Correio da Cidadania

‘A associação com a FIFA é absurda e foi assinada pelos governos federal, estadual e municipal’

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As mobilizações de junho continuam surtindo efeito pelo Brasil e um de seus primeiros efeitos pedagógicos já pode ser sentido: agora, a ocupação de câmaras e assembleias legislativas se apresenta como novo método de luta e reivindicação dos movimentos que saem às ruas e revitalizam a luta social no Brasil.

 

Em mais um episódio do programa de webrádio Central Autônoma (rádio Central3), o Correio da Cidadania conversou com Fidélis Alcântara, participante da ocupação da Câmara dos Vereadores de Belo Horizonte, que há praticamente 40 dias (com breve interrupção voluntária) pauta a política da cidade.

 

Na conversa, Alcântara, também envolvido na criação do movimento Fora Lacerda (prefeito da cidade), faz um retrospecto das lutas sociais que marcaram os últimos anos da cidade e explica como se deu a formação da Assembleia Popular Horizontal, instância criada pelo atual movimento para debater e deliberar assuntos de interesse geral, colocados nas ruas do Brasil inteiro nesse momento. “Está sendo um movimento, além de construção, também de formação, o que é uma satisfação de participar”, disse.

 

Além de explicar como a capital mineira sofre processo similar a outras grandes capitais de verticalização urbana e privatização de espaços públicos, Fidélis afirma a necessidade de o movimento manter o fôlego para aumentar a pressão sobre os políticos e seus mandatos, inclusive colocando a Copa do Mundo do ano que vem numa sinuca, tal como se viu durante as grandes manifestações em BH na Copa das Confederações.

 

A entrevista completa com Fidélis Alcântara pode ser lida a seguir.

 

Correio da Cidadania: Primeiramente, como você enxergou as manifestações massivas que eclodiram pelo Brasil em junho, a partir da luta pela gratuidade nos transportes, mas também passando fortemente pelas questões da saúde, educação e megaeventos?

 

Fidélis Alcântara: Eu acredito que as lutas de junho foram importantes em diversas questões, mas há duas que eu percebo com mais destaque.

 

A primeira é o despertar da juventude e de parte da sociedade, que não participava de outros movimentos organizados e não havia experimentado a força das ruas. Eu acredito que isso é muito importante pra fortalecer todos os movimentos sociais que estão há algum tempo na estrada, lutando por direitos de toda a sociedade, de modo que engrossar o caldo com o pessoal que está se juntando e se engajando é muito importante.

 

Outra questão é colocar em pauta discussões que são fundamentais para todas as cidades e que estavam sendo escondidas, como a questão da máfia do transporte. Sabemos que não são os vinte centavos da passagem, mas que tais empresários e suas empresas de ônibus controlam políticos e o próprio governo, uma máfia espalhada pelo Brasil todo.

 

Além disso, foi colocada em pauta e está sendo muito discutida por todo o Brasil a grande soma de dinheiro dedicada aos megaeventos, como a Copa do Mundo e as Olimpíadas, enquanto direitos básicos, saúde, educação, moradia e trabalho, não são atendidos. Essas questões estão em pauta e os políticos terão que se mexer.

 

A política brasileira está saindo da inércia empurrada pela grande pressão popular e eu destaco esses dois fatores como os mais importantes: a tomada das ruas e a precisão em colocar na mesa questões que nos atingem, que são sempre escondidas e deixadas de lado.

 

Correio da Cidadania: Especificamente sobre Belo Horizonte, o que você comentaria a respeito das manifestações realizadas na cidade? Quais as principais lutas em andamento pela capital mineira?

 

Fidélis Alcântara: Aqui nós começamos nos dias 13 e 14 de junho. Nós havíamos organizado um seminário sobre os impactos da Copa, pelo Comitê Popular dos Atingidos pela Copa (COPAC), e no dia 15, um sábado, fizemos um ato que se chama Copelada, uma copa de futebol de rua, onde juntamos diversos grupos para jogar bola na rua e conversar sobre os impactos da Copa.

 

Tais grupos vão desde estudantes universitários, sindicalistas, representantes de movimentos sociais, população de rua, todo mundo junto, na rua jogando. E nesse dia nós já saímos com a primeira manifestação definida, unificando com a questão do transporte público. A primeira manifestação já ocorreu unificada e assim aconteceu também em todos os jogos da Copa das Confederações que nós tivemos aqui (os três jogos em Belo Horizonte foram nos dias 17, 22 e 26).

 

No jogo do dia 22 de junho, nós tivemos uma manifestação com mais de 150 mil pessoas nas ruas. Foi uma coisa impressionante. Foi uma caminhada de 8km do centro até o Mineirão, formando-se um corredor gigante nesse espaço todo, com 8km de gente.

