Correio da Cidadania

Greve na USP: cartas de 2 professores

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Carta aberta aos “estudantes” da USP

 

Carlos Guilherme Mota


No recente episódio de ocupação e desocupação da Reitoria da Universidade de São Paulo, ocorreu um crime inafiançável: a depredação da sede de nosso Instituto de Estudos Avançados. Vale notar que o IEA não pertence à Reitoria, tem autonomia e está provisoriamente no mesmo edifício, o que não vem ao caso. Mas, ainda assim, foi objeto de uma das mais indevidas e abjetas ocupações pseudo-universitárias (pois o que ocorreu não foi nada universitário) de que se tem notícia no último meio século. Conseguiram, os predadores, perpetrar façanha ainda maior do que uma outra, também inesquecível, que ocorreu durante o regime militar.

 

Com efeito, na manhã da segunda-feira do último dia 11, e nos dias seguintes, fomos tomando ciência do que ocorrera no fim de semana na Reitoria, quando recebemos fotos e depoimentos que davam conta da barbárie. Ou seja, da depredação brutal e boçal da sede do IEA, após invasão indevida e festim descabido, até o dia nascer.

 

Podemos entender que manifestações estudantis, e mesmo de funcionários e professores, sempre fizeram parte da vida universitária. E que agora, no compasso das manifestações sociais de insatisfação com os rumos da República, a escala dos movimentos vem adquirindo novos contornos, inclusive com os black blocs e com usos de metodologias de ação que evocam historicamente os inícios de vários regimes fascistas.

 

O que não se pode conceber é que o movimento estudantil tenha permitido transbordamentos inconfessáveis como o ocorrido no último fim de semana, com depredação de nossas instalações no campus, levando de roldão arquivos, computadores, documentos, pastas de pesquisas, arrombando portas, pichando e até furando paredes, estragando material resultante de longas e cuidadosas reuniões de trabalho, em fase de publicação. O prejuízo é incalculável. E mais: trata-se de ação criminosa, nem mais nem menos.

 

Incalculável é também o dano moral e psicológico que nos causou a devastação de salas de pesquisadores consagrados, como a do professor Aziz Ab’Saber, para citarmos um caso apenas. Mas todas as nossas instalações foram visitadas pelos meliantes, digo, estudantes, inclusive o pequeno anfiteatro onde realizamos intensos e variados seminários e conferências abertas ao público, e gratuitamente! Como se sabe, trata-se de uma sede provisória, já precária per se, pois fomos “mudados”, sem consulta prévia, de nosso locus original do prédio da Reitoria velha, aguardando a lenta, muito lenta, construção do novo.

 

Enfim, é chegada a hora de se perguntar aos estudantes, frontalmente: o que se pretendeu com tal barbarização? Protestar contra o reitor atual? Contra o processo eleitoral? Contra o IEA e suas variadas e multifacetadas linhas de reflexão, pesquisa e socialização do conhecimento?

 

Com o tempo, outras perguntas deverão ser feitas, e nós as faremos a vocês!, passado este duro e constrangedor momento: que tipo de formação tiveram? O que aprenderam em suas casas, e em suas escolas e faculdades? E agora, que sistema universitário defendem, e pretendem implantar, no rastro desta cega destruição? E o nosso IEA, em que precisamente ele os incomoda, ao ponto de terem-no transformado em alvo de operação de guerra? Note-se que temos trazido para seus quadros e seus embates muitos intelectuais, do porte de Milton Santos, Aníbal Quijano, Jacob Gorender, Raymundo Faoro, Eric Hobsbawm, Moreno Fraginals, Mayana Zatz, Boaventura de Sousa Santos, Leyla Perrone-Moysés, para ficarmos em apenas nestes exemplos.

 

Agora, porém, caros estudantes, o problema tornou-se mais sério e grave. E dirijo-me à banda não-podre do alunado, que também deve assumir suas responsabilidades pelo ocorrido, em episódios altamente delituosos. Pois buliram não com um vespeiro, mas com a própria colmeia, onde se dá e se aprimora a produção e a crítica, habitada por “abelhas” bravias.

 

Nosso IEA é independente, mas não é neutro, e não vamos tolerar esse padrão concessivo e “liberal” em que a USP, o Estado e a República estão empapados e acostumados. Como se trata de um próprio público em plena atividade, ou seja, do Estado, um espaço coletivo, com equipamento caro e uma memória pelos quais temos a obrigação de zelar, iremos apurar até o fim as responsabilidades por tais atos eivados de vandalismo boçal. E efetuar as devidas punições com mão forte, até o fim, para o que contamos com os poderes constituídos, que andaram fraquejando demais, e com o firme apoio da comunidade científico-cultural, nacional e internacional.

 

 

Carlos Guilherme Mota, professor emérito da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP, foi o primeiro Diretor do IEA (gestão José Goldemberg).

 

Carta aberta


Marcos Silva


Amigos e amigas:

 

Considero esse ato (invasão e depredação do IEA/USP) inadmissível porque atinge patrimônio público, parte desta universidade, espaço derivado de nosso trabalho e que deve ser acessível a nossa interferência crítica, como tudo que ocorre numa universidade. Interferência crítica significa trabalho de pensamento. Não conheço, todavia, legislação que torne esse crime “inafiançável”, seria bom que Mota a indicasse, se existir. Caso contrário, atribuirei o adjetivo a compreensível indignação, retórica sem embasamento legal.

