Correio da Cidadania

Reformular os investimentos

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O governo tem sido criticado, à esquerda, por praticar uma política econômica marcada por ações de varejo e de curto prazo, respondendo com atraso aos problemas conjunturais. A percepção de que faltaria visão estratégica parece ter se tornado evidente com o repúdio de centenas de milhares de manifestantes à falta de prioridade dos investimentos e obras em áreas que afetam diretamente a melhoria da vida do povo.

 

Por isso, a reformulação das políticas de investimento, tomando como prioridades de curto prazo a agricultura de alimentos para o mercado doméstico, a indústria de bens de consumo corrente e a infraestrutura tornou-se inadiável. A médio e longo prazos, porém, a questão dos investimentos envolve o estoque de capitais públicos e privados acumulados no país. Há um mito, em certos setores da esquerda, de que o capital estatal acumulado seria capaz de suprir todas as necessidades de investimento do Brasil. Permitiria ao governo atuar sozinho em áreas estratégicas como a exploração de petróleo e gás, construção de hidrelétricas etc. Em sentido oposto, neoliberais e liberais acham que o Estado deveria limitar-se a fornecer financiamentos para despertar o espírito animal do setor privado, o único capaz de evitar desperdícios e realizar a produção dentro dos princípios da relação custo/benefício.

 

Na prática, por um lado, o capital estatal é reduzido e, ainda por cima, se vê contingenciado por uma série de obstáculos. Inclusive pelo fato de que as ideias neoliberais e liberais ainda fazem com que o Estado se ache na obrigação de fornecer financiamentos para empresas, até estrangeiras, que teoricamente estariam investindo capitais no Brasil. Quando a State Grid comprou ativos da Abengoa no Brasil, descobriu-se que essa empresa espanhola havia investido cerca de um bilhão de reais no setor de transmissão elétrica com dinheiro do BNDES.

 

Este não é, nem foi, um caso único. Não esqueçamos que a Ford, para localizar uma planta de fabricação no Rio Grande do Sul, exigiu não só isenções fiscais e outras facilidades, mas também mais de 500 milhões de dólares para a implantação das instalações. O governo petista do RS se negou a aceitar essas exigências, mas o governo de Antônio Carlos Magalhães as aceitou e levou a fábrica da Ford para a Bahia. Temos, portanto, pelo menos três outros problemas relacionados com os investimentos. Um, com o pequeno estoque de capitais estatais e onde eles devem ser empregados. Outro, com o estoque de capitais privados e para onde tais capitais devem ser direcionados. E, ainda outro, com a necessidade ou não de atrair capitais estrangeiros e como tratar tais investimentos.

 

O pequeno estoque de capitais estatais está longe de poder atender a todas as demandas de desenvolvimento do país, mesmo as de curto prazo. Se olharmos numa perspectiva de desenvolvimento de longo prazo das forças produtivas, esse estoque aparece numa dimensão ainda mais diminuta. Nessas condições, mesmo que o Estado já fosse socialista, a parceria com capitais privados se apresentaria com uma necessidade inarredável. No Brasil, a situação dessa parceria se complica porque o capital financeiro, industrial, comercial e de serviços é principalmente de propriedade monopolista e oligopolista. Além de operar com preços administrados para gerar altos lucros, esses capitais se empenham em eliminar ou reduzir ao mínimo a concorrência. Funcionam em sistemas de cartel, alguns menos dissimulados, como é o caso da indústria de cimento e da mineração, ou mais dissimulados, como é o caso das indústrias automobilísticas e do comércio de commodities agrícolas e de fertilizantes e agrotóxicos. Sua prática não consiste em investir em plantas novas, mas comprar plantas existentes, o que não aumenta em nada a produção.

 

Para complicar, os médios e pequenos capitalistas não possuem capitais acumulados, nem condições técnicas e administrativas, para participar de obras de infraestrutura e de outros empreendimentos de maior vulto. A única maneira de mudar essa situação seria a execução de políticas estatais específicas voltadas para dar musculatura a essas empresas e abrir condições para elas crescerem. Políticas desse tipo foram empregadas por vários Estados, inclusive capitalistas, como Japão e Coréia do Sul, para evitar que a monopolização funcionasse como um freio ao desenvolvimento tecnológico e ao rebaixamento dos custos e preços. Na China e no Vietnã, essas políticas foram acompanhadas pela divisão dos antigos monopólios estatais em várias empresas, de modo a estimular a competição.

 

Mesmo no Brasil, entre os anos 1950 e 1960, a Petrobras tinha uma política de se associar a pequenas e médias empresas para aumentar o conteúdo local da indústria de petróleo, política que vem sendo retomada. Em todas essas experiências, que aumentaram o grau interno de concorrência e levaram várias empresas menores a se tornarem grandes, o papel indutor do Estado foi essencial. Assim, se é imperioso que o Estado participe em parceria com capitais privados, é também imperioso que as empresas privadas apliquem capitais seus, não os capitais dos bancos estatais. E que o Estado crie mecanismos de participação de pequenas e médias empresas, no sentido de fazer com que elas ganhem musculatura técnica e administrativa, acumulem capital, e implantem a concorrência nos diversos setores da economia brasileira.

 

Adicionalmente, além do fato de boa parte do capital privado ser rentista, é preciso admitir que o somatório do capital estatal e do capital privado nacional não tem condições de atender às necessidades de investimento, tanto no curto quanto no longo prazo. O que nos obriga a tratar da atração de investimentos externos para completar o estoque de capital necessário. É evidente que, deixados à vontade, tais capitais tendem a se voltar para áreas que oferecem maior rentabilidade, com maior rapidez, o que quase sempre não condiz com as áreas prioritárias do país.

 

Há gente que sustenta a opinião de que impor condicionantes à entrada de capitais estrangeiros seria o mesmo que afastá-los. No entanto, quase todos os países em desenvolvimento estão impondo diversos tipos de condicionantes, sem que os capitais estrangeiros os repudiem. Isto, pelo simples fato que há imensos capitais excedentes que precisam ser aplicados. Portanto, sempre há a possibilidade de selecionar projetos, tanto de capitais estatais quanto de capitais privados nacionais, em que as taxas de retorno sejam favoráveis e possam atrair capitais externos. O problema consiste em organizar esse processo, aproveitando a experiência dos países que conseguiram criar uma indústria nacional própria ao lado das empresas multinacionais ou transnacionais.

 

Finalmente, há o problema do tratamento a ser dado ao mercado chinês. De imediato, é impressionante como os neoliberais e muito dos liberais não entendem o significado das mudanças na política de investimento da China, basicamente visando dobrar o PIB per capita até 2020, e substituir o padrão Made in China pelo padrão Made by China. As novas mudanças na China abrem uma janela enorme para o Brasil atrair investimentos chineses nas áreas de infraestrutura, indústria e parques tecnológicos, e para descobrir vários segmentos de mercado para os quais o Brasil poderá exportar manufaturados e tecnologias.

 

O problema consiste no pequeno espírito animal do empresariado e do governo brasileiros. Isto pode impedi-los de investir em pesquisas de mercado e de aproveitar as oportunidades existentes. Além disso, por incrível que pareça, pode tornar realidade o pesadelo de o Brasil ser um importador cativo de feijão e de outros produtos agrícolas daquele país, cuja área agrícola é apenas um terço da nossa, e cuja população é sete vezes maior. Já há sinais disso.

 

 

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Wladimir Pomar é escritor e analista político.

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