Correio da Cidadania

O povo voltou às ruas, Lamu!

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Lamu é o nome que estou dando a uma cambada da cientistas políticos e associados que saíram à liça para criticar, por todos os lados, o retorno das manifestações populares. Para Lamu, essas manifestações seriam obra de grupos radicais de esquerda, de fora e de dentro do PT. E não seriam compatíveis com a democracia, por ficarem protestando difusa e romanticamente por questões econômicas, quando haveria outros assuntos mais importantes a tratar. Os reajustes dos ônibus teriam sido inferiores à inflação e, se houvesse insatisfação com os governos, os líderes das manifestações deveriam ter convocado a população para reclamar, em Brasília, dos preços dos alimentos.

 

Não contente em desqualificar as manifestações por supostos assuntos menores, Lamu se esforçou por desmerecer os próprios manifestantes. Seriam pessoas irritadas, procurando extravasar suas frustrações. Seriam baderneiros, prontos para depredar, espancar e realizar enfrentamentos. E seriam os quase invisíveis radicais de esquerda, sempre prontos a colocar gasolina, ou vinagre, no fogo, sem qualquer pauta sensata de reivindicações. Portanto, não passariam de pequenos grupos, cuja ação de quebra-quebra os levaria rapidamente ao fim, não só pela firme e correta ação policial, mas também pela falta de apoio popular.

 

Pobre Lamu, que viu ruir todas as suas análises científicas no dia 17 de junho, quando as manifestações em quase todo o país reuniram dezenas de milhares de manifestantes, demonstrando sua insatisfação. O povo voltou às ruas, Lamu, ao chamado do Movimento Passe Livre (MPL), não só para apoiar a reivindicação de revogação dos reajustes das tarifas de transportes urbanos, mas também para expressar sua oposição ao custo de vida, às prioridades dos investimentos e ao autoritarismo dos governos, que querem impor travas às reivindicações e manifestações populares.

 

Manifestações populares, em ruas e praças, são um direito reconquistado especialmente nas lutas contra a ditadura militar, no movimento das Diretas Já!, nas greves operárias do ABC e nas passeatas pela anistia política e contra o custo de vida, nos anos 1970 e 1980. São conquistas democráticas, totalmente compatíveis com a democracia. Como compatível com a democracia é o direito de grupos, de esquerda, radicais ou não, de convocarem tais manifestações. Incompatível com a democracia, embora faça parte do aprendizado popular para saber tratar com esses fatos, é a ação secreta de policiais e provocadores, para promover quebra-quebras, e das tropas de choque, para realizar confrontos e reprimir violentamente os manifestantes, como aconteceu em várias capitais.

 

Insatisfações populares, Lamu, sempre se materializam, inicialmente, em pequenas manifestações, tomando como ponto de partida um ou alguns aspectos da vida popular que mais incomodam. Conservadores e reacionários, como você, acham um absurdo essa espontaneidade popular que, no mais das vezes, tem a juventude, em especial a estudantil, como porta-bandeira. Como expressam, também em geral, a insatisfação de grandes massas da população, têm a capacidade de superar as repressões e provocações que procuram criminalizar as manifestações, mobilizando grandes multidões não só pelos aspectos inicialmente apresentados, mas também pelo conjunto dos problemas que afligem as outras camadas populares.

 

Ao contrário do que proclamam os governos, os reajustes dos preços dos transportes são uma herança indexada dos anos 1990, cujo acumulado nos últimos anos é muito superior à inflação. É, portanto, uma aberração que sufoca tanto aos estudantes, que reivindicam passe livre, quanto a milhões de trabalhadores, para os quais um aumento de 20 centavos pode representar a gota d’água que arromba seus parcos rendimentos. Mas você, Lamu, que só anda em carro próprio e não conhece o sacrifício de viajar em transportes lotados e pouco seguros, não pode entender isso. Acha-a difusa e romântica, e é incapaz de enxergá-la como a ponta do iceberg do custo de vida.

 

Custo de vida que não se prende aos aumentos sazonais dos alimentos agrícolas e industriais, em parte causados pela crescente falta de apoio à agricultura familiar, responsável por mais de 80% de todos os alimentos que o povo consome. Num enorme descompasso com o financiamento do agronegócio, a agricultura familiar vem definhando e sendo expropriada pelas grandes lavouras de commodities, o que se reflete em preços altos nas feiras e supermercados. Custo de vida que se reflete também nos preços de monopólio praticados pelas corporações industriais que produzem bens de consumo corrente. Na falta de concorrência, essas corporações tornaram os preços brasileiros um dos mais altos do mundo. Se se agregar os juros praticados no mercado, pode-se ter uma ideia do tamanho do bode que a maior parte das famílias brasileiras tem em sua sala.

 

Essas milhões de famílias, muitas das quais se beneficiaram com as políticas de elevação do salário mínimo, de crescimento do emprego e de transferência de renda para propiciar educação e saúde, também começaram a se dar conta das disparidades existentes nos investimentos. A rapidez dos investimentos em praças esportivas, para atender aos compromissos com as Copas de Futebol e as Olimpíadas, é flagrante. Como flagrante é a lerdeza dos investimentos em saneamento básico, na construção de moradias, na reforma e construção de ferrovias, portos e aeroportos, na melhoria dos transportes urbanos, na instalação de novas plantas fabris que mantenham o ritmo de criação de empregos, e na reestruturação da educação e da saúde.

 

Os governos podem até alegar que os novos estádios e instalações esportivas geraram emprego e renda para boa parte da população, como até Lamu reconhece. Mas cada um dos demais investimentos necessários para o Brasil sair da quebradeira herdada dos governos neoliberais também pode gerar o mesmo volume de emprego e renda, com a vantagem de que seus benefícios à população serão superiores. Em outras palavras, as manifestações estão chamando a atenção dos governos para o fato de que querem discutir as prioridades dos investimentos, o que Lamu considera um absurdo, incompatível com sua noção de democracia, segundo a qual essa é uma missão delegada pelas eleições, e não um direito romântico.

 

Nessas condições, se o governo federal se ressentia da falta de uma mobilização social massiva para avançar mais rapidamente nos planos de desenvolvimento, agora tem o dever de reconhecer como democráticas e legitimas as manifestações e as reivindicações populares. Ele precisará tomá-las como ponto de partida, e apelar a seu apoio, para desindexar a economia, tomar a sério o apoio estratégico à agricultura familiar, redirecionar investimentos para reestruturar a indústria de bens de consumo corrente e agilizar os investimentos em infraestrutura. Ou seja, agir prioritariamente naqueles setores capazes de reduzir o custo de vida, e criar novos mecanismos de diálogo com a população em luta.

 

Ao voltar às ruas, o povo está criando uma nova conjuntura social e política, favorável à democracia e ao desenvolvimento econômico, social e ambiental. Para desespero de Lamu e de todos os que não suportam cheiro de povo.

 

 

Wladimir Pomar é escritor e analista político.

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