Correio da Cidadania

O Brasil passa por reprimarização

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Da ala dos heterodoxos, Reinaldo Gonçalves lança em duas semanas "A Economia Política do Governo Lula", livro em parceria com o também economista Luiz Filgueiras. Professor do Instituto de Economia da UFRJ, Gonçalves diz que o trabalho visa a esclarecer a esquerda "perplexa" e todos interessados em entender para onde vai o Brasil.

Para ele, a vulnerabilidade externa do Brasil não diminuiu: a redução que se aponta decorre do contexto internacional , que, caso mude, fará o Brasil piorar mais do que a média dos demais países. O Risco Brasil permanece entre os cinco mais altos do mundo e , com a turbulência de agosto, saiu de 143 pontos para 213 pontos. O Brasil passa por "reprimarização" da pauta de exportações e caminha para uma especialização retrógrada. "O País só tem competitividade em produtos agrícolas e minerais. Há uma desindustrialização relativa ao resto do mundo."

 

Veja entrevista exclusiva concedida ao Jornal do Commercio.

Jornal do Commercio: O livro "A Economia Política do Governo Lula" não poupa críticas à política macroeconômica e social do PT. É possível resumir seus principais pontos de discordância em relação à administração do governo Lula?

Reinaldo Gonçalves: A primeira coisa é que o desempenho macroeconômico é medíocre, não só comparando com outros países, mas com a história do Brasil. Analisamos as principais variáveis macroeconômicas: variação da renda, hiato de crescimento (diferencial entre a variação da renda no Brasil e no mundo), investimento, vulnerabilidade externa, inflação e dívida pública. Comparando o Brasil do governo Lula com o mundo e com os governos republicanos no Brasil (1890-2006), não só ano a ano como os 30 mandatos, o atual governo é medíocre e desfavorável nas quatro primeiras variáveis.

Um ponto agravante é que isso acontece em um contexto internacional extraordinário. Estamos perdendo uma oportunidade histórica ímpar. Pelas escolhas de Lula estamos perdendo um ciclo extraordinário, aproveitado por países como Argentina e Venezuela. A avaliação geral do Governo Lula no livro é feita pelo Índice de Desempenho Presidencial (IDP - criado por Gonçalves e Filgueiras). O IDP médio do presidente Lula (medido de 0 a 100) é de 43,8, abaixo da média do conjunto dos presidentes brasileiros (57,5). No que se refere ao desempenho da economia Lula é o 4º pior presidente da história da República, atrás apenas dos governos Sarney, FHC (segundo mandato) e Collor. Mostramos também que há um desequilíbrio das finanças públicas, com a dívida interna subindo, o que tem a ver com a construção da política monetária, e vamos contra a corrente, dizendo que a vulnerabilidade externa no Brasil não diminuiu.

JC: Então o senhor não reconhece méritos na política de ajuste externo do Governo?

RG: A vulnerabilidade é a probabilidade de um país resistir ou não a choques externos. Nos últimos quatro anos e meio a conjuntura internacional melhorou para o Brasil e o mundo todo, portanto é óbvio que os indicadores conjunturais de dependência externa melhoraram. Criamos, porém, um indicador de vulnerabilidade comparada e de vulnerabilidade de longo prazo, estrutural. Ela leva em conta o que está sendo feito para reduzir sustentavelmente a vulnerabilidade. Na vulnerabilidade comparada, comparamos o Brasil com o resto do mundo. Isso mostra que a melhora dos indicadores de vulnerabilidade externa da economia brasileira, a partir de 2003, decorre do contexto internacional favorável. Todo mundo melhorou, então na verdade o Brasil não melhorou. O Risco Brasil de 2003 a 2007 continua entre os cinco maiores do mundo. Se ele continua entre os cinco maiores, não se pode dizer que melhorou de fato. Se muda esse contexto mundial, ele vai piorar mais que a média. Em agosto, com a crise dos créditos subprime, o risco foi de 143 pontos para 213 pontos. Isso mostra que o País está frágil.

JC: O senhor afirma que o governo optou pela "inserção passiva do país no sistema econômico internacional". O que isso significa exatamente?

RG: Quando se estuda onde um país se insere no mundo, levam-se em conta as esferas comercial, monetário-financeira, produtiva real e tecnológica. Do ponto de vista comercial, o foco da política de exportação, do investimento em infra-estrutura e das negociações comerciais do Governo Lula hoje são as commodities. O que aprendemos desde sempre é que é preciso fazer um upgrade do comércio e sair de commodities para entrar em bens e serviços, de maior valor agregado. O que está sendo feito hoje é uma volta ao passado, ao açúcar, à borracha. Qual a maior aposta do governo? O etanol, além do minério de ferro, soja, ou seja, está havendo uma "reprimarização" da pauta de exportação. No dia em que esses preços se reverterem, vamos ter um problema sério. Estamos perdendo competitividade em manufaturados, produtos de alta tecnologia. O avanço é baseado em commodities por causa da conjuntura internacional. Estrategicamente é uma política equivocada, tanto do Itamaraty quanto de comércio exterior. A Rodada de Doha só não sai porque os europeus e americanos não estão dispostos a fazer uma abertura maior para os produtos agrícolas. Ela significaria uma abertura ainda maior do País para os produtos industrializados, significaria o Brasil reduzir ainda mais a proporção de seu mercado interno, o setor de serviços e a sua frágil indústria em nome do avanço do agronegócio.

JC: O Brasil caminha então para se especializar na produção de commodities?

