Correio da Cidadania

A “questão Feliciano” e as manifestações nas ruas

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Recentemente, vem sendo destaque na mídia, e motivo de diversas manifestações nas ruas e nas redes sociais, a escolha e a presença do deputado federal Pastor Marco Feliciano, do Partido Social Cristão (PSC)-SP, para a presidência da Comissão de Direitos Humanos e Minorias (CDHM) da Câmara dos Deputados. A CDHM é uma das 21 comissões permanentes da Câmara dos Deputados e é um órgão técnico constituído por 18 deputados membros, com igual número de suplentes.

 

As atribuições constitucionais e regimentais da Comissão são receber, avaliar e investigar denúncias de violações de direitos humanos; discutir e votar propostas legislativas relativas à sua área temática; fiscalizar e acompanhar a execução de programas governamentais do setor; colaborar com entidades não-governamentais; além de cuidar dos assuntos referentes à diversidade dos grupos étnicos e sociais, especialmente os índios e às comunidades indígenas, da preservação e proteção das culturas populares e étnicas do país.

 

A atual e polêmica escolha do comando da CDHM por parte do PSC começou desde o final do mês de fevereiro, quando os partidos receberam a informação de que seriam criadas apenas mais uma comissão, não mais duas, para abrigar as bancadas dos partidos, após a criação do PSD.

 

Os partidos tiveram que rediscutir suas escolhas e prioridades em relação às Comissões e evidenciou-se nos corredores da Câmara, dentre comentários de assessores e deputados, bem como nos meios que acompanham a rotina do legislativo, que a CDHM não estava entre as prioridades, inclusive do PT, PMDB e demais partidos que poderiam ter optado pela Comissão, como o PC do B.

 

Demonstração disso foi que, em reunião de bancada, o PT definiu colocar a CDHM como a quarta escolha possível do Partido entre as Comissões da Câmara. As outras Comissões prioritárias eram a de Constituição e Justiça (CCJ), a de Relações Exteriores e de Defesa Nacional (CREDN) e a de Saúde, que seria criada a partir do desmembramento da de Seguridade Social e Família (CSSF). No entanto, a de Saúde não foi criada e a bancada do PT não se reuniu para outra discussão sobre a pauta e a possibilidade de nova composição do Partido nas Comissões.

 

No decorrer dos fatos, os deputados só chegaram a um acordo sobre a ordem de escolhas e prioridades no dia 27 de fevereiro. Neste dia, ficou definido que o PSC teria a 20ª escolha (sim, a 20ª!) entre as 21 Comissões da Câmara permanentes, isto é, quando fosse a vez do partido, teria apenas duas comissões em que poderia ocupar a presidência. O PCdoB poderia ter escolhido a presidência da CDHM, mas preferiu ficar com a de Cultura, recém-criada com o desmembramento da Comissão de Educação e Cultura (CEC).

 

O deputado Feliciano foi escolhido pela bancada do PSC no dia 5 de março, mesmo com mobilizações dentro e fora da Câmara para evitar a sua posse na presidência da CDHM, devido às suas declarações de conteúdo homofóbico e racista e por responder a dois processos no Supremo Tribunal Federal, por homofobia e estelionato.

 

Foi marcada uma reunião para o dia 7 de março pelo presidente da Câmara, deputado Henrique Eduardo Alves (PMDB), com entrada restrita aos deputados e pessoas credenciadas (imprensa, assessores e convidados). Devido a isso, deputados do PT, do PCdoB e do PSOL abandonaram a sessão, os partidos como PMDB, PSDB e PP cederam suas vagas para integrantes do PSC e Feliciano foi eleito com 11 votos a favor e só um contra.

 

O decorrer dos fatos, arranjos de poder e as escolhas na Câmara

 

Na semana posterior à escolha de Feliciano, após uma série de manifestações, tanto dentro como fora da Câmara e nas redes sociais, ocorreu uma reunião com o líder do PSC, André Moura (SE), e foi feito o apelo do presidente da Câmara para que Marco Feliciano deixasse a presidência da CDHM. Contudo, afirmou-se que o mesmo continuaria no cargo.

