Correio da Cidadania

Ocupar a Paulista! Por um transporte público de qualidade, gratuito e universal!

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Para quem leu a seção Opinião da Folha de quinta-feira devem ter ficado claras as táticas que a grande imprensa monopolista se vale para revestir de neutralidade e imparcialidade uma forma de fazer jornalismo que é, na verdade, oportunista, interessada, facciosa. Assim, enquanto o editorial faz acusações sujas e brada contra o Movimento Passe Livre de São Paulo, a coluna Tendências/Debates dá voz a este mesmo movimento. Aparentemente, a imparcialidade está, deste modo, preservada. Essa aparência não resiste a uma análise mais profunda e sistemática. Não é o que pretendo fazer aqui. Quem acompanha os veículos midiáticos tradicionais com algum senso crítico, sabe que eles não passam de portavozes da burguesia, das classes médias e das elites brasileiras (e internacionais). O desprezo em relação à organização, mobilização e ação política de massas, que, pela sua própria natureza, representa e é integrada pelas classes e estratos mais exploradas, oprimidas e marginalizadas da sociedade, ressuda linha após linha do editorial, cuja tom colérico, ofensivo e ultrajante não deve em nada para um sacripanta hipócrita do tipo de um Reinaldo Azevedo.

 

Em primeiro lugar, o editorial aborda o fato, como sempre o faz em casos semelhantes, a partir dos direitos supostamente ofendidos pela irresponsabilidade e pelo sectarismo do movimento social em questão. Sempre quando cobre greves, manifestações e passeatas, os grandes jornais, impressos ou televisionados, o fazem sob o ponto de vista dos “transtornos” que essas ações causam à população “em geral” – os alunos que ficaram sem aula, os cidadãos que não conseguiram chegar em casa etc. Essa abordagem não é, de modo algum, irrefletida, e tampouco visa a garantir voz aos “dois lados” da história (especialmente porque não se trata de um conflito entre os manifestantes e as pessoas que só querem chegar em casa com seus automóveis pagos à prestação, mas antes entre a grande maioria da população, prejudicada por uma política que visa satisfazer os interesses econômicos de uma minoria, e esta minoria).

 

Para além do desprezo que os “de cima” nutrem em relação aos “de baixo”, sobretudo quando estes se organizam para exigir seus direitos contra o monopólio daqueles, essa abordagem jornalística busca construir um discurso que separa e opõe a luta das vanguardas populares às próprias classes que essas vanguardas representam; ou seja, o que esse discurso busca é fazer com que o cidadão “que não tem nada com isso” acredite que, efetivamente, ele não tem nada com isso, e que o movimento passe livre é uma luta “deles” e não “nossa”. E quem são eles? É assim que os empresários da comunicação os definem: um “grupelho sectário”, quase sempre encabeçado por partidos radicais de esquerda, “propensos à violência” e que não respeitam as regras mais elementares de “convivência democrática” (os termos dentro de aspas foram retirados do editorial de hoje da Folha).

 

A finalidade deste discurso, portanto, é precisamente marginalizar uma bandeira política popular, como se se tratasse de uma luta específica de um pequeno setor da população e não da maioria dela como um todo. Com isso, a grande mídia, como formadora da opinião pública, busca, primeiro, deslegitimar o movimento; e, segundo, colocar o restante da população contra ele. O fato de que o ato em São Paulo tenha reunido “apenas” 6 mil pessoas não significa – e basta ter dois tico-e-teco pensantes pra chegar a essa conclusão – que a luta pelo passe livre seja tão-somente do interesse destas 6 mil pessoas.

