Correio da Cidadania

A recente afronta aos direitos e à vida dos povos indígenas e quilombolas no Brasil

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Desde a invasão da Coroa Portuguesa, o Brasil tem sido um meio de produção e exploração da mão de obra escrava voltada à exportação, sobretudo de produtos primários. A partir da chegada dos europeus, os povos indígenas, e depois os(as) africanos(as) escravizados, conviveram com os mais variados tipos de violência simbólica e física, componente intrínseco ao regime imposto pela colonização para a posse de terra e ampliação das fronteiras do território colonial. Essa violência amalgamada na sociedade e no Estado brasileiro se manifesta atualmente nos diferentes processos de repressão aos povos indígenas e quilombolas, como na invasão de suas terras, aliciamento, repressão cultural e religiosa, roubos, ausência de políticas públicas, homicídios, violência contra os(as) jovens negros(as), discriminação etc.

 

Em função da política adotada pelos governos desde o tempo da colônia, muitos povos indígenas e quilombolas se dispersaram ou foram sendo extintos, seja por sucessivos massacres (genocídio), seja pela repressão legal, cultural e religiosa. Diante desse conjunto de aspectos sociais e históricos, essa provocação destina-se a trazer alguns elementos sobre as ameaças recentes aos direitos dos povos quilombolas.

 

As comunidades quilombolas, ribeirinhas, caiçaras, povos de terreiro, faxinalenses e tantas outras reivindicam ao Estado brasileiro políticas apropriadas ao seu modo de vida e resistem a políticas discriminatórias e opressivas do Estado, mesmo antes da constituinte de 1988 e conquista do artigo 68 do ADCT (1). A organização desses povos na busca por respeito e conquista dos seus direitos sociais tem provocado um debate constante e muitas vezes conflituoso na política brasileira, e um ponto central disso se refere aos conflitos fundiários, devidos à disputa pelo uso de suas terras.

 

No Brasil, segundo a SEPPIR (2013) existem atualmente 3.754 comunidades remanescentes de quilombos, identificadas com maior concentração nos estados do Maranhão, Bahia e Minas Gerais. De acordo com outras fontes, esse número pode chegar a mais de cinco mil. Dessas, 1.948 são reconhecidas oficialmente pelo Estado brasileiro e 1.834 são certificadas pela Fundação Cultural Palmares, sendo 63% delas no Nordeste.

 

Além disso, alguns outros dados sobre as comunidades quilombolas apontam:

 

- Há 214 mil famílias em todo o Brasil e 1,17 milhão de quilombolas;

 

- 75,6% das famílias quilombolas estão em situação de extrema pobreza sob a ótica do Estado;

 

- 92% se auto-declaram pretos ou pardos;

 

- As principais atividades produtivas são a agricultura, o extrativismo e a pesca artesanal.

 

Vulnerabilidade total

 

Um debate muitas vezes escamoteado sobre a questão central que envolve os povos quilombolas é justamente a garantia de acesso e manutenção da terra. A histórica concentração de terras no Brasil e o atual avanço do agronegócio estão atingindo diretamente esses povos, que possuem uma relação com a terra que transcende a mera produção agrícola, pois o território faz parte da formação identitária (ancestralidade, resistência e memória) e proporciona a sua reprodução social, ambiental e cultural, essenciais para garantir os modos e as condições de vida desses grupos.

 

Quando aleijados de viver sua territorialidade em condições dignas de vida, assim, alienados de seus modos de vida e produção devido a estarem cercados pelo preconceito social, pela marginalização da zona rural e pelo receituário urbano, muitos(as) quilombolas buscam o caminho das periferias das grandes cidades, muitas vezes sob condições precárias de vida. Essa mobilidade compulsória para os centros urbanos, em longo prazo, pode resultar na dissolução de suas comunidades e de laços identitários.

 

Ressalta-se que os(as) jovens no Brasil são as principais vítimas da violência urbana e são alvos prediletos dos homicidas e dos excessos policiais, em destaque os(as) jovens negros, que também lideram estatísticas como o grupo social que recebe os salários mais baixos do mercado, do maior contingente de desempregados e dos que têm maior defasagem escolar (2) (PNAD (2011). Outra pesquisa recém-divulgada pela OIT (2012) reafirmou essa condição.

