Correio da Cidadania

Classes e luta de classes: questões de análise

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No processo de globalização capitalista, as oportunidades de trabalho industrial foram ampliadas naqueles países que não seguiram as receitas do Consenso de Washington e aproveitaram os capitais excedentes no centro capitalista para industrializar-se. Esses países transformaram crescentes contingentes de sua classe camponesa em classe trabalhadora industrial e de serviços.

 

Embora alguns afirmem que a China e a Índia também estão entrando na transição da indústria para os serviços, se somarmos apenas as frações industriais das classes trabalhadoras assalariadas desses dois países, teremos mais de 500 milhões de operários. Em todo o mundo, essa fração industrial deve superar mais de um bilhão de trabalhadores assalariados, um número muito superior a toda a história anterior dessa classe surgida com o capitalismo.

 

Isso nos alerta para uma necessidade ainda maior de confrontarmos as teorias em voga com a realidade, de modo a não sermos apanhados de surpresa pelos fatos da luta de classes, o motor das mudanças históricas nos modos sociais de produzir e nas sociedades como um todo. É também esse confronto das teorias em voga com o processo histórico real que nos fornece a base para retomar o debate hoje em curso no Brasil a respeito da chamada nova classe média e das pretensas mudanças de paradigma para a análise das classes atuais.

 

Relembramos que tomamos como referência os textos contidos no livro A “Nova Classe Média” no Brasil como Conceito e Projeto Político. Num deles, de imediato nos confrontamos com a falsa ideia de que a análise de classes possui uma evidente marca “ocidentalcêntrica”, o que deveria nos deixar de sobreaviso perante quaisquer voluntarismos de sua aplicação dogmática. Na verdade, a análise de classes no Oriente é mais antiga do que a análise de classes no Ocidente, pelo fato de que a propriedade privada, o patriarcado, o escravismo e o feudalismo surgiram e se desenvolveram primeiro na Índia, China, Mesopotâmia e Pérsia. Mesmo no Ocidente, ocorreram primeiro no Egito e só depois na Grécia.

 

Os textos históricos deixados pelas gerações dessas regiões apontam que a situação das classes esteve sempre relacionada à sua posição diante da propriedade privada dos meios de produção e de recursos monetários, em especial da terra, assim como das relações de produção que tal propriedade impunha. Esses critérios foram modernamente incorporados à análise das classes por pensadores, filósofos e economistas políticos clássicos ocidentais, mesmo diante da emergência de meios de produção manufatureiros e industriais e da possibilidade da transformação do dinheiro em capital.

 

A discussão hoje existente, tanto no Brasil quanto em vários outros países, gira em torno da adoção de parâmetros diferentes da propriedade privada dos meios de produção e das relações de produção como critérios chaves para definir as classes. Marcelo Neri, por exemplo, mesmo negando que tenha adotado o critério de renda para a classificação social, na prática induziu vários setores, inclusive governamentais, a tratar as classes sociais a partir de tal critério.

 

Não por acaso, Lúcia Cortes da Costa alerta que a renda passou a ser o critério definidor para a identificação dos índices de pobreza, levando a que a manutenção do consumo se traduza como uma luta contra a pobreza. Seu alerta tem razão de ser porque a utilização da renda como critério para a análise das classes encobre o fato de que os pobres podem, eventualmente, incluir indivíduos de diferentes classes sociais, com interesses e demandas diferentes, a exemplo dos excluídos urbanos e dos camponeses miseráveis no Brasil.

 

Já Waldir José Quadros sustenta que o emprego é o alicerce da inserção do indivíduo em sociedades como a brasileira. Depois da propriedade, o emprego seria a base da desigualdade social. Ou seja, ele inverte a ordem dos fatores na esperança de que o resultado seja o mesmo. Na realidade, quem tem a propriedade de meios de produção (capital constante) não depende de emprego para se inserir na sociedade. Ele depende fundamentalmente de também ter capital variável para comprar forças de trabalho no mercado e, com elas, colocar seus meios de produção em funcionamento. Em sociedades capitalistas como a brasileira, quem depende de emprego é quem não possui a propriedade de meios de produção.

 

Jessé Souza, por seu turno, diz que a percepção da luta de classes exige os meios cientificamente adequados a isso. Exige tornar visível a formação e a gênese das classes sociais e, portanto, do conjunto de capitais que irão pré-decidir toda a competição social por recursos escassos, lá onde elas são constituídas de modo muito específico. Para tanto, ele considera a propriedade de três tipos de capital: o capital econômico, o capital social e o capital cultural. Eles seriam fundamentais para a classificação social, o capital cultural sendo essencial para a inserção em qualquer dos outros dois tipos de capital.