 

E, então, o que nós todos temos a ver com a luta por um transporte público gratuito, de qualidade e universal? Ora, tudo! À exceção do punhado de empresários, investidores e políticos que ganham com o atual modelo privatista, os 99% da população que não ganham pecuniariamente com ele tem interesse em sua destruição e substituição por outro modelo – e isso vale para você também, cidadão médio, dono de um ou dois automóveis, que desperdiça tempo e dinheiro no trânsito caótico de São Paulo. Hoje, apenas um terço dos paulistanos utiliza o transporte público para se locomover. É de se esperar que se a tarifa fosse reduzida ou eliminada, e se o Estado investisse na melhoria e expansão do serviço, essa porcentagem subiria expressivamente, descongestionando o trânsito da cidade e, em contrapartida, melhorando a qualidade de vida de todos os seus moradores. É claro que os principais e diretamente interessados num transporte público digno do nome são os mais pobres, os trabalhadores, os moradores da periferia. Mas o que eu estou colocando em pauta aqui é: 1) o modo como os monopolizadores dos meios de comunicação determinam e orientam a opinião pública segundo seus próprios e mesquinhos interesses, e 2) o modelo de transporte que queremos, concebido do ponto de vista dos interesses da maioria da população e não de uma minoria que lucra com ele.

 

Nesse sentido, é preciso que entremos em acordo em dois pontos: em primeiro lugar, devemos ter claro que o atual modelo não pode continuar; ele está atingindo perigosamente seus limites, e as consequências disso, que, podemos ter certeza, serão catastróficas, embora não podemos antevê-las completamente, é perfeitamente clara: como diz o MPL, a cidade vai parar. Em segundo lugar, uma solução eficaz ao problema necessariamente passa pela estatização do transporte público. Não adianta a burguesia espernear, os jornais acusarem, os ideólogos do capital bradarem, a classe média arreliar-se: este é o único caminho possível.

 

Esse é, portanto, o quadro da problemática que enfrentamos. O que está em discussão aqui é os limites do atual modelo de transporte público – para não dizer “as perversidades” deste modelo –, a necessidade de superá-lo e, consequentemente, o novo modelo que desejamos colocar em seu lugar. E é possível extrapolar essa discussão dimensionada no campo dos transportes para outros campos maiores: que modelo de urbanização queremos? Qual a função do Estado? Por que romper com a hegemonia neoliberal? Todas essas questões estão pressupostas quando falamos do transporte público. As cidades não são, por exemplo, pensadas para as pessoas, mas para os carros. No setor industrial, o carro-chefe da nossa economia é precisamente a indústria automobilística, que nunca produziu e vendeu tantos automóveis quanto hoje. Portanto, é óbvio que os interesses por trás dessa indústria consubstanciam-se em forças impeditivas e contrárias a um modelo mais humano e democrático.

 

Atualmente, a efetivação do direito de ir e vir mediante políticas públicas adequadas deixou de ser um direito democrático (se é que um dia o foi), para se tornar um nicho de mercado, uma opção de investimento, um instrumento de acumulação do capital. Portanto, a burguesia, enquanto classe, ganha com o atual modelo ao menos de duas maneiras: investindo e lucrando com o transporte público em si, e investindo e lucrando com todo um mercado (carros, gasolina, etanol, etc.) que se cria em decorrência de um transporte público ineficiente. Sob esta lógica, as necessidades humanas estão submetidas ao imperativo do lucro.

 

É simplesmente impossível garantir um direito social quando se concede a sua gestão à iniciativa privada. Já imaginou como seria ir ao SUS, com todo aquele sucateamento e abandono em que ele se encontra, e ainda por cima ser obrigado a pagar uma tarifa para ser atendido? É justamente isso o que se passa com os transportes, um direito tão necessário e indispensável quanto a saúde e a educação, e que, portanto, deveria ser responsabilidade exclusiva ou precípua do Estado. Em suma, ou rompemos com o paradigma neoliberal que defende a privatização de todos os direitos, com base no questionável argumento de que a gestão privada que é eficiente, ou chegaremos inevitavelmente a um beco sem saída criado por uma arapuca urbana, cuja conta quem pagará serão, como sempre, os mais pobres, os trabalhadores.