 

De acordo com o Mapa da Violência, um jovem negro entre 15 e 25 anos tem chances 127% maiores de ser assassinado que um branco na mesma faixa etária. Em 2010, foram registradas 49.932 pessoas vítimas de homicídio no Brasil, desses 70,6% eram negras (os). Em 2010, 26.854 jovens entre 15 e 29 foram vítimas de homicídio, 74,6% dos e das jovens assassinadas(os) eram negros(as) e 91,3% eram do sexo masculino. Em outro estudo, aponta-se que das vítimas de violência homofóbica no Brasil, que registraram denúncia, há o predomínio de vítimas até 29 anos (50,3%), na maioria jovens de cor parda ou negra.

 

Políticas públicas tímidas

 

Atualmente, o governo federal diz que atende às comunidades pelo Programa Brasil Quilombola. Apesar de serem anunciadas medidas sob diferentes frentes (saúde, cultura, educação e outros), muitas dessas não são implementadas, bem como a legislação conquistada pelos povos quilombolas e indígenas a partir da Constituição. Ao mesmo tempo, assiste-se à aplicação de políticas de “reorganização de espaços e territórios” que não são um produto mecânico da expansão gradual das trocas, mas sim o efeito de uma ação de Estado protecionista, voltada para a reestruturação de mercados, da comercialização da terra, das florestas e do subsolo (ALMEIDA, 2012).

 

No caso da regularização das terras quilombolas, assegurada pela Constituição Federal, segundo dados do INCRA (2013), a emissão de títulos de posse de terras para esses povos, pode-se dizer que, além de baixa, “vai de mal a pior”. De acordo com o INCRA, de 1995 a 2002, foram expedidos 45 títulos em 42 territórios para 90 comunidades, sendo 6 pelo INCRA. De 2003 a 2010, foram expedidos 75 títulos em 66 territórios para 99 comunidades, sendo 15 só pelo INCRA e outros 30 em parceria técnica com Institutos estaduais. Entre 2011 e 2012, só foram expedidos 19 títulos em 17 territórios para 18 comunidades quilombolas, sendo apenas 5 pelo INCRA.

 

Em relação ao marco legal, a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT) sobre Povos Indígenas e Tribais, aprovada em 1989, que trata especificamente dos direitos também dos povos indígenas e quilombolas no Brasil, inclusive sobre o uso da terra e de recursos naturais, é cumprida de forma precária. Outro ataque frontal ao direito desses povos é a tentativa de revogar o Decreto nº 4.887/2003, que é o instrumento jurídico que ainda garante em lei a reparação e proteção à expropriação das terras, considerada importante para a superação das dificuldades socioeconômicas vividas nas comunidades quilombolas.

 

Ofensiva legislativa

 

Em antagonismo a esses marcos legais, o Projeto de Emenda Constitucional (PEC) 215, em tramitação desde o ano 2000, tem como objetivo submeter ao Congresso Nacional a demarcação e homologação de terras indígenas, quilombolas e de áreas de conservação ambiental, que, segundo a Constituição Federal, são de atribuição do Poder Executivo (3). Devido às grandes mobilizações ocorridas, com destaque para a dos indígenas, foi suspensa a instalação da comissão especial que analisaria a PEC 215/00.

 

Além disso, nos últimos meses, o governo federal, junto com o Congresso Nacional, tem anunciado mudanças nos critérios de demarcação de terras indígenas e quilombolas, com o fim da autonomia da Fundação Nacional do Índio (FUNAI) e do sucateado INCRA. Essas mudanças, assim como a suspensão dos processos demarcatórios em terras indígenas e quilombolas em alguns estados do país, surgem junto a um discurso de suposta “amenização” dos conflitos. Simultaneamente às ações parlamentares no Congresso Nacional, o governo federal, em articulação com alguns governadores estaduais (do Rio Grande do Sul, Mato Grosso do Sul e Paraná), está realizando ações de assédio político sobre esses povos, para atender às expectativas econômicas de fazendeiros e empresários.

