Correio da Cidadania

Bergogliomania e crise (2)

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Relação de Bergoglio com grupos anti-esquerdistas armados

 

O low profile de Bergoglio no período ditatorial merece uma elucidação. Jorge Mario Bergoglio, filho de um casal de imigrantes italianos, nasceu e foi criado no bairro de Flores, Buenos Aires. Fez graduação e mestrado em química na Universidade de Buenos Aires. Durante a sua adolescência, teve uma namorada, Amalia. Ingressou no noviciado da Companhia de Jesus em março de 1958, e o completou em Santiago, capital do Chile.

 

Graduou-se em Filosofia em 1960, na Universidade Católica de Buenos Aires. Entre os anos 1964 e 1966, ensinou Literatura e Psicologia, no Colégio Imaculada Concepção, na Província de Santa Fé, e na Universidade do Salvador, em Buenos Aires (um centro histórico – e privado – da reação política). Graduou-se em teologia em 1969, e recebeu a ordenação presbiteral em dezembro desse ano. “1969” é mais do que significativo, pois foi o ano do início das insurreições populares contra a ditadura militar de Onganía, começadas em Córdoba (“cordobazo”).

 

Por esses anos, o já destacado jesuíta, hoje papa, andou vinculado a Guardia de Hierro, grupo peronista que, no quadro da efervescência social reinante, se opunha à esquerda peronista (Montoneros, Juventude Peronista e outros), que propunha a luta armada, e também às tendências cristãs (Cristianismo y Revolución, ou o Movimento de Sacerdotes pelo Terceiro Mundo, cujo principal representante, o padre Mugica, foi assassinado pela direita peronista, a já mencionada Triple A, financiada por Licio Gelli e a Loja P2), que convergiam com aquela. Tendências que percorriam a Igreja na América Latina seguindo o exemplo do padre-guerrilheiro Camilo Torres (com destaque para a “Teologia da Libertação”, nascida no Peru e desenvolvida no Brasil). As convicções políticas do futuro papa se alicerçaram nessa experiência de combate laico e religioso contra a esquerda.

 

Bergoglio emitiu seus votos na Companhia de Jesus em 1973, quando foi nomeado Mestre de Noviços, no Seminário da Villa Barilari. No mesmo ano foi eleito superior provincial dos jesuítas. Em 1980, após o período do provincialato, passou a ensinar em uma escola dos jesuítas. No período de 1980 a 1986 foi reitor da Faculdade de Filosofia e Teologia de San Miguel, concedendo honrarias acadêmicas (doutorado honoris causa) a membros da mais alta cúpula militar da ditadura, incluído o assassino e mafioso Emílio Eduardo Massera. Após seu doutorado na Alemanha, foi confessor e diretor espiritual em Córdoba. Guardia de Hierro, com a qual Bergoglio continuou vinculado, cultivava boas relações com Massera.

 

O mistério dos dois sacerdotes desaparecidos

 

Segundo Alejandro Tarruella, “Jorge Bergoglio se vinculó a los miembros de GH a partir de su participación en la Universidad del Salvador. En 1975 Bergoglio nombró en la universidad a dos miembros de GH: Francisco “Cacho” Piñón y a Walter Romero. Piñón fue quién le entregó en el año 1977 la designación de Profesor Honoris Causa al almirante Emilio Eduardo Massera”. O falecido Massera tinha concebido um plano para transformar-se no herdeiro político de Perón no pós-ditadura, chegando a publicar livros falsamente assinados por ele e um periódico, para o qual usou os serviços compulsórios de detidos-desaparecidos da ESMA, depois massacrados (com seus cadáveres também sumidos), plano afundado pela degringolada militar de 1982-1983. Bergoglio seria necessariamente peça política dessa frustrada movida, esboçada no momento de glória da ditadura dos “assassinos de Deus”.

