Correio da Cidadania

Festa de final do ano de 2042

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Reunidos num amplo salão do escritório de uma grande empresa, em luxuoso prédio, em torno de gigantesca mesa, com muitas cadeiras e alguns sofás e poltronas laterais, estão dezenas de homens e mulheres, que foram convidados para uma comemoração antecipada de final do ano de 2042. Assim que chegam, são recepcionados pelo anfitrião e, depois, se dirigem para os diversos grupos formados espontaneamente. Quase todos se conhecem e, como em qualquer grupamento humano, alguns até se odeiam. O coquetel é servido, enquanto a maioria dos convidados conversa de forma descontraída. Uma escultura de metal lembrando faces de um cubo semiaberto, pintadas de vermelho, sobressai no fundo do salão.

 

Depois de meia hora recepcionando os convidados, o anfitrião chega à cabeceira da mesa e pede a atenção de todos, começando a falar:

 

- Senhoras e senhores. Espero que todos estejam confortáveis. Primeiramente, agradeço aos amigos e às amigas por terem atendido ao meu convite para esta festa de final de ano. Desejo que todos usufruam deste momento de confraternização, contudo, devo lhes confessar que esta reunião satisfaz a um interesse meu. Queria lhes comunicar que, após 30 anos de atuação, estou me retirando da tarefa de ser uma das pessoas de ligação deste grupo. Continuarei com minhas atividades aqui, na empresa.

 

Ouve-se um ruído misto de exclamação e lamento. No entanto, o anfitrião continua:

 

- Não pretendo me desligar totalmente de vocês, mas deixarei de contatá-los com a mesma frequência, para formar consensos, analisar situações e planejar estratégias. Outros naturalmente tomarão meu lugar. Nunca há vácuo de liderança ou não haverá grupo.

 

Neste instante, ele é interrompido por um dos ouvintes, que diz:

 

- Não aceitamos sua renúncia. Você está no auge da sua energia e, melhor que ninguém, consegue ajudar nossa causa.

 

Todos aplaudem. O anfitrião retoma a palavra:

 

- Agradeço muito, mas temos aqui muitas pessoas que podem também fazer a mesma tarefa e algumas até já fazem.

 

O anfitrião parece buscar o fio da meada perdido, respira fundo e continua:

 

- Os empresários aqui presentes devem corresponder a uma parcela expressiva do PIB nacional. Temos aqui também representantes da máquina administrativa do país e da mídia aliada, alguns remanescentes políticos, representantes de governos estrangeiros, intelectuais amigos e outros participantes. Queria realçar que tenho o maior orgulho por ter realizado junto com vocês, nos últimos 30 anos, a maior modificação cheia de êxitos do sistema institucional e político do país. Se observada com atenção, ela foi espetacular. Perdoem-me a falta de modéstia e por estar tomando o tempo de vocês, mas, no dia da minha aposentadoria, uso do direito à atenção dos amigos e amigas durante meus três minutos de glória.

 

Com a aprovação de todos que disseram explicitamente “sim” e daqueles que simplesmente balançaram a cabeça, ele continua:

 

- Conseguimos implantar o nosso sistema de governo, um sistema que funciona. Hoje, quem governa é quem tem a capacidade para governar. Acabamos com os ditos “representantes do povo”, que se elegiam às nossas custas e, ainda assim, só queriam se locupletar. Vivíamos comprando votos e decisões destes políticos. Por mais que eles ajudassem a aumentar nossa lucratividade, estando no Congresso e no Executivo, os gastos com eles diminuíam esta lucratividade.

 

A plateia o ouvia com bastante atenção. A maioria era composta de homens e mulheres que viveram neste período. Só uns poucos não conheceram toda a transição a que o anfitrião se referia. Ele continuou:

 

- E o mais magistral é que fizemos tudo isto com a aprovação do povo. Foi um processo de transição muito bem arquitetado, do qual devemos nos orgulhar. Soubemos utilizar ao máximo o poder de manipulação da mídia, que, junto com algumas lideranças no Congresso, foram aos poucos modificando o sistema. O grande desenvolvimento da informática também ajudou bastante o processo de votação de milhões de pessoas sobre centenas de temas a cada ano. O processo de fazer consultas diretas à população, precedidas de análises e debates, ambos convergindo para a direção que queremos a cada instante, foi primordial. Hoje, a sociedade não consegue imaginar outro processo, mas não era assim há 30 anos. Acredito já ter consumido os três minutos que me foram dados. Enfim, orgulho-me de ter tido o privilégio de participar deste jogo da vida junto com vocês e de termos saído vitoriosos. Obrigado.

 

Muitas palmas são ouvidas, enquanto o anfitrião se distancia da cabeceira da mesa e encontra o primeiro grupo de convidados, aquele que estava bem próximo durante sua fala. Mãos são estendidas para lhe dar congratulações. Entre um aperto de mãos e outro, os ouvintes estão sedentos por atenção especial do anfitrião e, desta forma, comentários lhe são ditos. Assim, ele ouve:

 

- O que os militares dos anos de 64 a 85 diriam do sistema montado por nós?

