Correio da Cidadania

Socializar os sonhos na maior arquibancada do Brasil

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Enquanto a bola começa a rolar na Copa das Confederações, o Brasil está em convulsão. Para falar a verdade, o mundo está em convulsão. Se durante muito tempo achamos que a inércia era uma característica que acompanhava o século XXI, hoje podemos visualizar que essa ideia estava equivocada. E, pasmem alguns, o futebol não está afastado disso tudo. Pelo contrário, sobretudo no caso brasileiro, ele é parte integrante de uma discussão fundamental sobre a vida humana em sociedade. Quero refletir acerca do esporte mais popular da Terra, os protestos e manifestações que se alastram entre variados povos e as perspectivas que estão em pauta na realidade contemporânea.

 

Onze atletas de cada lado do campo, correndo atrás de uma esfera, no intuito de chutá-la para dentro de uma goleira. Vendo dessa forma, quer coisa mais banal e alienante? Contudo, tem-se uma visão muito parcial adotando essa postura. O futebol sobrepõe o fato inerente de ser um esporte e um jogo. O que faz dele uma paixão mundial é a existência de uma infinidade de pessoas que o encaram como uma arte, como um sopro de alegria num furacão de possíveis tristezas. É a identificação de distintos seres humanos com uma cor, uma camisa, uma história clubística que constitui a força das grandes equipes espalhadas por aí. A sensação de compartilhar da efervescência intrínseca a uma arquibancada lotada, de coadunar energias para um fim comum, tudo isso concretizado de pé ou sentado, cantando, pulando e, enfim, torcendo. Pode ser no estádio, pode ser na rua, pode ser em casa, fazendo um churrasco ou sentado no sofá. Trata-se de um sentimento que ultrapassa a individualidade.

 

O genial escritor uruguaio Eduardo Galeano cunhou uma expressão aguçada para se referir ao futebol dos tempos atuais. A magia de jogar bola encontra-se à sombra. Seu período de iluminação absoluta já passou. Aquela irradiação maravilhosa de todas as suas belezas sucumbe cada vez mais ao padrão FIFA. Torcedores viram clientes, e é imperativo que paguem caro pelo produto. Estádios viram teatros, repletos de regras de conduta alienígenas. Arquibancadas são tomadas por poltronas, nas quais as bundas alheias se aconchegam e, se o evento estiver chato, fornecem todos os caminhos para um gostoso soninho. Se alguém tirar a camiseta, seguranças privados aceleram seus coturnos para manter a ordem e os bons costumes. Sem falar, é claro, dos milhões e milhões, que totalizam bilhões de reais do governo ou do BNDES destinados a edificar elefantes brancos disseminados pelo país. Dizem que na África do Sul certas arenas estão sendo derrubadas, visto que não possuem qualquer utilidade.

 

Não é à toa que o planeta está em convulsão. Há tantas e tantas coisas para dizer, entaladas na goela das multidões. São tantos os nós nas gargantas. Em Porto Alegre, no Rio de Janeiro, em São Paulo, na Turquia, no Chile, na Grécia, na Espanha, nos países árabes ou nos Estados Unidos. O endereço é o que menos importa. Bastante gente não suporta mais as brutais desigualdades; a concentração de riquezas; o racismo; a homofobia; o machismo; os meios de comunicação hegemônicos ignorantes e corporativistas; a especulação imobiliária; o descaso na educação; o abandono na saúde; o medo generalizado para com o outro; o medo da polícia discriminadora; a corrupção em todas as esferas; o individualismo e o conservadorismo crescentes; enfim, motivos não faltam para tentar virar a mesa. A violência está no cotidiano. Seja física ou simbólica. Dia após dia. Não adianta fechar o vidro do carro que leva quase sempre somente um passageiro e que vale o preço de um apartamento ou de uma sonhada casa própria. Bertolt Brecht nos ensinou que o rio que tudo arrasta é, sim, recheado por violências. Mas as margens que o oprimem também.

 

Creio que todas as pessoas precisam sonhar. Precisam de um passado a se orgulhar, de um presente com oportunidades e um futuro de paz e alegria. Como está até aqui, o trajeto é o inverso. Só uns poucos desfrutam das bonitezas da vida. A rotina nos individualiza demais, amarra-nos ao trabalho incessante, violenta-nos ao permitir que nossos sonhos e utopias sejam freados por uma ordem demasiadamente injusta. Se não mudar, amanhã vai ser maior o coro a ser ouvido. Por variadas razões. E amanhã, e amanhã, e amanhã... Até que a esperança volte a ser mais importante do que o mercado, ou do que uma estabilidade (?) que só traz calmaria para determinados favorecidos. Até que uma vida volte a valer mais do que uma vidraça rachada ou do que o sucesso em transações financeiras com lucros estratosféricos.

 

Os dias que vêm por aí serão de grandes desafios. A parte mais relevante deles, acredito, está associada ao enorme ponto de interrogação que os cercam. As receitas das alternativas passadas engendraram válidas experiências, demonstraram erros e indicaram por quais rumos não marchar. As pessoas que arriscam sua integridade física, que se abrem às críticas ocupando as ruas e manifestando os seus descontentamentos podem ser vistas com inúmeras lentes. Não peço que cheguemos a um consenso. Pelo contrário, a estrada a percorrer é justamente talhada por dissenções, por argumentos antagônicos postos em cheque, discutidos à exaustão. Essa estrada não parece passar pela democracia representativa de viés tradicional. Parece, com efeito, enveredar na busca por outras formas democráticas de deliberar as questões relativas à cidade, ao Estado, à nação e à civilização humana.

 

Uma célebre frase do poeta Sérgio Vaz dá o tom daquilo que os anseios das heterogêneas reivindicações que incomodam os dominantes e seus adeptos carregam como potencial: “Enquanto eles capitalizam a realidade, nós socializamos nossos sonhos”. É hora de aderir ao porvir, de fazer, de experimentar, de errar e acertar para além de uma falsa harmonia que nos põe numa zona de conforto que pouquíssimo tem de confortável. Como diz a paradoxal propaganda de uma montadora de automóveis, repetida nos comerciais televisivos, está na hora de ir para as ruas, já que as ruas são as maiores arquibancadas do Brasil. Ocupar essas arquibancadas públicas. Com pessoas, com arte, com expressão, com cartazes, cânticos e disposição para pensar e concretizar outras vivências cheias de solidariedade e valores que nos complementem uns aos outros. Vivemos num tempo de enormes desafios, mas o mundo está em movimento e nada deve parecer impossível de mudar.

 

Bernardo Caprara é sociólogo e professor e jornalista.

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