Correio da Cidadania

Interesses sociais em disputa

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O quadro político parece cada vez mais embaralhado. Por um lado, persiste a impressão de que o Brasil muda para melhor. O padrão de vida de parcelas significativas da população, antes excluídas do mercado, melhorou com a elevação do salário mínimo e com as políticas de transferência de renda. A tal ponto que alguns apressados, como os perdidos no deserto que começam a enxergar miragens de oásis, passaram a ver uma classe média com renda de dois salários mínimos.

 

Apesar dos distúrbios da prolongada crise internacional, que afetam principalmente os países capitalistas desenvolvidos, e também da burguesia nativa, que resiste em investir na instalação de novas plantas industriais, preferindo especular no mercado financeiro, o Brasil ainda apresenta um crescimento positivo. A inflação não desandou, como apostavam e gostariam os rentistas de todos os calibres. E a popularidade da presidenta continua alta, enquanto o PT, apesar de sua mudez, continua sendo o partido preferido nas mais diversas pesquisas a respeito.

 

Vistos apenas na superfície, esses indicadores parecem apontar para uma verdadeira ofensiva democrática e para a inabalável reeleição de Dilma, em 2014, dando continuidade à virada iniciada em 2002. Por outro lado, nessa mesma superfície multiplicam-se movimentos estranhos.

 

Parece aumentar a dispersão da coalizão governista. O governo e o PT têm sido derrotados pelos próprios aliados no Congresso, tanto em pequenas quanto em grandes causas. Forças reacionárias e conservadores, no parlamento, no judiciário, nos partidos e na sociedade civil, emergiram das sombras e atuam sem qualquer vergonha de suas concepções retrógradas.

 

Novos partidos, de aluguel ou não, de alta ambiguidade ideológica e política, são organizados e reorganizados. E o partido da mídia colocou em execução um programa articulado de elevação do tom oposicionista e de denuncismo de atos reais ou fictícios de corrupção e má administração, desde que atinjam, mesmo de raspão, o PT no governo.

 

O problema de qualquer análise política é que ela não pode se prender apenas aos movimentos e aspectos positivos e negativos superficiais. Tais movimentos têm por base, invariavelmente, interesses sociais mais profundos, que conformam as contradições de classe. Portanto, para não cometer avaliações políticas descoladas da realidade, talvez o mais indicado seja examinar as mudanças que vêm ocorrendo nas classes sociais, nos últimos 10 anos, em articulação com as políticas e ações governamentais.

 

A ausência de uma ruptura brusca com a política macroeconômica neoliberal e de uma auditoria que tornasse pública a destruição de parte importante do parque industrial brasileiro serviu como tranquilizante para as frações financeiras e monopolistas da burguesia. Paralelamente a isso, o crescimento econômico e a redução do desemprego, proporcionados pela elevação do consumo dos trabalhadores e das camadas mais pobres, atendeu aos interesses reprimidos dos setores médios da burguesia, de grande parte da classe trabalhadora e, também, da pequena burguesia.

 

Em certo sentido, o governo obteve uma certa trégua na luta de classes, enquanto reconstruía a capacidade de planejamento do Estado e se preparava para incidir mais fortemente sobre o desenvolvimento econômico e social. O lançamento de um programa de grandes obras para a reconstrução da infraestrutura logística do país passou a beneficiar não apenas a novos setores desempregados do exército industrial de trabalho, mas também e, principalmente, as grandes corporações nacionais.

 

Estas, além disso, também foram beneficiadas pelo programa de apoio à internacionalização de empresas nacionais e pela elevação da demanda internacional de commodities minerais e agrícolas, que proporcionou um salto no superávit do comércio internacional do Brasil.

 

A elevação do poder de compra dos trabalhadores e da pequena burguesia proporcionou, ainda, um mercado em expansão para as grandes corporações estrangeiras que dominam a produção de bens de consumo durável. Porém, à quebradeira e à defasagem tecnológica em que se encontravam a indústria fabricante de bens de consumo corrente e a agricultura de alimentos para o mercado doméstico, não foram dadas uma atenção ao nível de suas necessidades, nem no mesmo patamar dedicado às grandes corporações.

 

Em tais condições, esses setores industriais não conseguiram competir com os produtos importados, sofrendo perdas consideráveis, enquanto a agricultura de alimentos se tornou a vilã dos surtos inflacionários sazonais. Embora tenha sido mais fácil culpar os chineses e asiáticos por esses problemas, tornou-se evidente que havia brechas na política governamental, que pareciam apenas apoiar os dois extremos sociais: as grandes corporações e os trabalhadores e pobres.

 

O fortalecimento dos setores burgueses hegemônicos, em contraste com a pouca atenção dada aos setores médios e pequenos da burguesia industrial e agrícola, começou a criar embaraços aparentemente inexplicáveis nos setores burgueses que apoiavam o governo. Essa situação se tornou ainda mais complexa conforme o governo se empenhou na implantação de medidas contraditórias, como a redução dos juros, a desoneração de impostos de setores que praticam preços de monopólio e a redução dos custos das obras de infraestrutura.

 

A resposta da burguesia com capital acumulado tem sido exigir maiores taxas de rentabilidade e realizar o congelamento dos investimentos, em especial dos investimentos em plantas produtivas. A fração financeira voltou a exigir descaradamente a elevação dos juros, a redução do crescimento e o aumento do desemprego.

 

Na ponta oposta do espectro social beneficiado pelo aumento do emprego, do salário mínimo e das transferências de renda, embora tenham ocorrido saudáveis mobilizações e lutas, em especial no setor de construção civil, a desmobilização continua sendo sua característica principal, apesar de continuarem com problemas profundos a serem resolvidos, muitos dos quais agravados por calamidades naturais.

 

Essas mudanças na situação dos interesses de classe têm promovido alterações no ambiente político, embora nem clarificadas em suas relações. Mas é muito provável que o esgarçamento das relações políticas na coalizão de governo esteja relacionado, em grande medida, com os descontentamentos dos setores médios da burguesia e de setores da pequena-burguesia diante dos benefícios e das concessões, por um lado, às grandes corporações empresariais e, por outro, às camadas trabalhadoras, pobres e miseráveis da população.

 

Na verdade, a palavra de ordem genérica de fazer muito mais e melhor pode ser apenas o véu que encobre as motivações de interesses não atendidos. E, também, as mágoas por verificar que um dos polos mais beneficiados pelas políticas do governo é justamente aquele que o coloca contra a parede e obtém concessões toda vez que seus lucros máximos são ameaçados por medidas que beneficiam os demais setores sociais. Talvez seja o momento de analisar com mais atenção esses interesses econômicos e sociais em disputa, para dar uma resposta mais consistente aos problemas políticos.

 

Wladimir Pomar é analista político e escritor.

Comentários   

0 #1 RE: Interesses sociais em disputa Arline 26-06-2013 12:31
este artigo escrito em abril tem um incrível teor premonitório, em minha opinião, sobre o atual momento de manifestações de rua
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