Correio da Cidadania

A história se repete

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Milhares de pessoas saem às ruas em várias partes do país. As forças de repressão usam da violência para coibir os protestos, gerando uma onda de solidariedade aos manifestantes. A imprensa, sempre alheia a qualquer forma de contestação da ordem, já não pode ocultar os fatos e passa a dar destaque às manifestações. Os governantes, acuados, anunciam medidas para responderem à insatisfação popular. Surge um movimento difuso que critica fortemente a ordem político-institucional do país, incluindo o sistema partidário e eleitoral. Na eleição seguinte, os resultados são surpreendentes e novos atores entram em cena, como resposta da sociedade aos velhos políticos de sempre.

 

Esse roteiro poderia servir para muitos países. Da crise na Argentina, em 2002, ao movimento dos indignados, na Espanha. Está na origem dos processos que levaram Hugo Chávez, Evo Morales e Rafael Correa ao poder nos seus países: o Caracazo, na Venezuela, a Crise do Gás, na Bolívia, e a deposição de Lucio Gutierrez, no Equador. Não é exatamente uma novidade na história. Por que, então, há tanta dificuldade em compreender o que está acontecendo no Brasil?

 

A confusão em torno dos protestos que tomaram as ruas nas últimas semanas é instrumental. Serve para impedir uma análise profunda das razões que levaram ao surgimento deste movimento. Teses como a do “gigante adormecido” são utilizadas para desviar o foco dos reais motivos da onda de protestos: os limites do atual modelo econômico e político, que há muito tempo não responde aos anseios populares.

 

Em busca das motivações

 

Há muitas teses sobre o que está acontecendo. A já mencionada ideia do “gigante adormecido” parte da premissa de que o país vivia uma profunda paz social. Desconsidera os conflitos originados pelo atual modelo econômico, como aquele que opôs latifundiários e ambientalistas na reforma do Código Florestal, ou como o que levou a Força Nacional a reprimir as manifestações contra a Usina de Belo Monte. A ideia de que não havia conflitos sociais no país reforça a tese de que estamos vivendo um “despertar da cidadania” e que os conflitos de classe registrados nos últimos anos não passavam de casos pontuais. Lembremos que o mesmo argumento foi utilizado para explicar, por exemplo, a Primavera Árabe. As crescentes mobilizações do movimento operário que antecederam a queda de Hosni Mubarak no Egito foram solenemente ignoradas pela maioria dos analistas, que preferiram privilegiar o papel das redes sociais. No caso do Brasil, é impossível compreender o que levou milhões de pessoas às ruas sem analisar a situação do país nos últimos anos.

 

O modelo econômico brasileiro beneficiou-se, até a crise econômica de 2008, de um cenário de crescimento da economia mundial. Embora profundamente marcada pela dependência externa e pela subordinação ao mercado financeiro internacional – através do aumento exponencial da dívida pública –, a economia brasileira cresceu o suficiente para diminuir sensivelmente o desemprego e permitir um aquecimento do mercado interno. Isso garantiu um aumento do consumo e do acesso a alguns bens e serviços antes restritos a uma minoria. Com o apoio de programas sociais que ampliaram pontualmente o acesso a alguns direitos, gerou-se uma sensação de ascensão social. É daí, por exemplo, que surge a falaciosa ideia de uma “nova classe média”. Enquanto isso, banqueiros, latifundiários e empreiteiras beneficiaram-se desse modelo, ampliando o fosso da concentração de renda.

 

No plano da política, o projeto das elites sustenta-se através da existência de um pacto conservador. Esse pacto se dá através da incorporação de quase todos os velhos partidos da burguesia que representam setores da capital monopolista ao governo e da formação de uma maioria parlamentar. Essa “governabilidade” mantém o sistema político subordinado a interesses econômicos e é extremamente suscetível à corrupção, o que alimenta o descrédito de amplas camadas populares com os partidos políticos em geral.

 

Poderíamos dizer, portanto, que os protestos que tiveram como origem a luta contra o aumento das tarifas e a defesa de um transporte público de qualidade, se expandindo em seguida para diversas reivindicações, têm como origem a soma de três fatores: a) a insatisfação daqueles que, uma vez incluídos ao mundo do consumo, depararam-se com serviços públicos de péssima qualidade, tendo de recorrer ao mercado para satisfazer suas necessidades, b) o descrédito com o sistema de representação política e sua incapacidade de absorver as reivindicações populares; c) o repúdio à violência de Estado que, diante do primeiro sinal de contestação à ordem, responde com repressão e truculência.

