Correio da Cidadania

‘PUC-SP reforça lógica de judicialização de conflitos políticos e sociais’

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Primeira universidade do país a realizar eleições diretas para o cargo de reitor, a Pontifícia Universidade Católica de São Paulo quebrou sua tradição de 36 anos e no pleito de dezembro passado o grão-chanceler da instituição, dom Odilo Scherer, escolheu a professora de letras Anna Cintra, última colocada da lista tríplice, para o cargo. Imediatamente, alunos, professores e funcionários entraram em greve, se apoiando no compromisso da própria Anna Cintra de não aceitar o cargo sem a obtenção do maior número de votos.

 

Em meio aos protestos, a nova reitora abriu processo interno contra a professora de Serviço Social e também militante feminista histórica, Beatriz Abramides, acusada de ser uma das grandes agitadoras da ‘desordem’. “Penso que esta medida tomada está na lógica atual do neoliberalismo, que se utiliza de instrumentos administrativos para judicializar os movimentos sociais. Neste caso, trata-se de amedrontar estudantes, professores e funcionários, a partir da instauração de um processo”, disse Bia, em entrevista ao Correio da Cidadania.

 

Para ela, também vice-presidente da Associação dos Professores da PUC (APROPUC), “a PUC vive uma crise de legitimidade acrescida de uma crise de legalidade, posto que seu órgão máximo de deliberação, o Conselho Universitário, foi desconsiderado”, diz, lembrando ainda que a decisão do cardeal Scherer pode ser revertida em processo que corre na justiça, além de representar crise iniciada já em 2006, pela reitoria de Maura Veras e seus cortes de 1000 funcionários e professores.

 

No entanto, ao levar o debate para o campo mais reflexivo, relacionando-o ao atual momento político do país, pode-se concluir que o quadro de uma das universidades que melhor representaram o “livre pensar acadêmico” reflete a persistência de um projeto de sociedade, nas palavras de Bia Abramides “a chamada investida da ‘pós-modernidade’, ou seja: a propagação do ‘fim da história’ para a manutenção do capitalismo, a negação das teorias estruturantes, o efêmero, o fugaz, o produtivismo, o ensino aligeirado, à distância, tal qual estabelece o receituário do Banco Mundial”, conclui, apontando o que realmente se colocaria em jogo com a forçada nomeação de Anna Cintra e a quebra de uma longa tradição interna.

 

A entrevista completa com a professora Beatriz Abramides pode ser conferida a seguir.

 

 

Correio da Cidadania: Como você vê a nomeação da professora de letras Anna Cintra, última colocada na votação feita por alunos, professores e funcionários, para a reitoria da PUC-SP? Acredita em algum tipo de viés ideológico por parte do responsável pela decisão, o grão-chanceler Odilo Scherer, no sentido de obedecer a diretrizes do próprio Vaticano?


Beatriz Abramides: A PUC-SP foi a primeira universidade do país a conquistar eleições diretas para o cargo de reitor. Historicamente, os cardeais sempre nomearam o(a) reitor(a) soberanamente eleito(a) pela comunidade acadêmica, composta de professores, estudantes e funcionários, garantindo o resultado das urnas e a legitimidade do pleito, embora estatutariamente esteja prevista a lista tríplice. De outro lado, a Anna Cintra, assim como os dois outros candidatos, assinou um documento em um debate aberto no Tucarena (o auditório da PUC) com os reitoráveis, promovido pelos estudantes, no qual afirmava que não assumiria o cargo de reitora caso não fosse eleita. Passou por cima de sua palavra e assumiu, depois de ter sido a terceira e última colocada na votação.

 

O quadro atual deve ser analisado a partir de 2006, quando a crise da PUC se aprofundou e a reitora Maura Veras decidiu, juntamente com a FUNDASP (Fundação São Paulo, mantenedora da PUC-SP), demitir por volta de 1000 trabalhadores, entre funcionários e professores, para sanear a dívida existente. Os professores, por meio de nossa associação, a APROPUC, foram contra a via das demissões. Chegamos a propor escalonamento na reposição salarial, que nos era devida, para manter os professores necessários ao trabalho acadêmico.

 

Nesse momento iniciou-se a intervenção da Igreja na PUC-SP, através da FUNDASP. As medidas que passaram a ser tomadas a partir daí foram: maximização do trabalho de professores, ausência de definição da carreira dos funcionários, redesenho institucional instrumental, três tabelas diferenciadas de remuneração de professores (trabalho igual para salário desigual); intervenção policial mediante a ocupação da reitoria pelos estudantes, que se manifestavam contrários a esses ataques, e processo sindicante contra os mesmos.

