Correio da Cidadania

Classes e luta de classes: formação do proletariado

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Os trabalhadores assalariados foram se conformando como classe quando a burguesia comercial inglesa passou, a partir do século 17, a contratar os antigos camponeses expulsos dos campos pela revolução agrícola. Eles viviam numa vagabundagem forçada, ao serem expulsos das terras a que pertenciam e serem expropriados de seus meios de produção, tornando-se livres para trabalharem nas manufaturas e em qualquer outra atividade, em troca de salários.

 

A rigor, essa não foi uma invenção inglesa. O Estado imperial e militarista romano, por volta do século 10, já utilizara o mesmo tipo de relação de produção em suas fábricas estatais de armamentos. Contratava trabalhadores livres, pagava-os com salários, e os denominava de proletários. As guildas artesanais do feudalismo também pagavam soldos a seus artesãos. Porém, os proletários modernos não surgiram, como pensam alguns, dos trabalhadores de ofícios daquelas guildas. Na verdade, o trabalho assalariado das manufaturas implantadas pelos comerciantes se chocou não só contra as ordenações feudais das guildas, mas também com os mestres de ofícios que pretendiam manter inalterado seu sistema produtivo artesanal. O que só foi possível porque a revolução agrícola havia colocado à disposição das manufaturas a massa imensa de pobres livres.

 

Em praticamente todos os países que ingressaram no capitalismo, a libertação e a expropriação forçada do campesinato, e sua transformação em força de trabalho livre, constituiu uma das condições para a formação da classe proletária, ou dos trabalhadores assalariados. Enquanto na Inglaterra isso se deu, precocemente, através das enclusures para pastos de ovelhas, na França, foi preciso a revolução que liquidou o sistema feudal. Nos Estados Unidos foi necessário travar a guerra de secessão para libertar os escravos das plantations de algodão. Na Alemanha foi preciso a reforma de Bismark, enquanto no Japão ocorreu a restauração Meiji e a reforma industrializante.

 

No Brasil esse processo se deu aos solavancos. A libertação dos escravos, sem uma reforma agrária correspondente, apenas permitiu que eles se tornassem camponeses agregados dos latifundiários. Não eram servos feudais, por serem legalmente livres, mas eram submetidos a obrigações típicas do feudalismo, como o cambão, a versão cabocla da corveia, e a obrigação de entregar parte da produção como paga pelo favor de plantar na terra do latifundiário.

 

Além disso, a liberdade de serem proprietários de seus próprios meios de produção, com exceção da terra, levava os camponeses a se endividarem num processo sem fim de servidão aos proprietários fundiários. Essa servidão por dívida só era superada com a fuga das calamidades naturais, forçando o êxodo rural, ou com a morte. Nessas condições, os surtos industrializantes das décadas de 1910, 1930-40 e 1950 foram propiciados pelas forças de trabalho da imigração estrangeira, pelo exército de reserva constituído por antigos quilombolas, e pelas migrações internas causadas pelas secas do Nordeste.

 

As classes operárias de cada um desses períodos tinham em comum o fato de estarem subordinadas a relações assalariadas de trabalho. Mas elas foram diferentes, umas das outras, pelos meios técnicos de produção empregados em cada época, pelos diferentes problemas enfrentados no ambiente de trabalho, pelos bens que podiam consumir com seus salários, e até pelas leis que regiam sua vida na sociedade.

 

Nas décadas de 1910-20, as lutas dos trabalhadores eram simplesmente tratadas como questão policial. Nas décadas de 1930, 1940 e 1950, a polícia continuou sendo utilizada para sufocar as lutas trabalhistas, mas a legislação de paz social varguista reconhecia que tais lutas tinham caráter social e que os trabalhadores deveriam ter proteções e direitos legais básicos.

 

Já o surto industrializante dos anos 1960-70, para ser realizado na escala projetada pelos capitais exportados dos países desenvolvidos, necessitou forças de trabalho livres numa escala correspondente. A modernização do latifúndio e sua transformação em unidades agrícolas capitalistas, representando também a transformação da maior parte dos latifundiários de velho tipo numa fração agrícola da burguesia, foi o instrumento utilizado pelo regime militar para expulsar milhões de camponeses das terras agrícolas e forçar sua migração para as cidades que implantavam projetos de indústrias e de infraestrutura.