 

A manifestação foi brutalmente reprimida pela polícia militar, foi o dia que mais teve repressão, e acabou que no dia 26 não saiu tanta gente às ruas, fomos em torno de 50 a 60 mil.

 

No entanto, teve um confronto maior também porque as pessoas estavam mais cientes do que estava acontecendo ali, sobre os absurdos realizados pela Copa. Dessa forma, toda a união fortaleceu os diversos movimentos envolvidos, desde COPAC, Fora Lacerda, movimentos sociais por moradia, em defesa do direito ao trabalho etc. Os movimentos se uniram e ganharam força durante as manifestações de junho.

 

Correio da Cidadania: Existe uma luta forte na cidade contra a privatização dos espaços públicos urbanos? O que você destacaria da conjuntura recente nesse sentido?

 

Fidélis Alcântara: Aqui em Belo Horizonte nós sofremos um processo, que vem se fortalecendo desde 2009, de privatização de espaços públicos e venda de terrenos públicos para a iniciativa privada, numa grande aceleração da especulação imobiliária.

 

No final de dezembro de 2009, o prefeito decretou aqui a proibição de realização de evento de qualquer natureza numa praça muito grande que temos no centro da cidade, a Praça da Estação, reformada em 2007, inclusive para receber grandes eventos. Ela comporta de 50 a 60 mil pessoas facilmente e é um espaço muito grande.

 

A partir dessa proibição, um grupo começou a se reunir na praça para protestar contra o decreto. Foi assim que surgiu a Praia da Estação, inicialmente com movimentos ligados à área da cultura e anarquistas. Em seguida, chegaram vários movimentos sociais, sindicatos que engrossaram esse caldo durante todo o verão de 2010 e no verão de 2011. Derrubamos o decreto, o prefeito teve que mudá-lo duas vezes.

 

Hoje, é permitida a realização de eventos na praça, mas ela é alugada, ou seja, de certa forma continua a mobilização. Mas já em 2011 ela gerou o Fora Lacerda, que saiu de pessoas que se organizavam na praça e perceberam que precisavam ampliar a luta na cidade.

 

Nós precisávamos nos juntar com os movimentos por luta por moradia e associações de bairros contra a verticalização de várias regiões da cidade. E são regiões que não suportam tal verticalização, pois não existe estrutura para isso. Depois, foi desdobrando para outros movimentos, como o COPAC, que também se organizou aqui no início de 2011.

 

No meio de 2011, nós tivemos uma ocupação em frente à assembleia do estado, que durou mais de dois meses. Foi uma mobilização muito boa que também deu força às outras.

 

Agora, em 2013, nós tivemos um movimento que se organizou no final de 2012 e início de 2013, chamado Fica Ficus, contra a derrubada de diversas árvores na cidade, árvores centenárias. A ideia de cortar essas árvores era para ampliar a avenida e dar fluxo ao trânsito, ajudando no processo de verticalização.

 

Portanto, os movimentos que foram surgindo ao longo dos tempos, nesses últimos três anos, estão cada vez mais unidos, colaborando uns com as lutas dos outros.

 

Eu acho isso fundamental. A união que está acontecendo é muito interessante. A gente vai numa manifestação em defesa do Ficus e está lá o pessoal que luta por moradia, por transporte. A gente vai num movimento junto com os professores municipais e estão lá os grupos anarquistas, o grupo que luta por moradia, o sindicato de outras representações, estudantes.

 

Portanto, a ampliação das lutas se tornou uma coisa muito importante para nós e a colaboração entre os movimentos é muito rica.

 

Correio da Cidadania: Como se chegou à formação da Assembleia Popular Horizontal, aparentemente um dos melhores exemplos de auto-organização desburocratizada que tivemos pelo país, e como ela tem funcionado?

 

Fidélis Alcântara: No dia da primeira marcha que tivemos aqui, durante os jogos, 17 de junho, percebemos que era necessário um maior diálogo entre os setores participantes. Nós vimos várias articulações de movimentos de extrema-direita contra a presença não só de partidos, mas de sindicatos e movimentos, e aí nós marcamos uma primeira reunião, que aconteceu num viaduto central em Belo Horizonte, o Santa Tereza. Debaixo desse viaduto tem uma grande área com um pequeno teatro e espaço para andar de skate.

 

Nessa primeira reunião, foram em torno de mil pessoas. Foi extremamente surpreendente. A assembleia tem uma organização totalmente horizontal. Normalmente quem quer participar da assembleia chega meia hora antes para discutir a metodologia.

