Correio da Cidadania

A débâcle eleitoral do kirchnerismo: abre-se uma transição plena de incertezas

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No domingo passado, o governo argentino sofreu uma verdadeira débâcle eleitoral; um retrocesso mais grave que o prognosticado pelas pesquisas, e até mesmo por estas páginas. Obteve 54% dos votos nas eleições presidenciais de 2011 e, no domingo passado, não passou de 30% nas eleições primárias, qual seja, perdeu 25 pontos e 4 milhões de votos.

 

De fato, o oficialismo pode argumentar que as eleições de domingo não são definitivas: que as eleições ‘de verdade’ serão as do próximo 27 de outubro. No entanto, o duro castigo agora recebido pelo voto e o esgotamento de respostas econômicas da atual gestão são de tal magnitude que, mesmo que se recupere algo do que se perdeu (e nada descartável), é quase irreversível a conjuntura que se abriu no país, de transição política rumo a um período pós-kirchnerista.

 

Em todo caso, um dos debates que está em aberto é se tal transição será levada a cabo de maneira mais ou menos estável, ou com riscos de governabilidade. Isto remete a um dos graves problemas pelo qual pode passar a transição pós-kirchnerista: mais além dos K, o sistema partidário está demasiadamente fragmentado. Trata-se de uma pendência do regime político que a burguesia argentina não logrou resolver e que representa um elemento estrutural de debilidade em seu aparato de dominação.

 

Desastre eleitoral pela direita, mas também pela esquerda


A primeira questão que se deve enfrentar é saber para onde foram os votos perdidos; a segunda, os motivos de tal migração eleitoral. Pode-se dizer que três quartos do total foram para candidaturas e opções que estão à direita do oficialismo, ainda que não apresentem suas propostas de maneira clara, mas, pelo contrário, de modo bastante difuso. Isto se expressa no fato de as candidaturas vitoriosas terem perfil republicano e liberal, questionando, de um ângulo conservador, os avanços minimamente progressistas do oficialismo.

 

Trata-se de figuras patronais como Massa na província de Buenos Aires (o grande ganhador das eleições), Macri e Carrió na Capital Federal, Binner em Santa Fé, Cobos em Mendonza, De la Sota, em Córdoba etc. Ou seja, figuras à direita do governo kirchnerista, ainda que as opções direitistas mais convencionais, como De Narváez, tenham fracassado. Vários analistas destacaram uma recuperação relativa da União Cívica Radical, assim como a impotência do PRO, o partido de Macri, para expandir-se nacionalmente (1).

 

O contrapeso foi o milhão de votos que recebeu a esquerda revolucionária; em primeiro lugar, o FIT (Frente de Esquerda), mas também o Novo MAS, expressando que o questionamento eleitoral ao governismo veio não somente da direita, mas também de uma franja minoritária, mas de massas, que o repudiou à esquerda.

 

Ainda que se trate de uma minoria, visto que a maioria da população votou em figuras patronais à direita do kirchnerismo, como dito, é apressada a qualificação de um‘giro eleitoral à direita’, porque as eleições não terminaram e haverá que se aferir como caminhará a votação da esquerda. Os resultados eleitorais de domingo são, portanto, neste sentido, ‘provisórios’.

 

As razões do ‘voto castigo’


Quanto aos motivos para a derrota eleitoral do partido no poder, entre os analistas, existem duas explicações: as que colocam a débâcle nas razões econômicas e as que se apoiam nas razões políticas. Sem dúvidas, a incidência de ambos os temas varia de acordo com as classes sociais.

 

A priori, parece que, entre os trabalhadores, prevaleceu um sentimento de descontentamento crescente em relação ao governo, que tem bem mais fundamentos econômicos (apesar de “contaminar” os outros). Este repúdio não é porque se está vivendo uma situação econômica desesperadora, mas por se sofrer uma deterioração econômica cujos motores são a escalada dos preços, uma limitação nas oportunidades de emprego e encargos como o imposto de renda, que a classe trabalhadora em seu conjunto vive com uma injustiça insuportável. Mesmo assim, uma ampla faixa de trabalhadores votou em Massa por um motivo “político-social” – a insegurança – mas com “soluções” da direita.