 

Enquanto isso, muitos protestos tomaram as ruas do país, compostos por simpatizantes do movimento LGBT e demais movimentos de pauta ética e religiosa. Durante esse período, alguns deputados do PT, PSB e PSOL entraram com um pedido no Supremo Tribunal Federal (STF) em ação judicial que contesta a atual escolha da presidência da CDHM. O ministro do STJ, Luiz Fux, anunciou que não vai interferir nessa situação em assuntos do legislativo. Também foi criada uma Frente Parlamentar de Direitos Humanos com uma coordenação colegiada. Esta é a primeira vez que foi necessária a constituição de uma frente parlamentar em defesa dos direitos humanos nos 18 anos desde que a CDHM foi formada.

 

No dia 20/03, novamente o presidente da Câmara se reuniu, por cerca de cinco minutos, em seu gabinete com o líder André Moura e com o vice-presidente do partido, pastor Everaldo Pereira, para tratar da permanência de Feliciano. Ao final do encontro, Henrique Alves disse que fez um apelo para a legenda substituir Feliciano. Segundo ele, os dirigentes do PSC se comprometeram a apresentar uma solução para a crise.

 

Nesse dia, a segunda sessão da CDHM, que iria discutir os direitos das pessoas com transtornos mentais, presidida por Feliciano, foi encerrada antecipadamente devido aos protestos promovidos por diversos movimentos sociais dentro do plenário do colegiado.

 

Uma semana depois, a reunião de quarta-feira (27/03) também começou com manifestações de grupos contrários e a favor da permanência de Feliciano à frente da CDHM. Mesmo antes da sessão, centenas de manifestantes já ocupavam o plenário da Comissão e os corredores das comissões. Os manifestantes encontraram seguranças da Casa e há diversos relatos de agressão física e verbal contra eles, além da prisão de um.

 

Os direitos humanos, as retóricas e a cultura política


Alguns deputados e assessores na Câmara declararam que o PT e o PMDB, por priorizarem outras comissões consideradas mais importantes, devido ao arranjo de poder e governabilidade, teriam grande parcela de responsabilidade pela entrega da CDHM para o PSC e a consequente escolha de Feliciano para sua presidência.

 

Acusar somente o PT e o PMDB, nesse caso, de alguma coisa evidencia-se como equívoco. Questionar e debater suas posições, como a de outros partidos, é necessário. Focar a posse de Feliciano na presidência da Comissão nessa questão da escolha dos partidos parece ser inócuo.

 

Manifestações contra a posse de Feliciano na CDHM são legítimas e necessárias, ao mesmo tempo em que muitas não tocam politicamente em questões de fundo, como o atual sistema político brasileiro, o arranjo de poder das diversas bancadas, não só as partidárias, que abriram caminho para Feliciano estar na presidência da CDHM. Causa estranheza, por exemplo, pautar especificamente a “questão Feliciano” e não questionar a presidência da Comissão de Meio Ambiente, que está sob o comando de um dos maiores plantadores de monocultura de soja do mundo, bem como a composição de algumas outras Comissões.

 

Após a opinião pública questionar e ter uma avaliação considerada negativa sobre a posse de Feliciano, posicionar-se criticamente, ou de forma avessa, como no caso da Secretária de Direitos Humanos e outros tantos dentro do PT, PMDB e demais partidos, parece configurar um ato de “lavar as mãos” perante a opinião pública e eximir-se de sua produção política cotidiana como dirigentes político-partidários - como é o caso dos motivos que os levam a fazer escolhas, a exemplo da não priorização da direção da CDHM.

 

Ao não optarmos por debater o sistema social e econômico desigual e (re)formador de preconceitos de gênero, expressão social, regionais, de raça e etnia, percebe-se que tendemos a criar uma reivindicação aparente por direitos exclusivos e uma indignação de pouco lastro reflexivo na sociedade, seja em um plano abstrato ou na realidade concreta, para colocar em “xeque” ideologias que emergem em meio às formas de dominação que se expressam no atual estágio do capitalismo, mesmo com o verniz do respeito e da tolerância à diversidade.

 

Um processo para repensar uma determinada cultura política, como essa que engendra um conjunto de ações e relações, como as que levaram Marco Feliciano à presidência da CDHM, além do Congresso Nacional, passa pelos organismos sociais e políticos. Por exemplo, a escola, partidos, igreja, meios de comunicação, movimentos sociais, família etc.

