Correio da Cidadania

2014: instabilidade, incertezas e lutas

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2014 é um ano que começa já marcado por efemérides. 30 anos do comício das Diretas Já, 50 anos do golpe militar de 64, a copa do mundo novamente no Brasil, eleições presidenciais. Ao contrário de 2013, que não trazia inscritos grandes datas e acontecimentos históricos, mas que protagonizou as maiores e mais intensas manifestações populares dos últimos tempos.


As surpresas que são reservadas para 2014, para além dos fatos marcantes que já estão no radar, não há como adivinhar. Nada faz supor, no entanto, que será um ano de calmaria.


As avaliações prospectivas desse Correio no começo de 2013 já prognosticavam a limitação de visão estrutural e um estreito arco de ação redistributiva nos quais vinham se enquadrando as medidas do governo que procuravam impulsionar uma economia em crise. Agora, neste início de ano novo, estão evidentes, para além dessa miopia, um repique e reincidência do governo no conservadorismo econômico a la FMI, respondendo às pressões e chantagens do mercado financeiro e do grande capital e fazendo ouvidos moucos às vozes eloquentes que vieram das ruas em 2013.


Como de praxe, as maiores vítimas serão as populações que há séculos sofrem com a ausência e péssima qualidade de serviços públicos. Ainda que favorecidas pela farra do consumo, com TVs e celulares de último tipo, essas populações certamente voltarão às ruas, à medida que assistirem às finalizações das obras faraônicas voltadas à copa, enquanto sofrem para terem acesso à saúde, educação, segurança pública e transporte de qualidade.


Nosso entrevistado especial para esta edição especial prospectiva é Pablo Ortellado, professor e pesquisador da USP e também militante pela democratização e expansão das políticas culturais. Para Ortellado, “2014 vai ser um teste para a nossa democracia. Porque os compromissos que foram assumidos pela Copa do Mundo são muito pesados, são muito antidemocráticos. Foram compromissos muito grandes, assumidos de uma maneira, digamos, vertical pelo governo federal, envolvendo o respeito aos direitos civis e aos nossos direitos políticos. Assim, nós temos restrições à liberdade de expressão, restrições à liberdade de associação e em relação à capacidade que temos de fazer oposição. Nós abrimos mão da nossa soberania. Nós somos obrigados a aceitar e implementar um conjunto de leis e medidas de proteção de propriedade intelectual que são contrapartidas ao acordo feito com a FIFA. (...) Os custos democráticos são muito altos. Eles envolvem a suspensão de direitos civis básicos, as remoções de população em cidades, projetos urbanísticos de grande impacto social”.


Quanto à cobertura midiática de tantos acontecimentos singulares nesses últimos meses, Ortellado não tem grandes esperanças no avanço da pauta da regulamentação dos meios de comunicação, “a grande ausência das três últimas gestões do Partido dos Trabalhadores”, em 2014. Acredita, no entanto, que o legado do aprendizado com as mobilizações sociais de 2013 reflita em mais movimentações em 2014, de forma a pressionar o governo em prol de políticas públicas a favor da população.


Leia a entrevista completa a seguir.


Correio da Cidadania: Falar de 2013 é falar do ano em que a população brasileira foi massivamente às ruas de todo o país em busca de direitos. Como você enxerga essas manifestações, pensando em todo o processo anterior de mobilização que a elas conduziu, no estalar e dimensão adquirida no mês de junho e no momento posterior à efervescência inicial?

 

Pablo Ortellado: Eu acho que o grande legado das manifestações foi a conquista da redução das passagens. O que a gente viu em junho de 2013 foi a maturação de um processo de pelo menos dez anos, no qual o aumento de passagens tem gerado reações de grupo de jovens urbanos que saem às ruas para protestar contra as tarifas. Aconteceu mais de uma dezena de vezes, em várias capitais brasileiras, desde 2003.

 

É um processo que foi se acumulando, maturou e explodiu em 2013, quando as mobilizações em São Paulo e Rio de Janeiro contra o aumento das passagens serviram de modelo para conquistas de reduções em mais de cem cidades brasileiras, com mais de 200.000 habitantes.

 

É uma vitória sem precedentes da mobilização popular, que reacendeu outras reivindicações. Algumas bem sucedidas, a maioria mal sucedida. Mas terminou fornecendo uma espécie de paradigma de que a mobilização popular e direta pode dar resultados muito concretos.