 

A metodologia sempre passa por um grande número de falas abertas, com a discussão bem aberta mesmo, com todos podendo se inscrever etc. Às vezes, nós temos assembleias com 150 falas de dois minutos. As assembleias costumam durar quatro horas e logo na primeira reunião discutimos em grupos de trabalhos, para ajudar a organizar a manifestação e também a levantar as pautas.

 

Depois, nós tivemos outras reuniões que passaram a ser semanais, durante esse período. Hoje ainda são semanais e foi sugerida a construção de grupos de trabalhos. Os grupos de trabalhos são responsáveis por pesquisar e aprofundar os assuntos de cada área. Tem o grupo de trabalho da educação, da saúde, da mobilidade urbana, da reforma urbana, da moradia, tem grupos ligados ao meio ambiente, às questões da cultura, aos direitos das minorias e assim por diante.

 

São atualmente onze grupos de trabalho. Esses grupos se reúnem separadamente da assembleia para discutir e aprofundar os temas, levando as questões a serem discutidas e os apontamentos para a assembleia, onde são apresentados, aprovados, ou não, e fica a discussão aberta a todos, depois da discussão que o grupo faz internamente.

 

Também são realizadas – o que acho muito interessante – aulas públicas sobre esses temas de saúde, moradia, direito ao transporte etc. São aulas que servem tanto para fortalecer a construção dos grupos de trabalho quanto para levar novas informações aos participantes.

 

Por exemplo, eu participo do grupo ligado aos direitos humanos, não tenho tanto conhecimento das questões da saúde, mas, ao assistir uma aula pública sobre a saúde, consigo referências melhores, entendendo melhor o processo.

 

No grupo de trabalho, por exemplo, da reforma política, começamos a discutir quais as questões que podemos trabalhar dentro dos municípios, dos estados, do governo federal, como se dá o processo dentro das instâncias legais. São debates muito ricos, são aulas interessantíssimas, e isso está fazendo com que as pessoas se engajem nos movimentos com muito mais propriedade.

 

Eu acho muito importante também porque vai ‘contaminando’. Hoje estamos na construção de movimentos de assembleias nas regiões metropolitanas, na cidade de Contagem, Betim, numa regional um pouco mais distante, que é a de Venda Nova, que também já tem uma assembleia começando. As assembleias locais discutem os temas de cada região e os levam para a Assembleia Popular Horizontal.

 

Portanto, está sendo um movimento, além de construção, também de formação, o que é uma satisfação de participar.

 

Correio da Cidadania: Que avaliação você faz da ocupação da Câmara dos Vereadores de BH, tanto em sua primeira jornada quanto na retomada realizada no dia 1º de agosto?

 

Fidélis Alcântara: Para nós, a ocupação da Câmara dos Vereadores foi uma surpresa. E creio que foi uma surpresa maior ainda para os vereadores, porque eles marcaram uma sessão para o último dia antes do recesso de julho, um sábado. A sessão era de manhã e votaria uma pauta de interesse popular, principalmente a respeito da redução da tarifa, que aqui foi 15 de centavos apenas, mas poderia chegar a 25, sendo que até então falavam que só poderiam reduzir 10 centavos.

 

Não se sabia como seria e fomos lá assistir a sessão da Câmara. Fomos impedidos, disseram que o plenário estava lotado e não podíamos subir, quando sabíamos que não havia nem 200 pessoas.

 

Começamos a pressionar, houve um pequeno confronto com a guarda municipal, que cedeu, e nós ocupamos a Câmara. Os vereadores saíram pelos fundos, fugidos mesmo, numa cena patética. Depois, ficamos ocupando a Câmara durante todo o recesso parlamentar, quando também aconteceram as assembléias populares, que conseguimos levar pra dentro da ocupação.

 

Lá, a união dos movimentos ajudou a fortalecer os grupos de trabalho, além de acertar algumas questões. O prefeito de BH nunca conversou com movimentos sociais, foi a primeira vez que ele fez isso, e por sinal ficou muito constrangido. Tanto que até saiu no meio da reunião. Mas teve que voltar, porque todos os presentes disseram que não iriam embora enquanto ele não voltasse. Ele teve que fazer isso pra poder encerrar a reunião e concretizar o que tínhamos conversado. Depois, desocupamos o local voluntariamente. Tudo isso deu muita força e entusiasmo pra todos aqui.

