Correio da Cidadania

Muito além de George Bush

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Jacques Chirac começa a deixar saudades. O novo ministro das Relações Exteriores da França, Bernard Kouchner,  passou dos limites quando exortou o mundo a preparar-se para uma possível guerra contra o Irã. Parece que o mundo não concordou. Os protestos foram gerais, partindo desde países pouco dóceis ao comando americano, como Rússia, China e Itália, a fiéis seguidores, como a Áustria e a Alemanha. O próprio François Fillon, primeiro-ministro francês, apressou-se em pôr panos quentes, assegurando que seu país insistia em buscar saídas diplomáticas. Nem a Casa Branca teve coragem de aplaudir Kouchner de público. Elogiou sua firmeza, mas continuou repetindo que “todas as opções estão sobre a mesa”.

 

Quem conhece a biografia do ministro das Relações Exteriores não ficou surpreso com suas espantosas declarações. Surpreender é com ele. Co-fundador da ONG Médicos Sem Fronteiras, brigou com seu presidente por este não topar o uso exagerado da mídia em certa operação da entidade e criou outra ONG similar, a Médicos do Mundo. Socialista declarado, esqueceu sua ideologia ao aceitar participar do governo do direitista Nicolau Sarkozy.

 

Na verdade, a pregação belicosa de Kouchner, embora pouco adequada ao fundador de uma ONG que presta assistência a populações vitimadas pela guerra, é conseqüente com sua estranha personalidade. Em 1991, durante a guerra da Bósnia, ele espalhou por Paris outdoors que mostravam prisioneiros atrás do arame farpado de um campo de concentração sérvio. O texto acusava os sérvios de execuções em massa, comparando-os aos nazistas. Na ocasião, discutia-se se a OTAN deveria bombardear Belgrado. O outdoor causou o maior impacto. Difundido por toda imprensa ocidental, levou a opinião pública a apoiar a idéia do bombardeio que de fato aconteceu, matando muita gente.

12 anos depois, o próprio Kouchner, em seu livro “Os Guerreiros da Paz”, relata um diálogo com Izethegovic, líder bósnio, no qual o francês admitia que mentira, pois não havia nenhum campo de extermínio sérvio. Outro jornalista, Jacques Merlino, revelou, em “Há verdades que não é bom dizer”, que o diretor da Ruder Finn, agência americana de relações públicas, lhe contara que toda a operação fora montada para comover a opinião pública em favor do bombardeio de Belgrado. Sua justificação: “somos profissionais. Não nos pagam para fazer moral”.

 

A apóstrofe de Kouchner insere-se perfeitamente na política internacional do seu chefe, Sarkozy. Como é sabido, o presidente francês rejeitou expressamente a postura crítica do seu antecessor, Jacques Chirac, em relação ao governo Bush. Agora a palavra de ordem é “Aliança com os Estados Unidos, não alinhamento”. Por enquanto, Bush está muito feliz, pois seu “aliado” está agindo de modo bem satisfatório, mais até do que o “alinhado” Blair em seus tempos de primeiro-ministro.

 

Poucos meses depois da posse, Sakorzy mandou Kouchner a Bagdá manifestar apoio integral aos americanos e cobrar dos europeus participação solidária no enfrentamento da situação local. Mas é no “affaire” Irã que ele tem arrancado mais sorrisos do presidente americano. Apelando aos aiatolás para suspenderem o enriquecimento do urânio, Sakorzy ameaçou: “A bomba iraniana ou bombardear o Irã”. E garantiu ser inaceitável para a paz mundial que mais um país viesse a ter a bomba atômica. O que não o impediu de oferecer algumas do seu arsenal para a Alemanha (oferta recusada).

 

Em 21 de Agosto, o governo iraniano firmou um acordo com a AIEA - Agência Internacional da Energia Atômica, da ONU -, comprometendo-se a permitir inspeções em suas instalações nucleares e a revelar informações completas sobre suas atividades desde 2005. El Baradei, diretor-geral da agência, considerou o contencioso com o Irã resolvido. Puro engano. Os Estados Unidos, mais a França, a Inglaterra e a Alemanha, indignados, protestaram. O acordo seria uma forma de o Irã ganhar tempo. Não valia nada. Baradei pediu que esperassem 2 meses, prazo que o governo do Irã teria para provar suas boas intenções. Mas as potências ocidentais foram inflexíveis. As sanções da ONU teriam de ser mantidas – e ampliadas - enquanto os iranianos não suspendessem o enriquecimento de urânio.

 

Poucas semanas depois, aviões israelenses penetraram, via Mediterrâneo, no norte da Síria até serem alvejados pelas baterias antiaéreas locais quando então voltaram. Embora diversas autoridades judaicas e americanas tenham dito em off que o objetivo fora bombardear equipamentos nucleares trazidos aos sírios por misterioso navio norte coreano, a verdade é outra. Como afirmou John Bolton ex-embaixador dos EUA na ONU: “o ataque foi uma mensagem clara para o Irã, que os seus esforços para adquirir armas nucleares não ficarão sem resposta”.

 

Este incidente ainda estava sendo discutido pelos jornais quando, mais uma vez, Sarkozy acionou Kouchner. E seu ministro das relações exteriores junto com seu colega da Holanda propuseram a aplicação de novas sanções econômicas contra o Irã.  Fora do âmbito da ONU, pois seriam tão severas, que a China e a Rússia vetariam no Conselho de Segurança. É inimaginável pensar que Bush está por fora deste lance. Ele não quis aparecer publicamente como o autor da idéia, pois passar por cima da ONU é extremamente grave. Perigoso, considerando que as eleições presidenciais americanas serão no ano que vem. Sakorzy tirou as castanhas do fogo por ele. E concluiu o serviço, sempre através do prestimoso Kouchner, ameaçando o Irã com a guerra que o eleitorado americano vem repelindo veementemente nas pesquisas de opinião.

 

Entre outros adjetivos irados, os diplomatas ocidentais chamaram El Baradei de “ingênuo”. Não deixam de ter razão. Afinal, ele parece acreditar que o objetivo dos Estados Unidos na questão com os iranianos é impedir que eles possuam armas atômicas. Deveria ler as declarações de Nicholas Burns, subsecretário de Estado americano, ao International Herald Tribune, a respeito do fornecimento bilionário de armas aos países do Golfo Pérsico: “Este pacote de armas diz aos iranianos e sírios que os Estados Unidos são o poder maior no Oriente Médio, continuarão a ser e não irão embora”.

 

Potência nuclear ou não, o Irã é uma pedra no sapato yankee, uma ameaça a sua hegemonia na região. Do jeito com que a situação está evoluindo, Bush precisa lançar mão de recursos censuráveis, para não dizer sujos, como propor sanções sem a aprovação da ONU e ameaçar com guerra.  Encontrou em Nicolau Sarkozy alguém disposto a desempenhar esse papel de vilão em lugar dele – fazendo coisas que nem Tony Blair toparia.

 

 

Luiz Eça é jornalista.

 

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