 

Correio da Cidadania: O que pensa da forma com que os vários níveis de governo, municipal, estadual e federal, enfrentaram e têm enfrentado tantos e legítimos protestos populares, no que se refere ao atendimento às demandas sociais?


Pablo Ortellado: Como foi uma explosão muito difusa pelo território nacional, com muitas formas de reação, é difícil fazer uma apreciação geral. Para além das reações imediatas de governos, que reduziram as passagens numa parcela muito grande de municípios brasileiros (uma reação positiva, pois reconheceram a força e a legitimidade da demanda), penso numa segunda demanda, que foi mais ou menos transversal em todas as mobilizações de junho: a reforma da polícia.

 

A regulamentação do uso de armas menos letais, o fim dos autos de resistência, a desmilitarização da polícia, entre outros pontos, foram reivindicações mais ou menos transversais a todos os grupos, e não houve nenhuma resposta por parte dos governos estaduais, que são responsáveis pela polícia, ou do governo federal, que tem uma política federal de segurança pública.

 

Essas demandas foram muito pouco atendidas, muito pouco escutadas e levadas em consideração e são, para mim, o grande déficit de 2013.

 

Correio da Cidadania: O que diria, neste sentido, sobre o enfrentamento policial aos manifestos que têm se espalhado por todo o país?


Pablo Ortellado: A atuação da polícia foi muito ruim. Foi muito violenta, marcada por abusos. E é por esse motivo que o tema da reforma da polícia está no alto da agenda dos manifestantes, embora esteja num lugar muito baixo na agenda dos governantes.

 

Essa má atuação da polícia, muito violenta, muito arbitrária, totalmente fora da lei, totalmente desregulada, exige um conjunto de medidas regulatórias que precisam ser enfrentadas. A mais óbvia delas é a regulamentação do uso de armas menos letais, o fim dos autos de resistência e a desmilitarização da polícia.

 

Correio da Cidadania: O que dizer, face a esse contexto, dos chamados black blocks e de toda a polêmica que têm trazido à cena política nacional? Como encara este fenômeno?

 

Pablo Ortellado: Eu acho que o black block foi um fenômeno superdimensionado e muito criminalizado. Este fenômeno dos black blocks foi tratado pelo poder público como uma ação absolutamente arbitrária, não razoável, beirando o irracional, a criminalidade e o terrorismo. Quando na verdade é uma tática que tem uma história, um objetivo discutido. Como todo tipo de tática, de estratégia, tem a sua razão de ser.

 

Essa tática nasceu do esgotamento das fórmulas de desobediência civil não violenta, no contexto dos Estados Unidos, com o objetivo de resgatar a atenção dos meios de comunicação que não prestavam mais atenção na violência policial. Por meio de um ato de desobediência e a destruição de propriedade privada, que é o coração do Direito (dentro da atual ordem socioeconômica), com sua destruição simbólica, resgatou-se a atenção dos meios de comunicação que, na cobertura dos protestos, não davam mais atenção aos manifestantes e, sobretudo, à violência policial. Tal violência recaía sobre os manifestantes de modo que tornava impossível a tática de desobediência civil não violenta.

 

Como reação, desenvolveu-se essa estratégia de destruição de propriedade, que chama a atenção dos meios de comunicação e transmite uma mensagem ao poder econômico, ao poder do Estado, à transnacionalização da economia e assim por diante.

 

Ela tem uma racionalidade, do ponto de vista dos seus métodos de ação. É uma infração pequena. É uma infração ridícula. É quebrar vidraças e é de natureza não violenta. Mas foi muito criminalizada. Foram criadas operações especiais, investigações especiais, discutiu-se utilizar a lei contra o crime organizado com grupos que estavam empreendendo essas táticas... Com certeza, se a lei contra o terrorismo estivesse em vigência, já seria mobilizada para tal caso, uma absurda desproporção em relação ao que significa efetivamente o black block.

 

Correio da Cidadania: Com a proximidade da Copa e as exigências mercadológicas da FIFA, o país prepara algumas leis de exceção, a exemplo dos tribunais da copa e da possível tipificação criminal do terrorismo, algo inédito no país. Além disso, desde já avançam nos parlamentos outras leis discutíveis, como aquelas que proíbem máscaras nos atos e versam sobre “formação de quadrilha” em manifestações. O que você diria desse quadro, o que pensa que viveremos nas ruas em 2014?

 

Pablo Ortellado: 2014 vai ser um teste para a nossa democracia. Porque os compromissos que foram assumidos pela Copa do Mundo são muito pesados, são muito antidemocráticos. Foram compromissos muito grandes, assumidos de uma maneira, digamos, muito vertical pelo governo federal, envolvendo o respeito aos direitos civis e aos nossos direitos políticos.

