Correio da Cidadania

Estados Unidos-Síria: a antiga parceria frustrada

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Em um conflito interno, onde se estima a morte de mais de cem mil pessoas até o momento, a proposta patrocinada por Estados Unidos e Rússia de uma conferência de paz entre governo e oposição parece ser a melhor opção. Em vez de intensificar o uso da força, com uma possível intervenção aérea norte-americana, valorizar de forma multilateral a negociação entre os acérrimos combatentes.

 

O interesse dos Estados Unidos na Síria não decorre do período pós-Guerra Fria; antecede-o mesmo ao despontar da II Guerra Mundial, quando a região médio oriental havia sido dividida em duas esferas de influência: a britânica e a francesa, objeto esta de preocupação norte-americana, por causa da substantiva presença da esquerda na política interna.

 

A despeito da existência de um entendimento diplomático formal entre Paris e Washington relativamente a Damasco, remontante ao final da primeira metade dos anos 20, o Palácio do Eliseu movimentou-se com o propósito de obstar eventual prevalência estadunidense naquele território, à medida que a data de encerramento do mandato francês chegasse.

 

Além do mais, a França tinha a convicção de que um relacionamento mais próximo com a Síria seria imperativo, haja vista a necessidade de reforçar sua presença no mar Mediterrâneo.

 

Com a eclosão do conflito na Europa, o povo sírio encontrar-se-ia diante de uma encruzilhada, ao ter sua autodeterminação adiada pela França de Vichy, mais próxima da Alemanha, e ao sofrer um embargo econômico no final de 1940 pela Grã-Bretanha.

 

No primeiro, malgrado o apoio do governo de Vichy a Berlim, a diplomacia germânica se posicionou favorável à independência das nações sob a tutela anglo-francesa no Oriente Médio; no segundo, a chancelaria norte-americana pressionou a britânica a suspender as restrições, por vislumbrar um estímulo indireto à maior colaboração entre fascistas e tutelados, mesmo militar.

 

Em 1941, a Alemanha, via concordância franco-síria, auxiliou a insurgência antibritânica no Iraque. Como contraponto, ao debelar a rebelião, a Grã-Bretanha, ao lado da Austrália e Índia, invadiria, através da Palestina e da Transjordânia, a Síria.

 

Lá, os colaboracionistas da administração de Vichy foram substituídos pelos nacionalistas, vinculados ao general Charles de Gaulle. Depois de algumas semanas de transição administrativa, a Síria se libertaria do mandato da Liga das Nações no final de 1941.

 

A França ainda permaneceria presente, especialmente em termos culturais, militares e políticos, porém, a partir daquele momento, devido a um entendimento bilateral.

 

Entrementes, os Estados Unidos não reconheceram de imediato o novo status da Síria, a despeito da solicitação da Grã-Bretanha, sob a justificativa de que o tratado de 1924 com a França, relativo àquele território, os impedia, dado que os direitos de seus cidadãos poderiam ser desguarnecidos lá. Somente três anos mais tarde isso ocorreria, ao revalidar o governo sírio os termos daquele acordo.

 

Paralelamente, a França desejava manter com a Síria um relacionamento similar ao da Grã-Bretanha com o Iraque, algo rejeitado pelos Estados Unidos. No final da II Guerra Mundial, Paris invadiria Damasco, com o objetivo de manter direitos especiais.

 

Diante disso, Washington considerou a possibilidade de até empregar a força para acabar com a presença francesa, mas avaliou que isso poderia prejudicar os esforços para a constituição da nova organização global, concertada dias antes em conferência na cidade de San Francisco: as Nações Unidas (ONU).

 

Diante da oposição síria, os franceses bombardearam parte do país, mesmo Damasco. Os britânicos preocuparam-se com o efeito da ação no mundo árabe. Com o apoio político dos Estados Unidos, a Grã-Bretanha enviaria tropas para pressionar a saída da França dos principais centros urbanos sírios.

 

Desgastada, Paris propôs a realização de um encontro sobre o Oriente Médio com a participação da China, União Soviética, Estados Unidos e Grã-Bretanha; enfim, os cinco membros permanentes do Conselho de Segurança da ONU. Na visão francesa, caso o país tivesse de retirar-se da Síria, a Grã-Bretanha teria também de sair do Egito e da Palestina.

 

Na proposta de uma reunião das grandes potências, havia a esperança de que os soviéticos se contrapusessem aos estadunidenses e britânicos. No entanto, os Estados Unidos simplesmente se recusaram a considerar a proposição da França.

 

Destarte, franceses e britânicos tiveram de chegar a um entendimento sobre a retirada mútua de tropas do território sírio. As da França deslocaram-se para o Líbano, enquanto as da Grã-Bretanha para o Iraque e Índia. No fim de abril de 1946, o recolhimento se encerraria.

 

Antes mesmo da completa efetivação da saída, a Síria pediu auxílio aos Estados Unidos, com o fito de treinar suas próprias tropas. Não foi a primeira opção. Cautelosamente, ela havia pedido ajuda à Suécia e depois à Suíça, considerados os dois equidistantes das questões médio-orientais. Ambas se recusaram.

 

De todo modo, a solicitação foi a primeira de um país árabe aos estadunidenses. Contudo, Washington avaliou que aceitar o convite poderia ter como contrapartida a mágoa da França e a desconfiança da Grã-Bretanha.

 

Assim, a única parceria firmada lá foi com a Arábia Saudita, em vista do petróleo, algo de que os Estados Unidos logo se arrependeriam, em função do advento da Guerra Fria e da posição da maioria dos países de lá diante de Israel.

 

Virgílio Arraes é doutor em História das Relações Internacionais pela Universidade de Brasília e professor colaborador do Instituto de Relações Internacionais da mesma instituição.

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