Correio da Cidadania

Problemas da crise mundial

0
0
0
s2sdefault

 

 

 

Que o capitalismo se desenvolve de forma desigual por todo o mundo, é algo estabelecido desde que Marx escreveu O Capital. Também é evidente que esse desenvolvimento desigual não é combinado, como supõem alguns pensadores. Ele ocorre de forma descombinada ou desarranjada. Basta ver como emergiram os Estados Unidos, a Alemanha e o Japão, contrapondo-se à Inglaterra e à França, as potências hegemônicas até o início do século 20. E como as colônias, que forneciam lucros suplementares às potências imperialistas, se levantaram em ondas, nem sempre conectadas, e promoveram a descolonização após a segunda guerra mundial.

 

O motor desse desenvolvimento desigual é a luta de classes. Primeiro, entre o capital e o trabalho assalariado, nos países capitalistas. Depois, entre o capital das potências industriais e os capitais, trabalhadores assalariados, camponeses e diversas outras camadas sociais dos países subdesenvolvidos. Tudo isso numa trama complexa de cooperações e conflitos, que necessitam análises apropriadas em cada país, de modo a perceber como o desenvolvimento desigual realmente ocorre, criando fenômenos que desmentem não só as teorias do sistema mundo, como as teorias do subdesenvolvimento inarredável.

 

Essa luta de classes tende a se agravar durante as crises cíclicas do capitalismo. Como Marx acentuou, não haveria apenas uma crise, prolongada indefinidamente. Na destruição, causada em cada uma das crises cíclicas, o capitalismo encontraria as forças de recuperação e de um novo crescimento. Este, ao chegar a uma nova superprodução, seja de mercadorias-objetos, seja de mercadorias-dinheiro, despencaria em nova crise cíclica. Como as anteriores, ela causaria destruição de meios de produção, de forças de trabalho, de dinheiro fictício. Promoveria uma nova acumulação, em menos mãos do que antes, intensificando a concentração e a centralização do capital, a elevação do nível técnico dos meios de produção e, portanto, da produtividade, reduzindo o número de trabalhadores necessários para realizar o processo produtivo.

 

As formas das crises cíclicas também não seriam iguais. Uma crise podia surgir apenas como recessiva, ou como depressiva, curtas ou prolongadas. A de 1929, que se prolongou por mais de uma década, demonstrou que uma crise pode explodir de chofre, em meio a uma situação de bonança geral. Em outros casos, pode ocorrer uma série sucessiva de crises recessivas e depressivas, em meio a recuperações inesperadas e altos crescimentos. Isso ocorreu nos anos 1970, até desembocar na crise da dívida no início dos anos 1980. E ocorreu na primeira década dos anos 2000, até o colapso de Wall Street, a partir de 2008.

 

A atual crise tem semelhança com a de 1929, por ter como epicentro os países capitalistas desenvolvidos. Mas também difere radicalmente por seus efeitos sobre o capitalismo periférico. A rica periferia europeia, tendo por base os créditos proporcionados pelas maiores potências, está simplesmente destruída. Mas a antiga periferia asiática, africana e latino-americana está resistindo. O capital norte-americano não tem conseguido se fortalecer através das medidas anticíclicas, através das quais pretende concentrar capital e exportar as crises para toda parte. A impressão de bilhões de dólares pelos Estados Unidos, em 2008, serviu para salvar alguns de seus bancos e afetar o sistema de crédito europeu, mas teve pouco efeito sobre os milhões de devedores estadunidenses e sobre a periferia dos demais continentes. E sua tentativa de impor uma guerra cambial talvez lhe cause mais problemas do que soluções.

 

Isso tudo se deve ao processo de reestruturação do capitalismo central, iniciado nos anos 1970, que muita gente continua acreditando ser linear e determinista. Essa reestruturação, destinada a reverter a tendência à queda da taxa de lucro, levou à conformação das grandes corporações transnacionais. Deu aos Estados Unidos o poder de emitir o dólar como moeda das transações internacionais, mesmo sem lastro. E intensificou um processo sem paralelo de exportação de capitais, na forma de plantas industriais e de dinheiro-fictício especulativo.