 

Neste momento, a nomeação de Anna Cintra significa a representação da Igreja na reitoria, não somente na FUNDASP, e a concretização de um modelo de universidade. A situação desde então na PUC-SP é a de quebra da autonomia e da democracia universitária, algo iniciado em 2006 e agora se consolidando com a indicação da nomeada.

 

Correio da Cidadania: Qual tem sido o clima na Universidade após a nomeação da nova reitora, sem a maioria dos votos e, consequentemente, a aceitação da comunidade universitária?

 

Beatriz Abramides: Podemos distinguir momentos neste processo. Um primeiro momento foi marcado por um forte movimento grevista, que se configurou no “Fora Anna Cintra”, iniciado pelos estudantes, tão logo noticiados da indicação pelo cardeal da terceira e última colocada no pleito, em 13/12/2012, seguido pelos professores. O movimento grevista durou um mês, na direção de se fazer valer a soberania das urnas, para que assumisse o candidato mais votado, portanto, eleito pela comunidade.

 

Paralelamente a isto, no plano institucional, o CONSUN (Conselho Universitário) deliberou, em 12/12/2012, desfazer a lista tríplice pelo fato de a reitora indicada não ter cumprido com sua palavra, ao assinar o compromisso de que não assumiria sem ser a mais votada. De outro lado, os Centros Acadêmicos de Direito e de Relações Internacionais, juntamente com a Associação dos Funcionários (AFAPUC), entraram com um instrumento jurídico de destituição da lista tríplice, o que levou a Justiça a decretar que a reitora se afastasse e que a cada Ato decretado recebesse uma multa equivalente a 10.000 reais.

 

O CONSUN indicou um reitor pro tempore até novas eleições. O cardeal não aceitou a deliberação do CONSUN. A FUNDASP entrou com recurso junto à Justiça, que no plantão forense em 23 de dezembro passado reconduziu a reitora nomeada, até um novo julgamento.

 

Correio da Cidadania: Em que condições se encontram os movimentos de protesto à nomeação de Anna Cintra no atual momento? Ainda é possível reverter essa polêmica decisão?

 

Beatriz Abramides: Há uma insatisfação muito grande por parte da comunidade mediante a quebra de autonomia. A Faculdade de Ciências Sociais, por meio de seu conselho, se posicionou pela abertura de um novo processo eleitoral, uma vez que a lista tríplice foi desautorizada pelo CONSUN; o programa de pós-graduação em Psicologia Social se colocou na mesma direção. A APROPUC, por meio de deliberação da assembleia dos professores desde dezembro, havia se manifestado pela abertura de um novo processo eleitoral.

 

Neste semestre, os estudantes levaram ao CONSUN sua posição de que se fizesse valer a deliberação de 12 de dezembro, o que abre a via para um novo processo eleitoral. A PUC vive uma crise de legitimidade acrescida de uma crise de legalidade, posto que seu órgão máximo de deliberação, o CONSUN, foi desconsiderado pelo cardeal. Do ponto de vista jurídico, ainda há uma pendência em relação à questão, posto que foi revertida no plantão forense. Porém, os proponentes Centro Acadêmico de Direito, Centro Acadêmico de Relações Internacionais e AFAPUC entraram com recurso e aguardam nova decisão.

 

Diria que a reitora indicada está em exercício, mas pode haver uma reversão jurídica. Do ponto de vista da reversão pela comunidade, somente haveria possibilidade se um forte movimento prevalecesse, porém, os professores encontram-se recuados, as medidas que estão sendo tomadas têm colocado medo em uma parcela significativa da comunidade. Os estudantes leram uma carta no último CONSUN, de 24 de abril, reafirmando o não reconhecimento de Anna Cintra e reivindicando a abertura do novo processo eleitoral.

 

Correio da Cidadania: Como você enxerga e avalia a abertura do processo administrativo contra você, acusada de incitar os protestos? A iniciativa da nova reitora configura uma retaliação pessoal ou uma projeção dos novos tempos, de forma mais geral?

