, tendo em conta que, nas condições atuais do mundo, a industrialização de qualquer país subdesenvolvido será obrigada a combinar elementos das várias revoluções tecnológicas realizadas pela humanidade, num processo muito mais complexo do que aqueles vividos, por exemplo, pelos anteriores surtos brasileiros de industrialização.

 

Nesse sentido, Elísio Estanque tem razão em acentuar que a classe trabalhadora assalariada do Brasil ainda é pouco qualificada. No entanto, ao aproveitar a classificação de Ricardo Antunes, ele também chancela a confusão entre tal classe trabalhadora e a “classe-que-vive-do-trabalho”, de Antunes. Afinal, a “classe-que-vive-do-trabalho” é aquela classe que se apropria da maior parte do resultado da atividade da força de trabalho. Tal classe não é o proletariado, ou a classe trabalhadora assalariada, é a classe proprietária dos meios de produção, a burguesia. O trabalhador, ao contrário, faz parte da “classe-que-vive-da-venda-de-sua-força-de-trabalho-em-troca-de-um-salário”. Esta classe produz o trabalho, corporificado em produtos ou mercadorias, mas é alienada desse resultado pela apropriação privada efetivada pelo patrão, que faz parte da “classe-que-vive-do-trabalho”.

 

Isto é apenas uma amostra da confusão conceitual que vigora na análise das classes sociais, em especial em relação ao proletariado.

O que levou Estanque a supor que essa classe teria exorbitado seus consumos precários, aliciada pela miragem discursiva da mídia e do poder vigente, para satisfação dos credores e de alguns agiotas ligados ao mundo da finança e do crédito. Conclui, então, que se trata de uma “imaginada-classe-que-vive-do-trabalho”, numa operação mental que tenta eliminar uma suposta classe por ter se deixado enganar pela publicidade da fração financeira da burguesia.

 

Porém, a classe trabalhadora assalariada, proletariado, ou classe-que-vive-da-venda-de-sua-força-de-trabalho-em-troca-de-um-salário, é espoliada não só pela burguesia, ou classe-que-vive-do-trabalho, mas também pelo Estado. Para exemplificar essa situação, Sonia Fleury, com base em dados do IPEA, de fevereiro de 2011, lembra que os trabalhadores que ganham dois salários mínimos despendem quase 50% com impostos. Ou seja, mesmo que eles tenham exorbitado seus consumos precários, com as facilidades do crédito, na verdade apenas tentaram compensar suas necessidades há muito reprimidas.

 

No Brasil, essa classe-que-vive-da-venda-de-sua-força-de-trabalho-em-troca-de-um-salário chegou a ter uma razoável qualificação profissional até os anos 1970. Tal qualificação, porém, não teve continuidade, seja pela crise de desenvolvimento do capitalismo brasileiro de então, seja pela estagnação econômica dos anos 1980, e pela destruição neoliberal dos anos 1990. Nessas condições, a partir de 2003, a tentativa de retomada do desenvolvimento das forças produtivas no Brasil, ainda atrasadas do ponto de vista científico e tecnológico, encontrou pela frente uma barreira constituída pelas gerações abandonadas à própria sorte durante mais de 25 anos.

 

Talvez sem levar em conta esse contexto histórico, Claudio Salm e Lígia Bahia tenham concluído que a nova estrutura ocupacional, com a crescente importância do emprego em serviços, teria se distanciado da cultura da classe operária tradicional, uma cultura que valorizava os ofícios. Saber falar de forma correta e articulada teria se tornado tão ou mais importante do que saber fazer. Concluíram daí que a escolaridade regular passou a ter crescente importância em relação ao domínio de um ofício manual.

 

Jessé Souza, quanto a isso, foi mais longe. Afirmou que, com condições políticas e econômicas favoráveis, os setores que lograram incorporar, seja por socialização religiosa tardia, seja por pertencerem a famílias comparativamente mais bem estruturadas – malgrado o ponto de partida desvantajoso comum a todas as classes populares –, as pré-condições para o desempenho do papel social do “trabalhador útil” podem ascender socialmente. O que volta a reintroduzir a discussão em torno dos conceitos decorrentes da análise das classes e da mobilidade social.

 

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Wladimir Pomar é escritor e analista político.

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