 

Embora ainda faltem reflexos suficientes sobre as razões para o voto, nós acreditamos que na classe trabalhadora se produziu, agora sim, uma divisão eleitoral: os que votaram contra o governo manifestando o seu descontentamento por todo o anterior (com uma faixa nada insignificante fazendo-o pela esquerda), e os que mantiveram seu voto no partido, com a mente posta no contraste da situação atual em relação à crise de 2001.

Outra coisa são as chamadas “classes médias”. Pode-se dizer que massivamente se voltaram contra o governo, por razões mais políticas do que econômicas. Não esquecer que no último período viveram dois ou três fortes "panelaços" de direita, onde os setores mais ricos arrastaram grande parte das classes médias. A principal motivação política é o rechaço à reforma constitucional e à reeleição de Cristina Kirchner, acompanhado do horror aos ataques suspeitos do governo à propriedade privada (“querem tudo”), o repúdio ao mercado de câmbio (limitações da compra de dólares) etc.

 

A soma destas razões econômicas e políticas é que levou 70% do eleitorado a votar contra o governo. A maioria se inclinou por variantes patronais e de direita. Mas a novidade, como já observado, é que uma faixa minoritária, mas importante, o fez pela esquerda “vermelha”, o FIT e o Novo MAS.

 

Contornando o “progressismo” pela esquerda


A esse último ponto vamos nos dedicar a seguir. Embora nesta edição realizamos uma ampla cobertura específica da eleição da esquerda, e do balanço do nosso partido dentro dela, é impossível não se referir a um milhão de votos no total entre o FIT e o Novo MAS. Esta votação é um feito inédito que está ocorrendo na Argentina e não se repete de tal modo no resto da América Latina. Tanto o Novo Mas como os três partidos que compõe o FIT são organizações que se reivindicam como socialistas revolucionárias, trotskistas.

 

Na última década, depois da rebelião popular de 2001/2002 – conhecida como “Argentinazo” – assumiram governos “progressistas” encabeçados pelos Kirchner. Eles vieram para reabsorver a rebelião popular, fazendo concessões aqui e ali, mas mantendo o capitalismo e a democracia patronal.

 

Na América do Sul, no último período se observa uma deterioração lenta e desigual, mas aparentemente irreversível desses governos, o que em alguns casos é capitalizado pela direita. Este é principalmente o caso da Venezuela, embora não seja assim na Bolívia e no Equador (onde Correa acaba de ser reeleito), tampouco no Brasil, onde o questionamento ao governo do PT resultou em uma imensa revolta popular.

 

No entanto, uma circunstância comum a todos esses casos é a grande dificuldade da esquerda revolucionária para romper e aparecer como alternativa política frente à grande polarização entre os setores de cima, que se tornou sufocante no caso venezuelano.

 

Uma circunstância assim se viveu, inclusive em nosso país em 2008, quando o conflito entre o governo e os setores agrários, comandados pela Sociedade Rural, apareceu por um período para não deixar espaço político para a esquerda independente.

 

No entanto, este quadro poderia começar a mudar, inclusive, em termos eleitorais. Sem que haja uma conjuntura de grandes conflitos, sem que a deterioração econômica seja catastrófica, nas últimas eleições “primárias” uma faixa minoritária, mas de massas, de um milhão de trabalhadores, se inclinou para a esquerda “vermelha”. Frente a setores mais vastos que os habituais, poderia começar a surgir uma alternativa da esquerda revolucionária diferente e oposta ao “progressismo” da última década. Isto explica a escolha ruim feita pela esquerda reformista que se referencia no chavismo.

 

Mas a esquerda revolucionária tem o desafio de transformar este “gasoso” peso eleitoral que acaba de obter em uma construção orgânica, em primeiro lugar na classe trabalhadora. Esta é condição inevitável para se constituir realmente em uma força histórica em nosso país.

 

Nota:

1) Com mais detalhes, os resultados foram assim: 1) kirchneristas e aliados 29,75% (6.780.000 votos); 2) peronistas opositores 25,74% (5.900.000 votos); 3) União Cívica Radical, “socialistas” e aliados 23,8% (5.460.000 votos); 4) PRO e aliados: 6,65% (1.526.000 votos); 5) partidos de esquerda: 5,4% (1.243.000 votos).

 

Roberto Ramirez é editor de www.socialismo-o-barbarie.org, revista internacional na web.

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