 

Os caminhos a evitar

 

Outras abordagens têm trilhado caminhos distintos. Algumas, por absurdas ou perigosas, merecem destaque. Uma das mais recorrentes – e ao mesmo tempo mais previsíveis – é a do “golpe das elites”. Toda vez que a estabilidade do pacto conservador é abalada, governistas de todas as colorações começam a retomar a tese formulada em 2005, em meio ao escândalo do “mensalão”, segundo a qual as elites não perderiam a oportunidade de sacar o PT do governo federal. Naquela ocasião, Lula criou o mito de que as “elites” estavam conspirando para derrubá-lo através de um golpe, quando na verdade elas pressionavam por mais concessões. Os movimentos sociais dirigidos pela esquerda governista encamparam essa tese, desconsiderando que a mesma elite lucrava como nunca e não tinha qualquer interesse numa quebra da legalidade. Desconsideraram ainda que alguns de seus representantes, como Roberto Rodrigues, Henrique Meirelles e Luiz Fernando Furlan, compunham diretamente o governo na condição de ministros, demonstrando a flagrante adesão de diferentes frações da burguesia – bancos, agronegócio e capital industrial – ao projeto de desenvolvimento conservador implementado por Lula.

 

Agora que a população toma as ruas, com sentimentos e posições muitas vezes contraditórias – como é próprio do senso comum –, e dirige parte de sua insatisfação ao governo federal, o fantasma do golpe reaparece. Evidentemente, a direita brasileira tem o golpismo em seu DNA. Mas não é do seu interesse um aprofundamento da instabilidade. É verdade que há um amplo espaço para a disputa de valores conservadores e é isso que a direita está buscando: influenciar para evitar uma ofensiva popular que transforme a insatisfação em combustível para mudanças mais profundas.

 

Obviamente, quanto maiores os protestos, mais eles refletirão o que é a sociedade brasileira hoje. Ou seja, se considerarmos que a sociedade é ainda profundamente conservadora – vide as recentes pesquisas sobre o tema –, por que deveríamos esperar que todas as pessoas que estão participando dos protestos saibam exatamente o que estão fazendo?

 

Os últimos vinte anos foram marcados pelo refluxo das lutas de massas. Nesse período, os valores conservadores ganharam terreno a partir da ofensiva ideológica do neoliberalismo. Não deve nos espantar, portanto, que, em meio a um processo tão difuso, quanto esse, misturem-se bandeiras progressistas e reacionárias. O mesmo serve para a repulsa aos partidos políticos, observada nas últimas manifestações. Afinal, se considerarmos que parte desse movimento alimenta-se justamente da negação do atual sistema de representação política, por que esperar que os indivíduos consigam fazer a correta distinção entre os velhos partidos da ordem e os partidos combativos e independentes?

 

Outra tese que merece ser evitada é a que vê os protestos como o anúncio de uma revolução. Parece óbvio a qualquer análise séria que a atual explosão de insatisfação não tem o alcance e a profundidade necessária para a superação da atual ordem política. Mas não devemos subestimar a vontade de certa esquerda em enxergar revoluções em todos os lados. Assim foi recentemente com a Primavera Árabe. São os mesmos, aliás, que consideram até hoje a queda do muro de Berlim e a restauração capitalista na Alemanha Oriental, em 1989, uma “revolução”.

 

Logo, se há aqueles que torcem para que o movimento arrefeça, vendo nele uma ameaça aos poderes constituídos, existem também os que são incapazes de lidar adequadamente com a realidade dos fatos, vendo sua profecia revolucionária prestes a se confirmar em qualquer onda de contestação.

 

Consequências

Nenhum processo dessas dimensões passa sem deixar marcas profundas na vida política do país, sobretudo se levarmos em conta que a ofensiva conservadora vinha sendo muito bem sucedida até aqui. A adesão dos partidos que nos anos 90 ainda representavam a resistência popular ao projeto de dominação foi, sem dúvida, a maior vitória das elites nacionais. A partir daí houve um profundo processo de desmobilização da pressão social por mudanças, desarmando o movimento de massas e enfraquecendo suas entidades representativas. O que vimos nos últimos anos foi, portanto, um gradual aggiornamento dos partidos e entidades do antigo bloco popular à ordem burguesa.

 

Os primeiros sinais de esgotamento do modelo econômico (retomada da inflação, estagnação econômica, sucateamento dos serviços públicos, desvio de bilhões de reais para os grandes eventos esportivos etc.) já vinham alimentando uma gradual retomada das lutas sociais e um aprofundamento das contradições no interior do movimento popular. Esse processo veio aliado ao aumento das pressões da direita por concessões ainda maiores. São exemplos dessa dinâmica a indicação de Marco Feliciano para a presidência da Comissão de Direitos Humanos da Câmara dos Deputados, facilitada pelo governo em troca do apoio da ultraconservadora bancada evangélica, e a pressão dos ruralistas pela aprovação da PEC 215 e o fim das demarcações de terras indígenas. Ou seja, além de dar sinais de esgotamento no campo da economia, o projeto liderado pelo PT reforçou, através do padrão de governabilidade implantado, um sentimento de descrédito com a política e as instituições. Considerando o aumento das lutas sociais, esse cenário só precisava de uma centelha: nesse caso, os vinte centavos e a repressão policial.

