Correio da Cidadania

Estado de exceção é o “cacete”

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“Madeira de dar em doido vai descer até quebrar”. Vandré

 

Diante da barbárie instalada e da descarada ação autoritária do Estado brasileiro nas manifestações, muitos têm utilizado a expressão “Estado de exceção”, indicando o risco da naturalização de práticas que desconsideram o ordenamento jurídico estabelecido e os princípios de um suposto “Estado de direito”, que teria substituído a ditadura militar.

 

Compreendemos a intenção daqueles que assim procedem no justificado intuito de defesa da ordem constitucional, de princípios elementares na defesa dos direitos humanos e de práticas, digamos, civilizadas. Há, no entanto, um risco que reside no fato de supor que existe uma forma, considerada virtuosa, que consiste no respeito formal das regras e procedimentos, sendo os “desvios” apenas anomalias que, se controladas, tudo funcionaria bem. Infelizmente, a realidade da sociedade brasileira parece provar que a exceção é a regra.

 

O Estado de classe no Brasil, que tem por fundamento a defesa da ordem da propriedade privada e as condições que garantam a acumulação de capitais, sempre agiu combinando diferentes formas de garantia da ordem, ora predominando formas repressivas, ora na busca da formação de consensos. O que importa ressaltar é que, mesmo nos momentos nos quais a busca por formas de legitimação e de hegemonia predominam, o aspecto repressivo nunca foi relegado.

 

Tal aspecto fica evidente na transição da ditadura burguesa em sua forma militar para uma ditadura burguesa na forma de uma democracia, ou de um denominado “Estado de Direito”. É, sem sombra de dúvida, de grande relevância que aspectos formais sejam garantidos, como a garantia do habeas corpus, não ser preso sem uma acusação formal e dentro do rito de um devido processo legal, o direito de ampla defesa, o cumprimento da pena em condições estabelecidas pela Lei de Execuções Penais, entre outros.

 

A ilusão, no entanto, é a suposição de que, uma vez garantidos no ordenamento jurídico e no quadro de uma ordem institucional que torne praticável, tais direitos e práticas passem a ser efetivos. Os chamados “desvios” seriam reminiscências de um Estado autoritário que vicejam nos interstícios de um Estado de Direito, como práticas anômalas. Parece-nos que esta aproximação desconsidera que tais práticas permanecem porque têm uma funcionalidade específica na ordem da sociedade de classes a ser mantida; e que se fundamentam em contradições que se reproduzem manifestando-se em desigualdades de fato que a igualdade formal não consegue reverter. Como dizia Martín Fierro, genial personagem gaúcho de José Hernández, “a justiça é como uma teia de aranha: quando o bicho é pequeno, o prende, quando é grande, a rompe”.

 

Vamos a alguns exemplos, todos ocorridos no quadro de um Estado Democrático de Direito. O primeiro condenado por participar nas manifestações de rua que eclodiram no Brasil em 2013 é um morador de rua chamado Rafael Vieira, acusado pelo Ministério Público e condenado pelo juiz Guilherme Shilling Pollo Duarte, por estar de porte de dois frascos de desinfetante e água sanitária na rua, no momento de uma manifestação. Para o Ministério Público, tratava-se de “aparato incendiário ou explosivo” e, para o digníssimo juiz, “a utilização do material incendiário, no bojo de tamanha aglomeração de pessoas, é capaz de comprometer e criar risco considerável à incolumidade dos demais participantes”.

 

Mesmo considerando o risco que um material de limpeza poderia produzir na imundice da ordem política reinante, não nos parece ser esta a lógica da condenação, toda ela fundada, vejam só, no depoimento de um policial civil, que alega que ele foi preso porque estava com o material na mão, material segundo o laudo da polícia, designado como “artefatos semelhantes a um coquetel molotov”. Foi suficiente para que o Ministério Público transformasse isso em porte de material explosivo e enquadrasse o morador de rua no inciso III, artigo 16 do Código do Desarmamento.

 

Duas observações simples, que constam do próprio laudo da polícia: o recipiente não continha panos ou trapos que poderiam servir como mechas e o recipiente era de PLÁSTICO, o que impede a fragmentação e não serve como coquetel molotov! Rafael Vieira tem 26 anos, é negro e vem de duas sentenças cumpridas no sistema prisional.

 

Uma mulher de 19 anos foi condenada em 2005 por roubar um pote de manteiga porque seu filho estava com fome. Não participava de uma manifestação e a manteiga não poderia explodir o palácio dos Bandeirantes. Passou 128 dias presa, apesar dos recursos de seu advogado que pediu a liberdade provisória de sua cliente, recursos que foram negados por quatro vezes. Depois de um recurso ao Supremo Tribunal de Justiça, ela foi condenada a quatro anos em regime semiaberto.

 

No dia primeiro de dezembro de 2013, um dos protagonistas do filme Terra vermelha, que trata da luta do povo Guarani-Kaiowá pela demarcação de suas terras, foi assassinado. Seu nome era Ambrósio Vilhalva Kaiowá. Não se trata de um caso isolado; desde 2003 foram assassinados 500 índios no país e é evidente a relação destas mortes com a luta pela demarcação de suas terras e a criminosa inoperância do governo. Durante os governos de Lula e Dilma, o número de mortes entre os indígenas cresceu em 168%.