 

Assim, nós temos restrições à liberdade de expressão, restrições à liberdade de associação e em relação à capacidade que temos de fazer oposição. Nós abrimos mão da nossa soberania. Nós somos obrigados a aceitar e implementar um conjunto de leis e medidas de proteção de propriedade intelectual que são contrapartidas ao acordo feito com a FIFA. E tudo com um custo democrático muito pesado. Porque os retornos prometidos em termos de legado, visibilidade do país e aumento do turismo internacional são projetados para o futuro. E, de acordo com os estudos recentes feitos pela universidade, são retornos muito duvidosos.

 

No entanto, os custos democráticos são muito altos. Eles envolvem a suspensão de direitos civis muito básicos, as remoções de população em cidades, projetos urbanísticos de grande impacto social. Já estamos pagando, a população brasileira já está pagando o preço de tudo, e o retorno é muito improvável, talvez incerto.

 

Correio da Cidadania: Como tem visto a atuação da mídia em face a todos estes acontecimentos?

 

Pablo Ortellado: Eu acho que os meios de comunicação melhoraram a cobertura. Estão muito mais sensíveis com as mobilizações sociais e os protestos de rua, obviamente mais do que eram em junho, mas ainda prestam muito pouca atenção na violência policial.

 

A violência policial é o tema mais sub-noticiado, principalmente se tomarmos como comparação a criminalização dos movimentos sociais. A destruição de vidraça ganha muito mais destaque nos meios de comunicação de massa do que o assassinato de pessoas na favela da Maré.

 

Eu acho que desproporções como esta, entre a cobertura da destruição de vidraças e o assassinato de seres humanos, é o grande déficit que ainda notamos na cobertura dos meios de comunicação, no que diz respeito a essa nova mobilização social.

 

Correio da Cidadania: O que pensa da aparição de outra das novidades de 2013, no caso, a Mídia Ninja e atores similares?

 

Pablo Ortellado: Acho que houve vários novos atores que tentaram, por novos meios, sobretudo a internet, romper o padrão de cobertura dos meios de comunicação e contribuíram para chamar a atenção pra algumas coisas que os meios não notaram.

 

Mas, por mais que o advento seja promissor, acho que uma parte muito grande, principalmente ao alcance de massa, em volume e atenção, ainda está muito concentrada nos grandes meios. Eles ainda têm uma forte responsabilidade, por conta do grande poder que detêm, capazes de atingirem populações de dezenas de milhões de pessoas.

 

Correio da Cidadania: O ano de 2013 encerrou-se com adiamento da votação do marco civil da internet. Como tem enxergado a condução da pauta da urgente democratização, regulamentação e regulação das comunicações nesse cenário?

 

Pablo Ortellado: Tenho esperanças de o Marco Civil ser votado em 2013. Nesta semana (a primeira de dezembro), houve uma movimentação no congresso pra tentar acelerar sua votação. Vamos ver. Mas penso que a pauta da regulamentação dos meios de comunicações é a grande ausência das três últimas gestões do Partido dos Trabalhadores, que carrega tal reivindicação em seus programas, porém, sem dar prioridade política. Acredito que nada aconteça em 2014, ano de eleição, por ser um tema extremamente sensível aos meios de comunicação, que ainda causam muito impacto eleitoral. Fico aguardando mais um pouco, sem muita esperança, se em 2015 veremos mudança de tratamento a este tema.

 

O Marco Civil talvez seja a iniciativa mais avançada, com mais chances de ser aprovada. Mas precisamos fazer a revisão da política de concessão de TV, a regulamentação da propaganda, dos conteúdos e seu perfil, da propriedade cruzada, ampliar o espaço dos meios comunitários e não comerciais, fortalecer o sistema de radiodifusão pública... Um enorme rosário de medidas para o campo da comunicação, que mal começaram a ser discutidas e que creio ser o grande déficit dos últimos dez anos.

 

Correio da Cidadania: Se 2012 já havia se encerrado marcado pelo chamado Mensalão, 2013 o trouxe à mesa de modo que se pode dizer espetacular. O que pensa deste episódio e de sua visibilidade e repercussão pela mídia? O que tudo isto diz de nosso contexto político?

