Correio da Cidadania

Golpe Militar - O Egito eclodido

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A derrubada do presidente-ditador do Egito marechal Hosni Mubarak, em fevereiro de 2011, após 30 anos de poder autoritário, por uma revolta popular, não alterou até hoje o status quo no Oriente Médio. As manifestações populares, sem uma orientação política verdadeiramente progressista (ou seja, democrática e antiliberal), apesar da participação de sindicatos de trabalhadores e de partidos ditos de esquerda, foram facilmente sequestradas pela ingerência de potências regionais e internacionais pró-ocidentais. Pegos de surpresa, os EUA e a Arábia Saudita, irritados com o fim do governo do seu mais fiel aliado árabe, temiam que a revolta popular derrubasse também o regime militar no poder desde 1952. O espectro de um governo democrático não liberal e soberano no Egito se tornou intolerável a Washington D.C e a Riad. A solução emergencial para Barak Obama, tendo em vista as eleições presidenciais de 2012, foi a aproximação com a Irmandade Muçulmana, que não teve qualquer participação ativa na revolta popular anti-Mubarak, em 2011.

 

As primeiras eleições egípcias foram vencidas por Mohammed Mursi, líder do braço político da organização islâmica, o Partido da Liberdade e da Justiça, num processo eleitoral heterodoxo.  Os EUA só não contavam que a Arábia Saudita tivesse má vontade em apoiar a Irmandade Muçulmana-Partido da Liberdade e da Justiça. No entanto, o Partido da Liberdade e da Justiça recebeu apoio financeiro do emirado do Catar e da Turquia durante as eleições. Uma desastrada administração, a continuidade do liberalismo econômico (que destruiu os serviços públicos e desempregou a população), a subserviência ao Ocidente e tentativas de estabelecer um governo autoritário, além de perseguição aos cristãos, provocaram uma segunda onda de protestos populares contra o governo islâmico. Onda de protestos que, no início de julho de 2013, levou à deposição do presidente Mursi pelo Comando Supremo das Forças Armadas. A cúpula militar promoveu um golpe preventivo para impedir que a tomada do poder pelo povo acarretasse uma ruptura com o Ocidente, de quem é cliente. A Constituição, promulgada em 2012, foi suspensa e os EUA e a Arábia Saudita reconheceram de imediato o novo governo do chefe da Suprema Corte Constitucional Adly Mansour, imposto no cargo presidencial pelos militares.

 

Sociedade Dividida

 

O golpe do Comando Supremo das Forças Armadas dividiu a sociedade egípcia e também criou um mal-estar na coalizão pró-Ocidental no Oriente Médio. De um lado, a intervenção militar recebeu apoio popular de grande parte dos manifestantes anti-Mursi, inclusive de lideranças cristãs e dos liberais, tais como Mohammed ElBaradei, um dos líderes civis da revolta anti-Mubarak de 2011, que se encontrou com o último primeiro-ministro do regime de Mubarak, Ahmed Chafik, na Arábia Saudita, meses antes do golpe. Os propósitos daqueles encontros não foram devidamente esclarecidos. A remoção de Mursi recebeu amplo apoio dos Emirados Árabes Unidos, do Kuwait, do Omã e do Bahrein, além do reino saudita, que prometeram enviar US$ 12 bilhões de ajuda ao Egito em gesto de boa vontade com o novo governo. As petromonarquias do Golfo, com a exceção do Catar, eram opositoras da Irmandade Muçulmana, vista como excessivamente moderada, popular e acomodada com o tradicional jogo político.

 

Por outro lado, Mursi e o Partido da Liberdade e da Justiça  têm apoio popular, ainda que não seja majoritário, e têm também apoio de potências regionais (Turquia) e internacionais. A brutal repressão desencadeada pelo Comando Supremo das Forças Armadas  contra as manifestações pró-Mursi causou mal-estar aos EUA, que não querem ver seu antigo aliado totalmente marginalizado da vida política egípcia. Afinal, o governo da Irmandade Muçulmana- Partido da Liberdade e da Justiça deu continuidade à paz com Israel, manteve o bloqueio à Faixa de Gaza e passou a exercer influência sobre do Hamas, buscando moderar as ações do grupo palestino. O presidente Barak Obama ameaçou até mesmo a cortar a ajuda financeira anual ao Egito, estabelecida após o Tratado de Paz com Israel em 1979, se o novo governo continuasse a combater a Irmandade Muçulmana- Partido da Liberdade e da Justiça.

 

A ameaça parece não ter surtido efeito algum. Há uma verdadeira caça à Irmandade Muçulmana promovida pelos militares. Mursi foi preso, assim como vários integrantes da cúpula da organização, e está sendo acusado de um suposto conluio com o Hamas num ataque a tropas egípcias no Sinai, em 2012. Um favor feito aos sauditas, uma vez que o reino árabe tem atritos com o Hamas, apoiado pelo Catar. A brutal repressão conta com apoio popular de vários setores da sociedade egípcia, como os cristãos, que continuam sendo perseguidos e assassinados, e até mesmo de salafistas (extremistas islâmicos anti-xiitas simpáticos aos sauditas) dentro e fora das forças armadas. Mais de 250 pessoas foram assassinadas pelas forças de segurança desde o golpe de julho. A Irmandade Muçulmana- Partido da Liberdade e da Justiça, por sua vez, não arrefeceu as manifestações em favor da recondução de Mursi ao poder e há fortes suspeitas de que seus simpatizantes e militantes sejam autores de atentados contra cristãos coptas e forças do governo.

 

Mobilização Popular

 

A crítica situação do Egito está longe de ser definida. A mobilização popular permanece. A repressão governamental está acirrada. Há acenos para que haja uma acomodação do novo governo com alguns integrantes da Irmandade Muçulmana, mas as relações obscuras entre o atual vice-presidente ElBaradei com ex-integrantes do governo de Mubarak são um péssimo sinal para uma radical mudança de regime. Não há qualquer perspectiva no presente momento de que se estabeleça de fato um governo soberano no Egito e, a persistir a violenta repressão, confrontada com uma oposição cada vez mais mobilizada e enfurecida, há uma real possibilidade de que ecloda uma guerra civil no Egito. Se os EUA entenderem que não há chances de manter a total submissão do Egito à sua geoestratégia de poder global, a opção de fazer eclodir uma guerra civil (a via indireta) pode se tornar concreta. Uma opção que já havia sido vislumbrada por estrategistas israelenses, em 1982, às vésperas da invasão do Líbano.

 

Desde a derrubada Mubarak, em 2011, o Egito se converteu em mais um campo de batalha da guerra travada pelos EUA contra o resto da humanidade (segundo a Teoria do Choque de Civilizações do falecido politólogo Samuel P. Huntington) em busca da hegemonia global absoluta por meio do cerco e da contenção da China e da Rússia. Uma guerra mundial que foi iniciada na década de 1990, sendo travada no Panamá, no Iraque, na antiga Iugoslávia, na Somália, na República Democrática do Congo, na Líbia, no Afeganistão, no Iêmen, no Paquistão, na Coréia, no Mali, na Palestina, na Síria, na América do Sul (na Colômbia, na Venezuela e, mais recentemente, no Paraguai). Várias batalhas de uma só guerra. Uma derrota imperialista no Egito, com a vitória de uma revolução popular, seria um duro golpe para os EUA, com consequências imprevisíveis em todo espaço afro-asiático. Aguardemos os novos acontecimentos no País do Nilo.

 

Ramez Philippe Maalouf é Historiador e doutorando em Geografia Humana pela USP.

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