 

Como exemplo, ele afirma que a reprodução do que chama classes altas, que têm no capital econômico seu elemento principal na luta por recursos sociais escassos, dependeria em boa medida de outros capitais. Ao “rico bronco” estariam vedadas não apenas as importantes relações entre o capital econômico e o capital cultural, o qual possibilita a “naturalidade”, a “leveza”, o “charme pessoal”, tão importantes no mundo dos negócios como em qualquer outro lugar. Estariam vedadas também as relações com uma terceira forma de capital, o “capital social de relações pessoais”.

 

Essa suposição, porém, não condiz com a realidade de uma série considerável de capitalistas, reconhecidamente “broncos” do ponto de vista cultural e social, mas possuidores de capitais “econômicos”. Ao contrário do que pensa Jessé Souza, eles são muito bem tratados no mundo dos negócios e nos meios sociais adjacentes, justamente pela propriedade daqueles capitais “econômicos”. E só passam a ser maltratados quando perdem tal propriedade econômica. Exemplo notório no momento é o de Eike Batista. Por outro lado, existe uma miríade de gente culturalmente elevada, com a naturalidade, leveza e charme pessoal que a erudição pode proporcionar, que é simplesmente ignorada pelo mundo dos negócios e pelos meios sociais respectivos.

 

Isso só se modifica quando algum desses eruditos se torna, por um desses acasos da vida, serviçal do mundo dos negócios e tem a oportunidade de ingressar nele ao acumular capitais econômicos. Além disso, nem sempre as classes altas, proprietárias de capital (que pode ser industrial, comercial, agrícola, de serviços e financeiro, e também ser grande, médio ou pequeno), têm tal capital como elemento principal na luta por recursos sociais escassos. As classes altas dos países capitalistas desenvolvidos se confrontam hoje justamente com o contrário. Isto é, os enormes excedentes de capitais e de forças de trabalho em seus países as obrigam a operações especulativas e a exportações de capitais, que agravam ainda mais tais excedentes de recursos.

 

Assim, mesmo que o conceito de capital possa ser momentaneamente desfigurado para efeitos didáticos, o que é determinante para a aquisição de capital social e de capital cultural é o capital que Jessé Souza chama de econômico. Como, aliás, ele mesmo reconhece em certo trecho, mas talvez não tenha tirado as conclusões devidas a respeito. No mundo moderno, em que a mercadoria continua sendo a célula da sociedade, mesmo quando aparentemente travestida de imaterialidade cultural, a toda hora o capital-dinheiro está presente para nos lembrar que, sem ele, a própria vida corre o perigo de se esvair.

 

Tomar a propriedade dos meios de produção (basicamente, na sociedade capitalista, capital dinheiro e capital meios de produção, circulação e distribuição) como critério básico para a análise e classificação das classes sociais só se torna economicista se não forem tomadas na devida conta as peculiaridades históricas de cada uma dessas classes. Isto é, se não forem considerados seu grau histórico de participação na renda e na renda social acumulada, seu padrão de vida, nível educacional, qualificação técnica, nível cultural, nacionalidade, religiosidade, e igualdade de gênero, social, racial e política.

 

Não é possível, nem correto, por exemplo, supor que a fração operária da classe dos trabalhadores assalariados, em qualquer país do mundo, tenha renda, padrão de vida, nível educacional, qualificação técnica e outras características sociais idênticas às das frações operárias dos séculos 19 e 20. Isto, mesmo em comparação com os países capitalistas avançados de então. As únicas coisas que podem identificá-las como uma mesma fração de uma mesma classe é o fato de venderem sua força de trabalho no mercado, operarem meios de produção de propriedade dos capitalistas, e terem o salário como o elo de relação entre elas e os capitalistas.

 

O mesmo diz respeito à burguesia, à pequena-burguesia e a outras classes historicamente herdadas por quaisquer das sociedades que se examine. O fato de boa parte da burguesia atual, em praticamente todos os países do mundo, viajar em aviões particulares, e não mais na primeira classe de aviões de carreira, como na segunda metade do século 20, ou de carro ou trem, como na primeira metade do século 20, apenas mostra o enorme desenvolvimento das forças produtivas, promovido pela concorrência intercapitalista. O mesmo desenvolvimento que tornou possível baratear o preço dos automóveis, tornando-os acessíveis a operários qualificados.

 

Porém, nada disso mudou a natureza da propriedade do capital e as relações assalariadas. E, embora tenham permitido aos trabalhadores assalariados acesso a bens inatingíveis durante a maior parte do século 20, não conseguiram reduzir a distância entre a acumulação da riqueza dos capitalistas e a parte da renda social que cabe ao trabalho.

 

Leia também:

Classes e luta de classes: o início

Classes e luta de classes: patriarcado e escravismo

Classes e luta de classes: feudalismo

Classes e luta de classes: mercantilismo

Classes e luta de classes: nascimento do capital

Classes e luta de classes: expansão capitalista


Wladimir Pomar é analista político e escritor.

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