 

Em torno dessa reestruturação, os mecanismos de propaganda ideológica e política do sistema capitalista criaram a teoria da globalização, do fim das fronteiras nacionais, do consenso de Washington, do controle do crescimento e dos déficits públicos como forma de evitar a inflação, da privatização das estatais, das desregulamentações, principalmente do trabalho, e por aí afora. Trabalharam para que toda a periferia adotasse a mesma receita. Mas esqueceram que, nos anos 1950 e 1960, o Japão e os tigres asiáticos receberam exportações de capitais, na forma de plantas industriais, sem necessitar submeter-se àquela receita. Aqueles países participavam da cruzada anticomunista capitaneada pelos Estados Unidos e também puderam se aproveitar das demandas da guerra da Coréia. Ajudaram politicamente os Estados Unidos, contribuíram para que ele elevasse sua lucratividade, mas conseguiram transformar as exportações externas em fator de desenvolvimento econômico independente.

 

A China, a partir de 1979, aproveitou-se daquele exemplo para desenvolver seu socialismo de mercado. Inicialmente, ela aceitou investimentos externos em áreas geográficas restritas, exigindo que as empresas estrangeiras se associassem a estatais chinesas, transferissem a elas altas e novas tecnologias, e destinassem toda a produção ao mercado internacional. Ou seja, inverteram o que o Brasil havia feito na Zona Franca de Manaus. Assimilaram as tecnologias levadas pelos investimentos externos, internalizaram essas tecnologias para as empresas do interior do país e montaram na garupa das empresas estrangeiras para se espalhar pelo mercado internacional.

 

Os chineses não tiveram medo de ter uma balança comercial deficitária durante todos os anos 1980. Esse déficit correspondia às importações de bens de capital e tecnologias indispensáveis à sua industrialização. Apenas em meados dos anos 1990, quando as empresas chinesas, estatais e privadas já tinham competitividade para disputar seu mercado interno com empresas estrangeiras, a China deixou de exigir a associação com estatais e a produção exclusivamente para o mercado externo. E, embora o mercado norte-americano tenha representado um importante destino para as exportações chinesas, desde a crise de 1997-1999, a China realizou uma inflexão estratégica, passando a tomar o seu próprio mercado doméstico como o principal fator de contenção de crises do capitalismo.

 

Nessas condições, para combater a propaganda mundial capitalista de que a China é o grande perigo, não passa de besteira desinformada de alguns pensadores dizer que esse país é apenas como uma ditadura do trabalho no limite da exploração, um chão de fábrica do mundo, pouco produtivo, totalmente dependente da economia norte-americana e da burocracia e repressão do partido comunista. Nenhum país conseguiria evoluir, no curto espaço de 30 anos, para segunda potência econômica mundial se tivesse as características descritas acima. A China não é o perigo alardeado porque ela se limita à concorrência econômica, não realiza corrida armamentista, e procura evitar conflitos porque ainda precisa de muitos anos de paz para completar seu desenvolvimento.

 

E os Estados Unidos são o mais perigoso dos impérios, não porque estejam em decadência e tenham cada vez menos concorrentes. Nem mesmo porque sua economia esteja assentada no keynesianismo de financiamento estatal à indústria de guerra, capaz de elevar a produção e o lucro das outras indústrias. Esses pensadores, da mesma forma que não entenderam a ascensão da China, do Vietnã e de outros países asiáticos, sequer se deram conta do que ocorreu com os Estados Unidos.

 

Com a globalização capitalista, esse país sofreu um brutal processo de desindustrialização. Gerou 50 milhões de pobres. Seu mercado de consumo se manteve na base de um crediário sem retorno. Transformou-se de credor em devedor mundial. Tornou seu Estado extremamente deficitário, com dificuldades crescentes para manter sua indústria de guerra, assim como as guerras em que está afundado, e outras que gostaria de desencadear. Ele é o mais perigoso dos impérios justamente porque tem crescente dificuldade para solucionar seus problemas e sair de seu declínio. E a história já demonstrou que um império em desespero pode cometer qualquer desatino. Este é um dos mais sérios problemas da presente crise mundial.

 

Wladimir Pomar é analista político e escritor.

0
0
0
s2sdefault