 

Pablo Ortellado: Vou estender meu juízo para 2014, onde teremos o julgamento do chamado mensalão mineiro, teremos o encaminhamento dos escândalos de corrupção do metrô de SP;  espero 2014 para ver se o tratamento dos meios de comunicação e do nosso sistema judiciário a estes temas será equivalente ao tratamento dado ao chamado caso do mensalão.

 

Eu fico aguardando ansiosamente, pra ver se existe de fato uma disposição do sistema de encarar com muito rigor tais acusações de corrupção, independentemente de procederem ou não; se esta disposição independe de coloração partidária ou se simplesmente esse esforço sobre o mensalão petista foi desigual e orientado pelo interesse de um partido político.

 

Correio da Cidadania: A espionagem internacional esteve no centro dos debates sobre mídia e comunicações em 2013. O que pensa de toda a celeuma em torno à questão e à forma como governo e mídia responderam a ela?

 

Pablo Ortellado: Acho que o governo fez bem, reagiu de forma relativamente boa. A Dilma respondeu com força nas arenas internacionais a certas pressões que sofreu, no sentido de responder com mais pragmatismo e menos força retórica. Deu uma resposta dura, que pensei ser a mais adequada ao momento. Esse episódio permitiu que o Marco Civil, que andava meio travado, retornasse à pauta legislativa. Espero que seja aprovado.

 

Mas, na verdade, a grande medida regulatória que teria impacto sobre esse cenário, a lei de proteção de dados pessoais, está completamente travada. Ainda está no Ministério da Justiça, não foi enviada ao Legislativo. É a principal lei que permitirá à cidadania brasileira ser protegida dos abusos dos governos.

 

Correio da Cidadania: Alguma diferença relevante entre os dois governos, Lula e Dilma, no tema específico das comunicações, e também em suas respectivas conduções política, econômica e social da nação? Vislumbra chances de avanço em 2014?

 

Pablo Ortellado: Acho que eles são muito parecidos, mais parecidos que diferentes. Esperava-se mais. Os avanços que temos são desdobramentos do que aconteceu nos períodos anteriores. Não vi nada no governo Dilma de muito novo acontecer. Espero que, num eventual novo mandato, nós tenhamos novidade. Principalmente nos campos onde temos políticas realmente muito ruins, isto é, meio ambiente, cultura e comunicação.

 

Correio da Cidadania: Qual a sua opinião quanto ao cenário eleitoral que se está armando para 2014? Arrisca algum palpite?

 

Pablo Ortellado: Acho que o cenário para 2014 é de reeleição da Dilma, como mostram as pesquisas de opinião, a não ser que os protestos embaralhem as cartas, uma possibilidade bastante grande. Por isso, é muito importante o governo rever os compromissos que assumiu e também ter uma postura de respeitar o direito de discordar. Os cidadãos brasileiros têm direito de discordar dos compromissos assumidos pelo governo em nome dos megaeventos esportivos. A cidadania brasileira tem o direito de discordar e um governo progressista deve reconhecer tal direito.

 

Correio da Cidadania: Acredita que haja espaço nesse cenário para a entrada de uma esquerda que apresente novidades e receba atenção do grande público eleitor?

 

Pablo Ortellado: Não. Acho que teremos mais do mesmo. Penso que teremos a continuação de alguns avanços sociais que tivemos, até significativamente. O melhor cenário é a continuação do que já está: alguns avanços sociais e as demais áreas muito comprometidas. Segurança pública muito ruim, política ambiental e indígena muito ruins, política cultural estacionada e política de comunicações num verdadeiro desastre.

 

Correio da Cidadania: Você possui uma visão esperançosa para o futuro das movimentações sociais que vêm rondando o mundo, desde a primavera árabe até a grande quantidade de movimentos ‘Occupy’ que têm varrido diversos países, passando por alguns protestos massivos na Europa e, agora, os do Brasil em 2013?

 

Pablo Ortellado: O meu otimismo todo reside neles. Penso que o povo brasileiro acabou de dar uma grande demonstração de força e conseguiu uma grande conquista social, que foi a redução da passagem em mais de 100 grandes cidades brasileiras. Espero que seja um aprendizado de que a luta e a mobilização sociais trazem benefícios sociais concretos. E que a difusão de tal aprendizado permita avanços nos setores onde a política institucional está bloqueada há dez anos, através das más performances do governo federal em política indigenista, ambiental, cultural e de comunicações. Espero que esse legado reflita em mobilização social que pressione o governo nas áreas onde seu desempenho é muito ruim.

 

Valéria Nader, jornalista e economista, é editora do Correio da Cidadania; Gabriel Brito é jornalista.

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