 

No longo período civil de acerto de contas com as barbaridades militares, Bergoglio, já cardeal, foi denunciado em 2005 por conexões com o sequestro dos padres jesuítas Orlando Virgilio Yorio e Francisco Jalics, acontecido em 23 de maio de 1976, quando trabalhavam sob o comando de Bergoglio, desempenhando tarefas junto a populações humildes do Bajo Flores. Bergoglio expulsou os dois da Ordem dos Jesuítas. A denúncia contra ele se baseou em artigos jornalísticos e no livro Igreja e Ditadura, escrito por Emilio Mignone, uma autoridade indiscutida na matéria. Outro livro, La Isla del Silencio, referido a uma propriedade situada numa ilha que foi cedida pela Igreja às Forças Armadas para servir como campo de extermínio, do conhecido jornalista Horacio Verbitsky, também fez referência às ligações de Bergoglio com a ditadura: "(Bergoglio) vai à Chancelaria, pede um trâmite em favor do sacerdote (Jalics), mas, por baixo do pano, diz para não o concederem porque se trata de um subversivo”. Francisco Jalics desmentiu as acusações, em declaração publicada no site da ordem jesuíta alemã: "O missionário Orlando Yorio e eu mesmo não fomos denunciados pelo padre Bergoglio", o que não desmente nada do afirmado por Mignone e Verbitsky.

 

Sergio Rubin, seu biógrafo autorizado, relatou que Bergoglio, após a desaparição dos dois sacerdotes (que Rubin, com a maior cara de pau, chama de “prisão”), trabalhou nos bastidores para a sua libertação e intercedeu, de forma privada e pessoal, junto ao ditador Jorge Rafael Videla. Não era, certamente, qualquer um que podia “interceder privada e pessoalmente” junto a esse psicopata, e menos ainda por desaparecidos. Rubin também relatou que Bergoglio deu abrigo a pessoas perseguidas pela ditadura em propriedades da Igreja, chegando a dar seus próprios documentos de identidade a um homem que se parecia com ele, para que pudesse fugir da Argentina. Bem, militares altamente implicados na repressão também agiram para salvar algumas pessoas que lhes eram próximas, parentes incluídos. O vencedor do Prêmio Nobel da Paz de 1980, Adolfo Pérez Esquivel, também refutou (ou melhor, tentou refutar) as acusações referentes ao atual papa Francisco. Esquivel afirmou que “alguns bispos foram cúmplices do regime (alguns?), mas não foi o caso de Bergoglio”, coisa que ele não pode saber, a não ser que o próprio Esquivel contasse com cumplicidades duvidosas. Estela de la Cuadra, irmã de Orlando Yorio, bem mais próxima aos fatos imputados, afirmou em entrevista que “a Igreja Católica escolheu uma pessoa que foi cúmplice de um regime genocida”...

 

Evidências convergentes

 

A operação montada para “limpar a barra” do agora modesto Francisco I impressiona e inclui várias respeitabilidades oficiais, como Pérez Esquivel. O site do “Instituto Humanista Unisinos” (cristão) resumiu: “Bergoglio e sua Igreja argentina não mostraram atitudes proféticas durante a ditadura militar (1976-1983), como aconteceu em outras igrejas latino-americanas. Nessa época, Bergoglio ainda não era bispo, mas provincial dos jesuítas da Argentina (1973-1979). Como provincial expulsou dois jovens jesuítas – Orlando Virgílio Yorio e Francisco Jalics – da Companhia de Jesus e dificultou a sua recepção na diocese de Morón, dirigida pelo salesiano Miguel Raspanti. Entre expulsão e trâmites de recepção, no dia 23 de maio de 1976, Yorio e Jalics foram sequestrados pelas forças militares, torturados e, meio ano mais tarde, expatriados. A sincronização entre expulsão e sequestro dos dois ex-jesuítas indica certo entendimento entre autoridade eclesiástica e militar. Definitivamente provado não foi” (grifo nosso). Certamente, muitas outras coisas não puderam ser provadas nessa repressão ilegal, secreta e indocumentada. Mas as evidências existem para quem não quiser ser cego.