 

Beatriz Abramides: O processo administrativo, na realidade, é um processo político que faz acusações pautadas em instrumentos da CLT, os mais retrógados, advindos da era da ditadura Vargas, além de cláusulas genéricas contidas no regimento da universidade. As acusações, porém, são todas infundadas e não representam os fatos, já que desconsideram: a) a autonomia dos estudantes que deliberaram soberanamente em suas duas assembléias, realizadas no dia 26 de fevereiro (manhã e noite), decidindo que iriam ao CONSUN de 27 de fevereiro; b) que os professores, em assembleia da APROPUC realizada em 26 de fevereiro, deliberaram por acompanhar os estudantes e comparecer ao CONSUN se estivessem no campus da Rua Monte Alegre.

 

Penso que esta medida tomada está na lógica atual do neoliberalismo, que se utiliza de instrumentos administrativos para judicializar os movimentos sociais. Neste caso, trata-se de amedrontar estudantes, professores e funcionários, a partir da instauração de um processo contra uma dirigente, vice-presidente da APROPUC, professora da PUC-SP.

 

Correio da Cidadania: Transcorridos alguns meses do novo período, sob Ana Cintra, é possível tecer comparações com o anterior, de Dirceu Mello, sob forte influência da Escola de Direito? A despeito de todas as polêmicas e contestações, o grupo atual não poderia representar uma evolução acadêmica sobre o anterior, para muitos marcado por um enfoque basicamente administrativo-empresarial?

 

Beatriz Abramides: Aqui não se trata de comparar gestões. Trata-se de recuperar o princípio democrático que historicamente conquistamos na PUC-SP. No período da ditadura militar a PUC-SP, por intermédio da primeira reitora eleita no país, Nadir Gouveia Kfouri, foi referência no país na luta pela democracia. Naquele momento professores exilados, de referência intelectual como Florestan Fernandes, Paulo Freire, Maurício Tragtemberg, Octávio Ianni, vieram dar aula na PUC-SP.

 

A Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC) e os estudantes que eram perseguidos em sua organização realizaram seus congressos na PUC-SP. D. Nadir enfrentou em 1977 a invasão da polícia comandada pelo coronel Erasmo Dias, que com as bombas de efeito moral e lacrimogêneo feriram estudantes com fortes queimaduras. A PUC-SP tem um legado democrático na área da produção do saber e do conhecimento, no ensino, na pesquisa e na extensão, que foi construído por professores, estudantes e funcionários. Este legado é o que referencia a PUC-SP, no âmbito nacional e latino-americano. A pluralidade de ideias, o debate intelectual e acadêmico, a livre expressão e manifestação é que tornam uma universidade viva, atuante, referenciada socialmente.

 

E neste debate há instâncias acadêmicas de deliberações para gerir uma universidade. Sem dúvida, precisamos avançar estatutariamente, acabar com listas tríplices, retomar a representação de fato democrática e paritária nos órgãos colegiados, ou seja, reelaborar uma estatuinte.

 

Correio da Cidadania: Extrapolando os embates entre o corpo universitário e as autoridades, existem críticas acerca da atual representatividade da Apropuc (Associação dos Professores da PUC), que não representaria todo o corpo docente atual. O que você teria a dizer sobre isso, e também a respeito das críticas sobre as próprias assembleias na época dos protestos mais fortes contra a nova reitoria, presididas sempre pela Associação, algo que foi contestado por outros participantes das mesas?


Beatriz Abramides: A APROPUC é uma entidade que foi construída pelos professores há 37 anos. Tem sua direção eleita pelos professores associados. Suas diretorias se pautam pela mais ampla autonomia e democracia. A carta-programa da entidade é a que define nossas ações e a soberania das assembleias norteia nossas decisões. As assembleias são abertas a todos os professores, associados ou não associados, que debatem, se posicionam e votam. Os que discordam da direção da entidade ou dos encaminhamentos deliberados em assembleia podem participar, divergir, propor, e os que se filiarem podem concorrer às eleições se tiverem outra proposta para a entidade. Assim, os professores que comparecem são os que deliberam, e atuamos com as decisões coletivas. Quando em uma assembleia um professor contestou que somente os diretores dirigiam a assembleia, rapidamente a diretoria incorporou a proposta e a composição da mesa ficou aberta para um dirigente e um representante dos professores.

Correio da Cidadania: Quais os principais problemas percebidos pela comunidade universitária e que, a seu ver, deveriam ser mais enfrentados dentro da PUC?