 

Não é apenas com o sangue indígena que se tinge a terra de vermelho. A luta pela terra ceifou muitas vidas de camponeses e militantes, só nos primeiros quatro meses de 2012 foram assassinados 12 lutadores e, segundo relatório sobre os conflitos no campo no Brasil, “os conflitos pela posse de terra saltaram de 853 em 2010 até 1.035 em 2011, com um crescimento de 21,32%, assim como o aumento de 177,6% do número de camponeses ameaçados de morte (de 125 a 347)”.

 

Nos últimos dez anos a PM do Rio de Janeiro matou cerca de dez mil pessoas, a maioria jovens e negros. No conjunto destes dados chama nossa atenção os chamados “autos de resistência”. Entre 2005 e 2007 foram 707 casos de autos de resistência com autoria reconhecida, dos quais apenas 355 viraram inquéritos policiais, 19 foram encaminhados à justiça, 16 foram arquivados e só um foi levado a júri resultando em condenação.

 

Em 2012, só em São Paulo, foram 5,3 mil internações involuntárias para “tratar” dependentes químicos. Este número saltou de algo em torno de 700 internações involuntárias em 2003 para esta marca de cinco mil em 2012. E práticas semelhantes estão se disseminando nas principais capitais brasileiras, com destaque para o Rio de Janeiro.

 

Ressalto estes fatos, pois, para todos os casos descritos, há aparatos legais e parâmetros jurídicos e institucionais estabelecidos. São pobres, negros, índios, camponeses sem terra, loucos, manifestantes vândalos, que incomodam a ordem do mercado e do capital. As portas de seu barracos não precisam de mandados judiciais para serem derrubadas, seus corpus não têm direitos, podem ser presos e mantidos incomunicáveis, seus corpos desaparecem (caiu o número de mortes em confronto com a polícia e cresceu o número de desaparecidos), seus sofrimentos psíquicos atrapalham a beleza dos jardins estéreis e assépticos, sua urina cheira a mijo.

 

Para estes restos... o cacete, o porrete da ordem, a cadeia, o manicômio, os porões, sacos plásticos na cabeça, covas rasas, matagais, tapas na cara, valas comuns, celas lotadas. Não como exceção, como regra, ração diária de barbárie, exercício sistemático de arbitrariedade. Como dizia Brecht “No regime que criaram a humanidade é exceção. Assim, quem se mostra humano paga caro essa lição”.

 

Na abstração do ordenamento jurídico reina uma ordem que se choca com a carne da realidade. Na vida cotidiana das contradições, os agentes do Estado e seus aparatos operam no quadro de um pragmatismo de fazer inveja aos altos escalões do governo. A Lei de Execuções Penais determina que cada preso tenha seis metros quadrados, mas a política de garantia da ordem continua mandando gente para a cadeia num volume exponencial, o que resulta em setenta centímetros quadrados para cada preso. O que faz o agente penitenciário? Fecha a porta e espera passar seu horário de trabalho.

 

No frio da noite do deserto uma mulher sente as dores do parto. São pobres, vagam sem terra, guiados por uma estrela que perdeu seu rumo. O Estado resolveu combater profecias assassinando crianças. Eles se abrigam numa manjedoura na qual os pacientes esperam para ser atendidos em macas pelos corredores ou em um pedaço de chão sujo. Seu pai operário desempregado, sua mãe carregando no corpo a opressão de milênios sobre as mulheres, desde a reintegração de posse lá no paraíso. A criança crescerá para ser assassinada pelo Estado, não antes de passar por um julgamento duvidoso e ser torturada pelos agentes da UPP romana em Jerusalém.

 

Nos momentos finais de agonia, entre dois ladrões, um bom e outro mau – diferença desconsiderada na sentença proferida e na crucificação realizada –, o condenado do meio olha para os céus e maldiz seu pai (não o marceneiro, o outro: o Abstrato). São três os condenados que sofrem, cada um em sua cruz. Afastando o olhar, vemos nos morros ao redor centenas, milhares de cruzes sob um céu de chumbo que se fecha sobre o mundo.

 

O império que parecia eterno ruiu. O juiz continua até hoje lavando suas mãos sujas de sangue. Naquele morro, havia três condenados pelo Estado, dois ladrões e um revolucionário. Dizem que só um... apenas um... ressuscitou.

 

Um ano novo cheinho de lutas contra o Estado Burguês. É melhor preparar as cadeias, porque não vamos parar de lutar.

“É a volta do cipó de arueira no lombo de quem mandou dar”. Vandré

 

 

Mauro Iasi é professor adjunto da Escola de Serviço Social da UFRJ, presidente da Associação dos Docentes da UFRJ, pesquisador do NEPEM (Núcleo de Estudos e Pesquisas Marxistas), do NEP 13 de Maio e membro do Comitê Central do PCB. É autor do livro O dilema de Hamlet: o ser e o não ser da consciência (Boitempo, 2002).

 

Originalmente publicado em http://pcb.org.br/portal/index.php

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