 

Cinco testemunhos, oferecidos de forma espontânea, confirmaram o papel de Jorge Mario Bergoglio na repressão do governo militar, inclusive sobre as fileiras progressistas da Igreja Católica que ele hoje preside: uma teóloga que durante décadas deu catequese em colégios do bispado de Morón, o ex-superior de uma fraternidade sacerdotal que foi dizimada pelos desaparecimentos forçados, um integrante da mesma fraternidade que denunciou os casos ao Vaticano, um sacerdote e um leigo que foram sequestrados e torturados. Dois meses depois do golpe militar de 1976, o bispo de Morón, Miguel Raspanti, tentou proteger os sacerdotes Orlando Yorio e Francisco Jalics porque temia que fossem sequestrados, mas Bergoglio se opôs, segundo a ex-professora de catequese em colégios da diocese de Morón, Marina Rubino, que nessa época estudava teologia no Colégio Máximo de San Miguel, onde Bergoglio vivia. Ela havia sido aluna de Yorio e Jalics e sabia do risco que eles corriam: eles foram sequestrados, como dito, no dia 23 de maio de 1976, e conduzidos à Escola Superior de Mecânica da Armada, onde um especialista em assuntos eclesiásticos lhes interrogou. Em um dos interrogatórios, perguntou-lhes sobre os seminaristas Carlos Antonio Di Pietro e Raúl Eduardo Rodríguez. Ambos eram colegas de Marina Rubino no curso de teologia de San Miguel e desenvolviam trabalhos sociais num bairro popular, de onde foram sequestrados dez dias depois que os dois jesuítas, a 4 de junho de 1976, e levados para a mesma “casa operativa” que Yorio e Jalics.

 

Alejandro Dausa, que a 3 de agosto de 1976 foi sequestrado em Córdoba, quando era seminarista da Ordem dos Missionários de Nossa Senhora de La Salette, depois de seis meses nos quais foi torturado pela polícia no Departamento de Inteligência D2, pôde viajar para os Estados Unidos, onde encontrou o responsável do seminário. Este era o sacerdote norte-americano James Weeks. Ao chegar aos EUA, soube que Jalics se encontrava em Cleveland, na casa de uma irmã. Em dois retiros espirituais, realizados em 1977 em Altamont (Nova York) e em Ipswich (Massachusetts), conversaram entre si. Dausa lembrou: “Como é natural, conversamos sobre os sequestros respectivos, detalhes, características, antecedentes, sinais prévios, pessoas envolvidas etc. Nessas conversas, ele nos indicou que Bergoglio os havia entregado e denunciado”. Na década seguinte, Alejandro Dausa trabalhava como padre na Bolívia e participava dos retiros anuais da La Salette na Argentina. Em um deles, os organizadores convidaram Orlando Yorio, que nessa época trabalhava em Quilmes: “O retiro foi em Carlos Paz, Córdoba, e também nesse caso conversamos sobre a experiência do sequestro. Orlando indicou o mesmo que Jalics sobre a responsabilidade de Bergoglio”. Orlando Yorio morreu em agosto de 2000 em Montevidéu, no Uruguai.

 

O fundador da fraternidade leiga dos “Irmãozinhos do Evangelho Charles de Foucauld”, Roberto Scordato, aceitou narrar que, entre o fim de outubro e o começo de novembro de 1976, se reuniu em Roma com o cardeal Eduardo Pironio, que era prefeito da Congregação para os Religiosos do Vaticano, e lhe comunicou o nome de um sacerdote da comunidade jesuíta de San Miguel que participava das sessões de tortura no quartel de Campo de Mayo com o papel de “amolecer espiritualmente” os detidos. Scordato pediu-lhe que transmitisse o fato ao superior geral Pedro Arrupe. O mesmo caminho foi seguido por um dos detidos na batida policial do bairro popular La Manuelita, o médico Lorenzo Riquelme. Quando recuperou sua liberdade, em comunicações com quem era então o superior dos Irmãozinhos do Evangelho, Patrick Rice, Riquelme disse que quem o denunciou foi um jesuíta do Colégio de San Miguel, que era capelão do Exército, convencido de que esse sacerdote presenciou as torturas que lhe foram aplicadas em Campo de Mayo. Rice, que também foi sequestrado e torturado nesse ano, disse que isso não teria sido possível sem a aprovação do padre provincial (Bergoglio). As evidências, portanto, sobram.

 

 

Leia também:

Bergogliomania e crise (1)


Osvaldo Coggiola, historiador e economista, é professor do departamento de História da USP.

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