 

Desse modo, o milagre econômico do período ditatorial teve por base a força de trabalho barata expulsa dos campos do Nordeste e de outras regiões do país. A classe trabalhadora assalariada formada nesse período, fundamentalmente de origem camponesa, era qualitativamente diferente do proletariado das décadas anteriores. Os bens de consumo para sua reprodução já não eram exatamente os mesmos das antigas gerações. Embora tivesse condições de se associar a sindicatos, uma conquista das antigas gerações, não possuía experiência de luta no chão de fábrica.

 

Ela teve que reaprender novamente todo o caminho. Levou mais de uma década para descobrir que a exploração de tipo capitalista apresentava apenas vantagens comparativas aparentes em relação à exploração e à servidão latifundiária. Através de operações tartarugas, organização de grupos de prevenção de acidentes, e de outras formas de organização e luta, chegou às greves de 1978, que contribuíram decisivamente para dar fim à ditadura. Por outro lado, a crise dos anos 1970, que deu fim àquele milagre, deixou excluída do mercado uma imensa parte da massa camponesa que havia migrado para as cidades.

 

Essa massa populacional excedente não pode conhecer as delícias e os transtornos do emprego formal. Teve que viver, se reproduzir e crescer em periferias insalubres, sem serviços públicos de saúde e de educação. Teve que aprender a se manter por meio de bicos, como a venda de água, biscoitos e balas nas vias engarrafadas das grandes cidades. Ou de carretos, obras e outros biscates eventuais, no chamado mercado informal, no qual os salários eram estipulados por dia ou por semana, sem quaisquer direitos legais. Ou, ainda, por meio do banditismo, que muitas vezes deu aos jovens, sem escolaridade, a fugaz sensação de riqueza antes de serem abatidos em refregas com a polícia.

 

Essa situação se agravou durante os anos 1980 e 1990, em virtude daquilo que Sonia Fleury chamou de fortes processos de reestruturação produtiva e organizacional, caracterizados pelo enxugamento da força de trabalho, combinado com mudanças sócio-técnicas. A quebradeira do parque industrial brasileiro, intensificando o desemprego industrial e de serviços, teria sido acompanhada de mudanças tecnológicas nas indústrias e nos serviços restantes, a exemplo do trabalho em telemarketing, no qual a super-exploração seria realizada através de ritmos intensos em condições precárias, convivendo com o desenvolvimento tecnológico no ramo das telecomunicações.

 

Ela concluiu daí que, a partir de então, passou a ser desenhada uma nova morfologia do trabalho, acarretando a flexibilização e a desregulação de direitos sociais, a terceirização e novas formas de gestão da força de trabalho, embora ainda convivendo com o fordismo em certas áreas. O capitalismo brasileiro das duas últimas décadas do século 20 parecia haver regredido aos períodos iniciais de seu desenvolvimento na Europa, impondo às forças de trabalho formas de exploração não contidas na legislação trabalhista, em especial para os trabalhadores menos qualificados. Porém, na prática, foi o desemprego do período, ao se intensificar de forma brutal e inchar ainda mais a massa de excluídos, que permitiu ao capital intensificar a concorrência entre os trabalhadores e impor a eles aquelas formas de exploração.

 

Assim, na virada do século e do milênio, a fração industrial da classe trabalhadora assalariada havia sido reduzida, o mesmo ocorrendo com parcelas significativas das frações comercial e de serviços, ao mesmo tempo em que a fração agrícola se manteve relativamente estável. Essas mudanças, em grande parte resultantes da devastação neoliberal, coincidiram tanto com o fenômeno da desindustrialização e desemprego estrutural dos países capitalistas desenvolvidos, quanto com as reformas socialistas de mercado chinesas e com o desmonte do socialismo de tipo soviético.

 

Estavam dados, assim, os pressupostos para colocar em dúvida os antigos conceitos da economia política clássica, em particular aqueles adotados pelo marxismo, e promover uma razoável confusão teórica nos critérios de análise das classes, especialmente aqueles relacionados com a classe dos trabalhadores assalariados, ou proletariado.

 

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Wladimir Pomar é analista político e escritor.

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