 

O Rio Grande do Sul (RS), por meio do governo Tarso Genro (PT), é um desses exemplos de prepotência e do sistemático desrespeito aos direitos destes povos. Em carta e relatos feitos pelo CIMI, CLAPA e GAPIN há detalhamentos sobre mais uma ameaça aos direitos dos povos indígenas e quilombolas, nesse caso, no RS. Alguns servidores da Secretaria de Agricultura têm proposto a permuta de terras, em territórios em estudo ou já demarcados.

 

Cabe ainda mencionar que, no mês passado, os indígenas e quilombolas foram reprimidos com bombas de gás e balas de borracha pela Brigada Militar em frente ao Palácio do governo do RS e, após esse incidente lamentável, o governo estadual, ao encenar uma retomada do “diálogo” com lideranças indígenas e quilombolas, propôs a permuta por terras que “não são lá grande coisa”. São terras, em sua maioria, desgastadas e que se encontram hoje em desuso". Tal postura política é no mínimo antagônica se comparada às políticas públicas do governo anterior do PT no RS (Olívio Dutra - 1998/2002), que procurava reconhecer os direitos e modos de vida desses povos.

 

A partir desse exemplo, observa-se que a atitude do Estado em relação aos territórios tradicionalmente ocupados, embora assuma contornos particulares em cada região, reflete a articulação de grupos de poder (significativamente representados no parlamento - ver em reflexão anterior), visando à consolidação de conchavos políticos com a intenção predominante de obter sanção eleitoral (4) em 2014. Estes atores representam interesses próprios ligados ao latifúndio e ao agronegócio ou são patrocinados por grupos transnacionais, que têm interesse em posse de terras e na ampliação de suas ações no Brasil, por meio da expansão do agronegócio, das hidrelétricas e de tantos outros grandes empreendimentos do PAC. Sobretudo, antecipa as modificações ao processo de demarcação de terras visadas por esses grupos e buscadas por meio da PEC 215. As condutas de submissão aos interesses do capital também se materializam pelo aparato legal, com a edição de medidas que agravam a desconstrução dos direitos desses povos, tais como a Portaria Interministerial 419/2011, a Portaria 303/2012 da AGU e o Decreto 7957/2013.

 

Alguma saída?

 

Em uma conjuntura na qual “(...) a principal vítima da crise em andamento não é o capitalismo, mas a própria esquerda, na medida em que sua incapacidade de apresentar uma alternativa global viável tornou-se novamente visível a todos”, como mencionou Zizek (2011) – em “Primeiro como tragédia, depois como farsa” –, tornam –se evidentes os rebatimentos do atual estágio do desenvolvimento capitalista no Estado brasileiro. Esse conjunto de ameaças e violações aos direitos dos povos indígenas e quilombolas é uma  afronta à diversidade social e cultural dos povos do Brasil, em nome do produtivismo desvairado apoiado pelo Estado.

 

Nessa situação política e social, na qual os direitos sociais são sistematicamente violados, percebe-se que os governos direcionam sua ação política para assegurar a "governabilidade", em uma democracia capitalista que, apesar dos discursos e políticas públicas ambíguas, não dá conta da diversidade identitária do Brasil.

 

Notas:

1) O artigo 68 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias traz os seguintes termos: "aos remanescentes das comunidades dos quilombos que estejam ocupando suas terras é reconhecida a propriedade definitiva, devendo o Estado emitir-lhes os títulos respectivos".

2) Outro exemplo é que a maioria das formas de violência cometidas contra os povos indígenas aumentou em 2012, segundo dados apresentados em relatório lançado pelo CIMI (Conselho Indigenista Missionário).

3) Desta forma, os laudos antropológicos emitidos pela FUNAI e pelo INCRA, elaborados por profissionais de diferentes áreas, perderiam a competência para certificar a possibilidade de demarcação das terras nas comunidades indígenas e quilombolas.

4) Uma reflexão mais apurada sobre o tema pode ser lida em: BOURDIEU, Pierre. 1998. A representação política. Elementos para uma teoria do campo político. In: O poder simbólico.


Sérgio Botton Barcellos e Patrícia dos Santos Pinheiro são sociólogos.

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