 

Com a volta dos trabalhos na Câmara, voltamos a ocupar. Na semana passada, a prefeitura ficou quatro dias ocupada pelos movimentos de moradia, que também conseguiram uma vitória muito grande, no caso, a desapropriação de terrenos para que depois se faça a transferência dos títulos de propriedade. Esse era outro assunto que a prefeitura não queria conversar, inclusive no ano passado fez uma desapropriação ilegal de um terreno que não cumpria sua função social e estava abandonado, de propriedade da Codemig, e que na verdade tinha passado por várias transações ilegais. Mesmo assim, a prefeitura conseguiu retirar a ocupação. Dois meses depois, ela voltou no terreno ao lado, também da Codemig. Agora, já tem uma creche e estão abrindo ruas, pois existe um plano urbanístico desenvolvido por arquitetos e professores das universidades daqui.

 

Portanto, as duas ocupações trouxeram novo fôlego para o movimento, uma pressão muito mais forte. E a Câmara, hoje, claramente não sabe o que fazer com a ocupação. Pode sair uma ordem de reintegração de posse, mas por enquanto continuamos todos lá e a pressão segue adiante, pra podermos abrir a caixa preta e reformar os contratos das empresas de ônibus.

 

E também levaremos outras questões levantadas pela Assembleia Popular Horizontal, como saúde, educação, temas da cidade, como a verticalização e urbanização descontroladas. Aliás, essa é uma questão recente muito grave, pois nos últimos quatro anos mais de 25 mil árvores foram derrubadas na cidade; só pra reformar o Mineirão, derrubaram 800 árvores. O problema ambiental também cresce na cidade.

 

Portanto, todas as questões estão entrando nesse movimento de pressão que fazemos sobre os vereadores.

 

Correio da Cidadania: O que você vislumbra a respeito das mobilizações de massa nos próximos tempos, especialmente enquanto ainda respirarmos os ares dos grandes eventos esportivos? Acredita que entraremos no ano de 2014 com o país tão convulsionado como se viu durante a Copa das Confederações e o mês de junho?

 

Fidélis Alcântara: Acredito que nos próximos meses fortaleceremos nossa pauta, procurando novas ações pra manter o fôlego. No ano que vem, teremos eleições e Copa. Calculo que será um dos processos eleitorais mais importantes que o país vai passar, pois teremos de mostrar a força da nossa democracia. Fico preocupado com a tentativa de grupos de direita de tentarem usar as manifestações exclusivamente contra o governo federal, ou colocando certas questões no meio e deixando outras de lado.

 

Assim, estamos reforçando o movimento, nos organizando pra impedir isso, pra que levemos todas as nossas reivindicações às manifestações da Copa, contra os governos federal, estadual e municipal, todos eles. Temos de mostrar que todos eles estão errados, a associação com a FIFA é um absurdo e foi assinada pelos governos federal, estadual e municipal. Temos que mostrar esses desmandos e creio que está sendo dada uma lição de cidadania ao mundo inteiro. Até vi num jornal alemão a análise de que a FIFA nunca tinha passado por um processo tão grande de contestação como está passando no Brasil.

 

Portanto, estamos mostrando que somos apaixonados por futebol, mas não somos iludidos pelo comércio que virou o futebol. Hoje, o futebol é uma grande indústria. E sabemos que a Copa do Mundo não vai deixar legado pra sociedade brasileira. Vai deixar muito dinheiro para os grupos empresariais ligados à FIFA. A população das cidades sedes não tem grandes ganhos diretos. Os ganhos anunciados com mobilidade são necessidades antigas. E no caso de BH, vai melhorar a condição somente de uma região da cidade, enquanto temos problemas muito mais graves de transporte público em outras partes da cidade. Nosso metrô não tem nem 13 quilômetros. Precisamos de mais metrô em várias regiões da cidade e nem se fala mais nisso atualmente. Na última eleição, o prefeito prometeu iniciar as obras do metrô e, até agora, nada. E sabemos que o governo federal já liberou a verba. Mas por algum motivo, a relação com as empresas de ônibus, as obras não vão adiante.

 

É engraçado que inicialmente o COPAC tinha uma postura muito voltada a dizer “não somos contra a Copa, e sim contra a maneira como é organizada e a indústria que se torna o futebol”. Agora, dizem “somos, sim, contra a Copa”. Agora, corre-se o risco de realmente não termos a Copa. Se no primeiro semestre do ano que vem as manifestações crescerem, inviabiliza o turismo, e a continuidade do movimento pode inviabilizar a própria realização dos jogos. Aí, entenderemos que os governos que tentavam usar a forma de encantamento da população – os governos municipal e estadual fazem muita propaganda da Copa por aqui – deram um grande tiro no pé, porque a população não vai engolir tudo isso com a beleza da maquiagem que pretendem fazer.

 

Ouça aqui o áudio da sétima edição do programa de rádio Central Autônoma.

 

Gabriel Brito e Paulo Silva Junior são jornalistas.

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