RG: Sim. O Brasil caminha para o que chamamos de especialização retrógrada, que envolve a fragilização do aparelho produtivo brasileiro. O País só tem competitividade em produtos agrícolas e minerais, com o esvaziamento da indústria brasileira. Há uma desindustrialização face ao resto do mundo, com a fatia brasileira no conjunto da produção mundial caindo. Além disso, não tem avançado na área de serviços. Isso tem a ver com a expansão do agronegócio, que se alega ser intensivo em tecnologia, o que é bobagem. Esse avanço tecnológico existe, mas se reflete no aumento de produtividade que vaza para o exterior via remessa de lucro das multinacionais e redução de preços.

JC: E a política industrial do Governo Lula?

RG: Ela só existe no papel. O problema na economia é demanda e a política é um estímulo à oferta. Se eu não tenho demanda, para que investir? A política econômica do governo restringe a demanda, tornando a política tecnológica e industrial inócua.

JC: O senhor vê alguma mudança de rumo entre o primeiro e o segundo mandato do governo PT?

RG: A essência da estratégia continua. Nesse último ano e meio tivemos basicamente uma política assentada na expansão do crédito e no assistencialismo, e uma redução de juros mais de quantidade que de qualidade da política monetária. Os pilares da política macroeconômica se mantêm: foco da política monetária no combate à inflação; política de megasuperávit; câmbio flutuante; liberalização cambial. Não mudou nada, só o grau da taxa de juro real e do superávit. Isso é secundário. A questão fundamental é que, ou a gente muda e constrói a política econômica em cima de quatro novos pilares ou mantém o que está aí. Lula levou um susto no ano passado e por isso veio com o Programa de Aceleração do Crescimento (PAC), que na verdade não muda em nada a natureza da política econômica desse governo, que é um modelo liberal periférico.

JC: No livro, o senhor diz que o governo consolidou esse modelo liberal periférico seguido por Fernando Henrique Cardoso, legitimando a política econômica herdada dele com a ajuda do bom momento da política internacional. Não houve nenhuma evolução?


RG: Muito pelo contrário. Lula aprofundou esse modelo que está fragilizando o Brasil, gerando um esgarçamento do tecido social, degradação das instituições e da consciência política. Está havendo a "africanização" do Brasil, que está cada vez mais parecido com um país da África subsariana. É um país em que a cada semana se tem notícia de uma barbárie, uma matança. Hoje 40 dirigentes políticos de peso são acusados de formar uma quadrilha…

JC: O senhor aponta que, ao contrário do governo FHC, em que as direções sindicais e partidárias eram fortes opositoras, o Governo Lula cooptou boa parte desses antigos atores sociais, hoje ocupando cargos no Estado. Qual a conseqüência disso para a sociedade brasileira?

RG: Uma herança que será pior que a de Fernando Henrique é a fragmentação que esse governo provocou no movimento social. A CUT (Central Única dos Trabalhadores) hoje não existe, deveria ser fechada. Lula provocou a fragmentação do Movimento dos Sem Terra (MST), considerado o movimento social mais robusto do País. As Organizações Não Governamentais (ONGs) se dividiram entre as que aderiram e as que ficaram perplexas. O que provoca é uma degradação muito grande das instituições, passando pelo próprio PT. Há uma sociedade cada vez mais inerte e bárbara, com o processo civilizatório regredindo.

JC: E como fica a política social, que tem como carro-chefe o programa Bolsa Família?

RG: Não passa de assistencialismo populista. Não nego que tenha efeitos sobre a distribuição de renda, mas cria condições para a manutenção desse modelo liberal periférico que exclui. A política do Bolsa Família é um instrumento perverso, que combina a flexibilização e precarização do trabalho com as políticas focalizadas e flexíveis de combate à pobreza. No último capítulo do livro fazemos uma análise da distribuição de riqueza e vamos contra a corrente. Existe distribuição de renda, mas ela é intrasalarial. A riqueza está se concentrando, ou seja, os ricos estão mais ricos. A melhora na distribuição pessoal da renda (que exclui juros e lucros) vem acompanhada da piora da distribuição funcional, que coloca de um lado os salários e, de outro, juros e lucros. Tem havido melhora de distribuição de renda desde 1998, com Bolsa Família, benefícios da previdência e aumento do salário mínimo. No dia em que isso acabar aumenta a concentração de riqueza. Uma coisa é a distribuição de renda entre trabalhadores, outra entre eles e os capitalistas. Se o Brasil estivesse melhorando, o Bolsa Família estaria diminuindo, porque as pessoas sairiam à medida em que tivessem trabalho e renda própria.

JC: O senhor ainda se considera de esquerda?

RG:
Sim. O grande diferencial desse livro é ter um olhar para a política social e econômica pela esquerda.

A seu ver, quais seriam as alternativas de governo para uma administração de esquerda no Brasil?

RG: O fundamental seria fazer uma revisão dos quatro pilares atuais. O Brasil é um quadrúpede macroeconômico e é preciso cortar suas quatro patas. A primeira coisa que tem de ser feita é reverter a liberalização cambial, financeira e comercial. O Brasil não agüenta essa liberalização toda. Em segundo lugar, o câmbio tem de ser administrado com uma taxa associada a um nível de reservas muito elevado, que reduza a vulnerabilidade externa e mantenha esse preço regulado em um nível realista. Se tivéssemos um dólar a R$ 3, deveríamos ter reservas de US$ 300 bilhões. De onde viria o dinheiro para compor essas reservas? Taxando a exportação de commodities, como na Argentina. Finalmente, a política monetária não pode só ser instrumento de combate à inflação. Pode-se usá-la para combater a inflação, mas não necessariamente a taxa de juros. O ideal é focá-la para o ajuste das finanças públicas e geração de emprego, com um juro real baixo (2%). Posso reduzir demanda e consumo, se aumentar o compulsório e reduzir os prazos de pagamento. Eu combato a inflação, mas descolo essa política da taxa de juros.

 

 

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