 

Nesse sentido, dentro do que alcançamos ou concebe-se enquanto sociedade e democracia representativa, e da eleição dos representantes pelo voto obrigatório, perpassamos também a relação de cada pessoa com a política em conjunto, a partir dos mecanismos de coerção e de consenso para o questionamento ou manutenção da dominação de grupos restritos sobre a sociedade e as suas instituições. A eleição e a opção pela manutenção de Feliciano na presidência da CDHM parece ser uma expressão disso.

 

O poder social e econômico que rege as relações políticas dentro do Congresso Nacional, e até mesmo nos governos, não é só garantido por aparatos repressivos do Estado, mas por formação de "hegemonia" cultural a partir do controle do sistema educacional, das instituições religiosas e dos meios de comunicação. Todos eles influenciam na formação e condicionamento de um conjunto de pressupostos, atitudes, normas, crenças, valores e atitudes políticas inerentes e presentes em uma sociedade, quase ‘espontâneos’, formando um bloco de poder na sociedade (1).

 

Em específico, evidencia-se uma ambivalência em nossa cultura política brasileira, que, ao mesmo tempo em que questiona certas posturas e atitudes, também as retroalimenta no cotidiano, com ações governamentais pragmáticas, cautelosas e oportunistas. Contudo, os fatores que levaram Feliciano à presidência da CDHM são bastante influentes e se entrelaçam nessa perspectiva democrática, fazendo com que diretrizes conservadoras, autoritárias e excludentes se reconfigurem e se apresentem com um revestimento e um viés democratizante.

 

Isto é, parece que temos uma possibilidade de refletir um pouco sobre a realidade que construímos e vivemos. Ao se criticar publicamente o Congresso, Felicianos, mensaleiros, anões, por exemplo, e não realizar a autocrítica sobre a ação cotidiana para que isso ocorresse, fica-se além de uma retórica contraditória, em face da repetição e banalização do cotidiano. O que, sob o reino do cinismo, como indica Safatle (2008), implica uma inércia na modificação do agir, pois o sujeito automatiza e se dessolidariza de seu próprio ato. Esse cinismo traria consigo a falência de certa forma de crítica social; afinal, em tal regime de “racionalidade cínica”, não é mais possível pensar a crítica entre situações sociais concretas, tratando a expressão e a linguagem como pura forma, cujo conteúdo pode ser substituído (traduzido) ou valorado por uma racionalidade que se tornou procedimental (2).

 

A partir dessa breve provocação, buscou-se instigar mais uma possibilidade de debate sobre tema que ganha semanalmente as manchetes da mídia, sendo motivo de manifestações pelo país (3).

 

Questões como “qual o Estado e a democracia que queremos? Estado e democracia para quê e para quem?” são evitadas por muitos setores e grupos políticos, tanto de oposição como alguns grupos partidários que compõem a situação no atual governo. Além disso, propor o debate sobre um Estado e uma democracia que deem voz ao conjunto dos grupos sociais e não forme elites e corporativismos eleitorais tenderia a desestabilizar zonas de conforto, desconcentrar poder e recursos direcionados para grupos políticos.

 

Esse debate sobre Estado, democracia e cultura política no Brasil junto à sociedade talvez seja adiado por muito tempo ainda, por mais que não faltem evidências de que precisa ser feito. Ao mesmo tempo, o esforço em rediscutir o sistema eleitoral e de participação social terá que abranger a ampliação da atual discussão sobre democracia, emancipação e autonomia na sociedade, além da reforma política e da questão das campanhas com financiamento público.

 

Notas:

 

1) ZIZEK, S. Um mapa da ideologia. Rio de Janeiro: Contraponto, 1996.

2) SAFATLE, Vladimir. Cinismo e Falência da Crítica. São Paulo: Boitempo, 2008.

3) Nessa provocação não adentrou-se ainda nas questões de gênero, preconceito e racismo de forma mais específica.

 

Sérgio Botton Barcelos é doutorando em Ciências Sociais no Curso de Pós-Graduação em Desenvolvimento, Agricultura e Sociedade da UFRRJ e atua na assessoria da Pastoral da Juventude Rural.

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