 

O IEA/USP existe desde 1988, não é? Permanecer numa sede PROVISÓRIA por um período tão prolongado é inadmissível e desrespeitoso, indicando desinteresse e talvez desprezo por parte de sucessivos reitores. Seria muito bom que seus dirigentes convocassem a comunidade universitária para amplo apoio a sua dignidade, expressa numa sede permanente e decente. Isso estreitaria ainda mais os laços entre IEA e comunidade universitária, evitando seu isolamento, consolidando o apoio de todos no cotidiano da instituição e também num momento de grave crise como este.

 

Essa depredação é inadmissível e injustificável, com certeza. Dizer que foi “façanha ainda maior do que uma outra, também inesquecível, que ocorreu durante o regime militar”, todavia, equivale a diminuir a responsabilidade ditatorial por torturas, mortes, arrocho salarial e tantos outros horrores que atingiram, diretamente, a comunidade universitária e o resto da população brasileira. A retórica precisa ser medida para que a História não se transforme em balcão de sofismas. Sempre existe o risco de, combatendo um ato inadmissível, legitimar-se outros mil vezes mais inadmissíveis. Existem muitas vozes, no Brasil atual, clamando por ditadura e militares na política. A universidade não pode se somar a esse coro dos contentes com a ditadura uma vez que ela sofreu duramente a violência do regime e produz instrumentos de pensamento crítico em relação a ele. Não há identificação, pelo autor do texto, de fontes, fotos (que não foram anexadas ao escrito) e dos autores de depoimento sobre aquele ato inadmissível.

 

As manifestações sociais ocorridas no Brasil desde junho de 2013 não são prioritariamente de black blocs, nem fascistas, ao contrário do que Mota indica. Elas são muito diversificadas, incluem reivindicações sociais legítimas, expressam uma sociedade com vozes atuantes e alcançaram conquistas – a tarifa dos transportes públicos em São Paulo foi rebaixada, evidenciou-se que nem tudo é aparelho de Estado, partidos e grande imprensa.

 

Não tenho conhecimento (nem Mota aponta evidências) de que “o movimento estudantil tenha permitido transbordamentos inconfessáveis como o ocorrido no último fim de semana”. Não sei de nenhuma assembleia estudantil que tenha deliberado invadir e depredar o IEA/USP. Se isso tiver ocorrido, peço a Mota que o indique com clareza. Se não tiver acontecido, a acusação é infundada e irresponsável, contribuindo apenas para a criminalização dos movimentos sociais, na USP e fora dela, somando-se àquele coro dos contentes.

 

O jogo de palavras “meliantes, digo, estudantes” é um claro exemplo dessa criminalização, que prejudica muito a imagem pública da universidade – os setores que tentam destruir a universidade pública desde a ditadura de 1964 devem estar muito felizes com esse argumento, a universidade privada agradece penhoradamente a quem presta tais serviços. Se tal crime foi praticado por estudantes, isso não significa que “os estudantes” sejam responsáveis por ele. A pergunta sobre “o que se pretendeu com tal barbarização” deve ser dirigida aos responsáveis pelo ato, quando identificados, não “aos estudantes” – parece-me que as responsabilidades ainda não foram apuradas para que se dê algum veredicto final -, generalização inadmissível sem que haja indícios de responsabilidade coletiva da referida categoria universitária.

 

Sou radicalmente contrário à destruição de patrimônios universitários (o que inclui, evidentemente, o IEA), não por serem colmeias que abrigam a abelha-rainha, mas porque são espaços onde o pensamento pode e deve ocorrer a serviço da sociedade.

 

Não somos exércitos de abelhas-operárias. Somos homens e mulheres pensantes mesmo. O aprimoramento da produção e da crítica uspiana não se dá em nenhum instituto ou sala em especial, ele é patrimônio de todos os lugares desta universidade – qualquer sala de aula, qualquer laboratório, qualquer corredor.

 

Não sei de qual “padrão concessivo e ‘liberal em que a USP, o Estado e a República estão empapados e acostumados” o autor do texto está falando. Ele se refere ao silêncio em relação a Pinheirinhos? Ele alude ao vexame do campus USP/zona leste? Ele trata do dinheiro público doado a Eike Batista, sem perspectiva de retorno?

 

É muito importante que se apurem “até o fim as responsabilidades por tais atos eivados de vandalismo boçal” – condenar sem julgar é falácia. Falar em “punições com mão forte, até o fim, para o que contamos com os poderes constituídos, que andaram fraquejando demais” parece fala autoritária com sabor de Erasmo Dias: não basta apurar DENTRO DA LEI? Não sinto nostalgia da força dos poderes constituídos. Quero que a sociedade se manifeste livremente, dentro da lei, até inventando novas leis – como se sabe, a liberdade de greve, dentre outras, foi conquistada nas ruas pelos grevistas.

 

Dito isto, com discordâncias muito claras, é sempre um prazer comentar um texto de Carlos Guilherme Mota, autor do importante livro Atitudes de inovação no Brasil (depois republicado entre nós com o título original da dissertação de mestrado: A ideia de revolução no Brasil). Precisamos muito de inovação, é bom relembrar o que foi um dia pensado como revolução.

 

Marcos Silva é professor do departamento de História da FFLCH/USP

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