 

Voltando ao argumento inicial, contra o cidadão comum indignado pelos transtornos gerados pelo MPL eu diria: de te fabula narratur. É sobre você que a fábula fala. Ao invés de se indignar pela violação e restrição ao seu direito de ir e vir, o cidadão comum deve compreender que, ao contrário do que imagina, o seu direito de ir e ver já está sendo violado e restringido, não pelas manifestações na Paulista, mas pelos grupos econômicos e políticos que lucram com o caos urbano em que vivemos atualmente. Se você não tem disponibilidade, disposição ou coragem para somar forçar com os lutadores, a última coisa que você deveria fazer é criticá-los, acusá-los, e o mínimo que você poderia fazer é ajudar e apoiar o movimento como puder. Para isso, é preciso tomar consciência da manipulação midiática da qual se é vítima e esforçar-se para dela se emancipar.

 

Os manifestantes do Passe Livre não são vândalos, e muito menos vagabundos, extremistas, terroristas. Trata-se de um movimento organizado segundo princípios horizontais, autônomos, independentes, apartidários, cujas decisões são tomadas de forma consensual e assembleária (democracia direta). É claro que, nestes moldes, sem uma centralização rígida, não é possível garantir o controle de todos os participantes do movimento. De qualquer modo, o MPL não defende a violência. No entanto, é óbvio que tal violência não parte dos manifestantes, mas é sempre deflagrada pelo Estado, o guarda noturno da burguesia como se expressou Marx, em nome da garantia da ordem. Qual ordem? Ordem para quem? Defender a monopólio da propriedade privada por uma minoria da população é defender a ordem. É essa ordem que queremos? A grande imprensa rapidamente se apressa a condenar toda manifestação, todo protesto, toda ação política coletiva, como vandalismo, e a repressão estatal como “choque de ordem”. O editorial da Folha fez isso de forma exemplar, fazendo um chamado ao som de tambores de guerra – seu título conclamou: retomar a Paulista.

 

Ora, em primeiro lugar, é logicamente plausível ser impossível controlar todo um movimento heterogêneo e aberto como o Passe Livre, em torno do qual vários setores da população se aglutinam para defender uma bandeira legítima. Em segundo lugar, como condenar a indignação, que muitas vezes explode em violência, dos militantes face à truculência com que suas demandas são recebidas pelo poder público? E, por fim, em terceiro lugar, é um truísmo que todo protesto, toda ação coletiva de massas, toda greve, causam transtornos. Ora, trata-se de instrumentos de luta que visam, por óbvio, a causar transtornos, mas não contra a população como um todo, evidentemente, e sim contra aqueles que lucram com a situação em que a população se encontra e que é a motivação da luta. A maioria dessa população, prejudicada como está, vive numa situação tão brutal de alienação que não se dá conta disso, ou seja, de que transtorno maior é simplesmente deixar as coisas como estão. Como disse Malcolm X, a mídia faz com que amemos os opressores, e odiemos os oprimidos. Organizar-se, mobilizar-se, manifestar-se, em suma, lutar, não é crime, é um direito.

 

Por fim, contra a campanha de desinformação midiática, é preciso acreditar que um outro modelo de transporte público e de mobilidade urbana é não só possível como absolutamente necessário. Dinheiro para tanto existe. Não é nada utópico propor a estatização do serviço. Se assim fosse, muitos países europeus viveriam uma utopia há décadas. Uma proposta possível seria custear parte do sistema com encargos trabalhistas pagos pelos empregadores por cada trabalhador empregado (sem, contudo, dividir a conta com este). O restante seria pago pelo Estado, para garantir que os desempregados e estudantes tenham acesso ao serviço. Tal política de financiamento deve, sem dúvida, vir acompanhada de uma reformulação geral do papel do Estado e de seu foco de atuação: um Estado que concentre seus esforços na garantia dos direitos básicos, e não no pagamento de juros ao capital financeiro. O ponto é que é possível, sim, um transporte público de qualidade, gratuito e universal. Basta nos unirmos em torno deste ideal.

 

João Gabriel Vieira Bordin é cientista social.

Blog: Laboratório Dialético.

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