 

Beatriz Abramides: As principais ações a serem desenvolvidas para enfrentar os problemas da PUC-SP se dirigem à: abertura imediata de um novo processo eleitoral para a reitoria, juntamente com os outros cargos que estão em processo; fim da lista tríplice; fim da intervenção da Igreja e garantia da democracia e autonomia universitárias; elaboração de uma nova estatuinte; o fim da maximização do trabalho dos professores, com pagamento dos 7,66% devidos a eles; plano de carreira para os funcionários; ampliação de bolsas de estudos; participação dos três setores (estudantes, professores e funcionários) em todas as instâncias e no processo eleitoral, que por sua vez garantisse a real democracia dos setores na representação e na paridade; e luta contra a mercantilização e privatização do ensino, na retomada da luta pela estatização da PUC-SP, por um ensino público, laico, de qualidade, presencial e estatal.

 

Correio da Cidadania: É possível comparar o atual momento da PUC com fatos recém-ocorridos na USP, que sofre uma escalada do conservadorismo, simbolizada pela gestão de João Grandino Rodas?

 

Beatriz Abramides: É possível, pois na gestão Rodas já houve invasão da polícia, assim como na PUC, também sob a anuência de ambas as reitorias (Rodas e Maura Veras, com concordância da Igreja). Na USP, foram 72 sindicados, entre funcionários e estudantes, com medidas punitivas. Na PUC-SP, há o processo administrativo de cunho político lançado sobre mim e outros processos administrativos que já incidem sobre estudantes. Na PUC-SP, no início desta gestão, houve o Ato 13, que proibia manifestação sem autorização da reitoria, e que sob pressão foi retirado, além da revista em mochilas de estudantes, concertinas na frente da PUC-SP e no pátio interno, entre outras medidas cerceadoras que passaram a ser identificadas como “AI Cintra”.

 

Correio da Cidadania: Que paralelo você faria, finalmente, desse momento que vive a universidade com a atual orientação política do país?

 

Beatriz Abramides: Vive-se um processo de regressão histórica no plano internacional, que atinge o conjunto do planeta e traz suas determinações para a América Latina, aí situado o Brasil. Constitui-se de uma nova ofensiva do capital a partir de sua crise estrutural desde meados dos anos 70, que para recuperar suas taxas de lucro estabelece novos ataques aos trabalhadores.

 

Na esfera do mundo do trabalho, avança com o desemprego estrutural, a redução de postos de trabalho, a precarização das relações de trabalho, o trabalho terceirizado, precarizado, polivalente. Sem carteira assinada, com ampliação do trabalho informal. Na esfera do Estado, ocorre a implantação e consolidação do neoliberalismo; “Estado máximo” para o capital e “mínimo” para os trabalhadores.

 

Há contrarreformas do Estado nas áreas educacional, previdenciária, trabalhista, sindical, com redução de direitos sociais e trabalhistas. Há ainda a redução de políticas sociais e universais e implantação de programas compensatórios, focalistas, meritocráticos. Temos privatização das estatais rentáveis e das políticas sociais (saúde e educação) e na esfera da cultura, onde se insere a universidade, a chamada investida da “pós-modernidade”, ou seja: a propagação do “fim da história” para a manutenção do capitalismo, a negação das teorias estruturantes, o efêmero, o fugaz, o produtivismo, o ensino aligeirado, à distância, tal qual estabelece o receituário do Banco Mundial.

 

Podemos dizer que a ideologia neoconservadora satura todos os poros da vida social e busca mecanismos de coerção, intimidação, punição para fazer recuar qualquer tentativa de contestação à ordem vigente, na direção do pensamento único. Assim, temos muito por lutar na defesa dos interesses imediatos e históricos da classe trabalhadora, explorada e oprimida socialmente em sua condição de classe, gênero, raça, etnia e orientação sexual. Uma universidade que faça valer sua função social deve estar colada às necessidades de seu tempo, contra a exploração e a opressão, na defesa intransigente da igualdade e da liberdade na perspectiva do projeto de emancipação humana.

 

Gabriel Brito é jornalista do Correio da Cidadania.

Comentários   

0 #1 RE: ‘PUC-SP reforça lógica de judicialização de conflitos políticos e sociais’Candido Volmar 09-05-2013 18:21
A professora Abramides serve de exemplo de consciência política para a USP, em franca decadência. Insto a todos os leitores do Correio da Cidadania a oferecerem todo o apoio à professora, para que sua voz não seja calada pela ditadura encarnada pelo Poder Judiciário.
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