Correio da Cidadania

Cadê a voz do biólogo?

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Folheando a Conservation Biology, prestigiada revista acadêmica norte-americana da área da biologia da conservação, deparei-me com um texto provocativo sobre a negligente posição dos biólogos a respeito do problema da certificação madeireira em áreas de florestas tropicais. O artigo “Timber Certification: Where is the voice of the Biologist?” (Volume 15, nº. 2, de abril de 2001), de Elizabeth Bennett, bióloga da Wildlife Conservation Society (WCS), parte da constatação de que nós biólogos estamos familiarizados com imagens de árvores sendo derrubadas em florestas tropicais para exploração madeireira. Estamos também cientes de que, a cada ano, abrem-se acessos a novas áreas de floresta, através de estradas relacionadas às atividades madeireiras, que somadas equivalem ao território da Áustria.

 

O mundo está um pouco mais consciente do problema. Cresce a procura por “madeira verde”, certificada por agências internacionais, que garantem uma autodenominada “sustentabilidade” da extração da madeira, que teoricamente respeitaria a sobrevivência do ecossistema local. Há, entretanto, sérios problemas que persistem na forma como a exploração é feita e em seus efeitos sobre a biodiversidade, especialmente sobre a fauna mais vulnerável.

 

Por quê?

 

Primeiro, áreas totalmente protegidas serão sempre muito pequenas se comparadas com aquelas voltadas à produção. Um exemplo típico é Sarawak, um dos estados da Malásia na ilha de Bornéu e um dos principais produtores mundiais de madeira tropical: 10% da sua área total foram destinados para proteção e 50% para a exploração madeireira. “Para proteger a vida selvagem em toda a paisagem [de todos os cantos e não apenas de parques e reservas] e garantir a sobrevivência das espécies dos animais que se deslocam por grandes áreas, precisamos nos assegurar que a biodiversidade seja levada em consideração no total das áreas de produção, e não apenas em alguns bolsões dentro de um mar de exploração madeireira”, destacou a bióloga.

 

Para Elizabeth Bennett, embora as agências certificadoras tenham formulado princípios detalhados, indicadores e recomendações, poucas destas preocupações referem-se à vida selvagem. Aquelas que o fazem recomendam principalmente a proteção de áreas importantes para a flora e a fauna, mas não levam em consideração os efeitos mais amplos da exploração sobre as mesmas. Como exemplo, Bennett cita o FSC (Forest Stewardship Council), que é o conselho certificador mais conhecido e utilizado e que possivelmente possui, segundo ela, os padrões mais elevados de certificação madeireira. Tais padrões são baseados em dez princípios, cada qual com as suas diretrizes. Os princípios incluem a garantia de que as leis locais serão respeitadas e que os impostos sejam pagos (até agora não fazem nada mais do que mencionar o óbvio), de que os desperdícios sejam reduzidos, de que seja executado um manejo planejado, com um plano de extração (supostamente) sustentável, e de que sejam controlados efeitos como a erosão e a poluição das águas.

 

Outros princípios do FSC na verdade refletem o fato de que muitas das preocupações originais referentes à não-sustentabilidade não partiram de biólogos, mas de grupos de pessoas ligadas aos direitos humanos e dos povos indígenas. Assim, três dos dez princípios são dedicados a direitos dos habitantes locais e dos trabalhadores — o que é louvável e necessário, segundo ela. Mas, destaca, há uma evidente falta de princípios correspondentes relacionados à biodiversidade em geral e à vida selvagem em particular: “Não apenas eles mal citam a questão da caça e do comércio de animais selvagens, mas, quando o fazem, são tão genéricos e indefinidos que as referências terminam por ser desprovidas de significado”.

 

A vida selvagem é afetada pela atividade madeireira de várias formas. Os efeitos diretos da extração dependem de sua intensidade e freqüência e das espécies de fauna envolvidas. Segundo a bióloga, mesmo quando as empresas entram nas áreas uma só vez e as deixam em seguida para regeneração, algumas espécies, como certas aves insetívoras, desaparecem completamente. Muitas espécies, de primatas em especial, declinam em número. Já outras, de ungulados (veados, antílopes, porcos e antas), por exemplo, podem aumentar devido à proliferação da vegetação rasteira decorrente da abertura de clareiras. Mas os efeitos secundários da exploração madeireira são os mais traiçoeiros e graves. Dentre eles, destaca-se o dramático crescimento na caça.

 

Operações madeireiras resultam na imigração para a floresta de grande número de trabalhadores, vários dos quais caçam para consumo próprio. São freqüentemente forasteiros, que vivem na área temporariamente, com poucos incentivos para preservar os recursos para o futuro. Assim, a pressão de caça é alta. Segundo Bennett, em um único campo de exploração em Sarawak, com cerca de 500 pessoas, o total caçado em um ano foi de 1149 animais, correspondendo a 29 toneladas de carne. O comércio de carne de caça na África está estimado em mais de um milhão de toneladas por ano, grande parte do qual vem de florestas cujo acesso foi aberto por estradas criadas pela indústria madeireira. Processos semelhantes estariam acontecendo na América Latina e Sudeste Asiático.

 

Os estudiosos da “biologia da conservação” vêm pesquisando o problema há mais de 20 anos e estamos cientes das conseqüências para a flora e para a fauna da exploração seletiva de árvores. Mas, para a autora, temos sido ineficientes em traduzir esta pesquisa em ações políticas: “A indústria madeireira dá pouca atenção a nossos resultados, e a exploração continua da mesma forma na maior parte das regiões tropicais”. A desconsideração dos efeitos da exploração madeireira sobre a vida selvagem e a ecologia da floresta resulta no paradoxo de que agências trabalhando em “questões de sustentabilidade” freqüentemente sequer possuem biólogos em suas equipes. Engenheiros florestais e antropólogos estão geralmente presentes. Concluindo a autocrítica, Elizabeth Bennett cita ainda um eminente biólogo de campo, George Schaller, também da WCS, que disse: “Entender a natureza não é o suficiente. Cientistas também têm a obrigação moral de ajudar a salvar o que eles estudam”.

 

É nesse cenário já conhecido que o nosso governo empurrou goela abaixo o projeto de concessão de florestas públicas. Merece aplausos irônicos.

 

P.S.: Para quem se interessar em saber mais sobre este debate, o artigo da Conservation Biology foi respondido por vários especialistas no mesmo volume da revista. Entre eles está Henry Cauley, do Forest Stewardship Council, e colaboradores. Na minha opinião, foram tão evasivos em sua resposta com relação ao problema da caça nas florestas abertas para a exploração “sustentável”, quanto — segundo Elizabeth Bennett — são os próprios princípios do FSC. A Conservation Biology pode ser encontrada na biblioteca de qualquer faculdade de biologia com um acervo razoável na área de conservação ou no site (de acesso restrito): www.blackwellpublishing.com/journal.asp?ref=0888-8892&site=1).

 

 

Rodolfo Salm, PhD em Ciências Ambientais pela Universidade de East Anglia, é pesquisador do Museu Paraense Emílio Goeldi. E-mail: Este endereço de email está sendo protegido de spambots. Você precisa do JavaScript ativado para vê-lo.

 

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