 

A explosão popular que tomou as ruas é uma espécie de ultrapassagem da história. Os fatos aceleraram-se muito além do que a dinâmica do processo histórico podia prever até então. Por isso a sensação de confusão. Mas basta observarmos outros países em que levantes de massas têm acontecido para compreender como uma demanda pontual pode desdobrar-se numa ampla contestação da ordem. O exemplo da Turquia, onde milhares de pessoas transformaram a luta em defesa de um parque na luta em defesa de outro modelo político, é emblemático.

 

Mas assim como a história nos fornece modelos comparativos, ela também nos dá pistas de por quais leitos suas águas correrão. Devemos nos arriscar a prever as consequências desse processo, sob pena de perdermos a possibilidade de influenciar seus rumos. A primeira e talvez mais óbvia delas: abriu-se um espaço de questionamento ao modelo político-eleitoral de representação, e aqueles que estiverem mais bem posicionados – isto é, mais próximos à média desse sentimento – capitalizarão mais. Ou seja, alguns atores sairão mais fortalecidos e outros menos. Parece evidente, por exemplo, que a tranquila reeleição de Dilma no ano que vem está severamente ameaçada pelas mudanças promovidas nesse processo.

 

Outra consequência fundamental é que a população como um todo, e a juventude em especial, sairá mais politizada e mais consciente de sua força. Esse é um saldo extremamente positivo. Isso não significa que as alternativas de mudança – à esquerda e à direita – sairão necessariamente fortalecidas, mas apenas que a margem de manobra das forças que sustentam o atual modelo diminuiu.

 

Por último, é previsível que a onda de protestos arrefeça. É assim que costuma acontecer (ao menos que se trate, realmente, de um processo revolucionário). Logo, haverá um rescaldo em que boa parte das pessoas que ora ocupam as ruas buscarão uma forma de se manterem em movimento. A grande maioria voltará às suas casas, mas muitos preferirão manterem-se engajados. E essa será a hora de os partidos independentes e combativos, que desde o primeiro momento estiveram ao lado dos manifestantes organizando os primeiros atos contra o aumento das tarifas ou votando no parlamento contra a Lei Geral da Copa, ocuparem seu legítimo espaço de alternativa. Certamente, os partidos e entidades que estiverem mais distantes do pacto conservador, mesmo que num projeto difuso e contraditório, sairão fortalecidos.

 

Como devem agir os partidos socialistas?

É preciso, portanto, preparar-se para atuar agora e depois. Agora, a hora é de incidir para equilibrar a pauta dos protestos. O conservadorismo percebeu a oportunidade de fortalecer sua agenda e tem disputado fortemente os rumos da insatisfação popular. Aos socialistas cabe agir para dar visibilidade às bandeiras progressistas já presentes e incluir outras que estão em segundo plano. Isso tudo, é claro, mediando nossa plataforma com o nível de consciência das massas em movimento.

 

Como há um profundo questionamento ao modelo político, a hora é de defender uma reforma política radical. Isso, porém, pode soar incompreensível para muitos, daí a necessidade de esmiuçar nossa plataforma em consignas claras, como o fim do voto secreto no Congresso Nacional. O mesmo vale para a educação, com a bandeira dos 10% do PIB, ou para a Copa do Mundo, exigindo a revogação da Lei Geral da Copa.

 

Além disso, devemos viabilizar espaços de organização política. Fortalecer os partidos e movimentos independentes através de um processo permanente de encontros, reuniões, assembleias etc. Enfim, dar vazão ao desejo de participação política da multidão.

 

Por fim, é hora de apostar na unidade. As esquerdas e suas múltiplas tradições e leituras devem estar o mais unificada possível, com o objetivo de impedir uma guinada conservadora num processo que, até aqui, mostrou-se profundamente positivo. Não se trata, evidentemente, de suprimir divergências ou construir alianças artificiais, mas de buscar naqueles pontos que unificam os setores progressistas uma agenda comum para intervir junto aos protestos em defesa de temas como a luta contra redução da maioridade penal, a defesa dos povos indígenas, o controle social dos meios de comunicação, o fim das privatizações, dentre muitos outros.

 

A hora, portanto, é de aproveitar o momento para denunciar os limites do atual modelo político e econômico e fortalecer uma alternativa socialista e popular para o Brasil. Com isso, a mobilização deixará um saldo positivo para o país. Às ruas!

 

Juliano Medeiros é jornalista e membro da Direção Nacional do PSOL e da Fundação Lauro Campos.

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