 

- Os militares do passado nunca imaginaram que a quase unanimidade de pensamento pudesse ser obtida com aparente liberdade de expressão. As análises e os debates patrocinados pela mídia controlada por nós se mostraram muito mais eficientes que o pau de arara. Nossos atores na mídia divergiam no que considerávamos supérfluo e não alertavam as massas para o que era prioritário para elas. Às vezes, entregávamos até algum anel, mas os dedos sempre ficaram intactos.

 

- Parabéns, nós todos trabalhamos, mas você foi especial!

 

Neste momento, o anfitrião se desloca para o grupo vizinho, que também tem alguns comentários a fazer e deseja lhe dar parabéns:

 

- Foi difícil mudar a Constituição de 1988?

 

- Para o início das mudanças, não foi preciso modificá-la porque, no Parágrafo único do Artigo primeiro desta Constituição, está: “Todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição”. Os termos mencionados, no caso, são basicamente o plebiscito, o referendo e o projeto de lei de iniciativa popular, que estão em outro artigo. Foram exatamente plebiscitos que introduzimos em dose cavalar. A participação popular através de votações na internet para diversas decisões de governo foi um sucesso e representou o povo exercendo seu poder diretamente. É claro que o povo não sabe que as análises e os debates oferecidos, antes de cada votação, são tendenciosos. É impressionante como nossos manipuladores sempre influenciam os resultados.

 

Seguindo para apertar as mãos de novo grupo e, também, se satisfazer com novos elogios, ele continua e ouve de uma jovem:

 

- Por que o sistema antigo não funcionava?

 

- Você não deve ter conhecido o antigo Congresso. Extingui-lo trouxe uma economia muito grande para as empresas, que não tiveram mais que financiar campanhas. O pior, dentro deste Congresso, era conter os idealistas, principalmente os de esquerda. O poder do presidente no passado era muito grande, o que nos obrigava a viver bajulando-o. Hoje, ele é uma mera figura decorativa, fazendo com que as determinações das votações públicas sejam cumpridas. Por outro lado, a população não se interessa pelo maior número das questões. Raros projetos de lei e decisões executivas têm a votação de mais de 5% dos aptos a votar, pessoal entre 16 e 65 anos. Aliás, isto facilita nossos objetivos. A votação opcional foi uma grande decisão nossa.

 

Mudando para outro grupo, ele ouve:

 

- Estamos tendo alguns problemas com os invasores da rede de informática. Eles espalham mensagens nos intrigando com a população.

 

- É verdade. Mas não me preocuparia tanto, porque estes invasores estão confinados a uma percentagem pequena da população. Tivemos sucesso ao desconectar parte da sociedade da rede. Demos a eles muitos programas de auditório, reality shows, big brothers, campeonatos de diversas modalidades de esportes, canais pornô, fora as novelas, os seriados e os filmes, enfim, o que, na velha Roma, chamavam de circo. Ninguém, hoje, tem capacidade de subverter as massas, além de nós mesmos.

 

Com isso, conseguiu tirar risos dos ouvintes. Continuando na busca por novos elogios, ouviu a seguinte pergunta de um jovem convidado de outro grupo:

 

- A partir de que momento vocês decidiram montar este esquema?

 

- Não houve um momento exato a partir do qual procuramos implantar um plano previamente existente e completamente detalhado. Fomos implantando nosso sistema aos poucos e à medida que as oportunidades surgiam. Este é um ponto interessante porque, apesar do pouco planejamento, tivemos muito sucesso. Agora, salvo engano, teve um momento que foi crucial para nós. Ocorreu há exatos 30 anos atrás e foi um dos meus primeiros trabalhos neste grupo. Existiu um julgamento no Supremo, que, na época, foi chamado de “julgamento do mensalão”. Já havíamos manipulado fatos e eleições, mas, naquele momento, compreendemos que poderíamos manipular toda a realidade.

 

- O que aconteceu?

 

- É verdade. Os mais moços merecem saber o que aconteceu. Mas, para lhe atender com detalhes, eu teria que gastar algum tempo. Depois, lhe explico melhor; contudo, posso resumir dizendo que a mídia de então conseguiu condenar muitos acusados de uma mesma tendência ideológica, sendo que, para alguns deles, nem provas existiam. Para este caso, furou-se a fila de processos, mudou-se o ritual de apreciação deles, criou-se uma doutrina acusatória específica, enfim, tudo se fez para que fosse possível desarticular aquele grupo político.

 

- Por que tudo isso?

 

- Era a disputa pelo poder a partir de 2014, quando acontecia a eleição para presidente.

 

Ainda no mesmo grupo, uma senhora perguntou:

 

- Por que ainda existem juízes do Supremo?

 

- Na verdade, existem, mas com função bem diferente da do passado. Hoje, eles são mais “explicadores da Constituição e de questões jurídicas específicas” na televisão do que juízes. A decisão também é do povo e por processo informático análogo. Os juízes foram a categoria que mais esperneou para aceitar a mudança dos tempos.

 

- Não existe o perigo de o povo julgar questões jurídicas complexas de forma incorreta?

 

- Em primeiro lugar, a forma correta será sempre a que nos beneficia. E é óbvio que, quando abrimos algum processo de votação pela rede, é porque já tomamos todas as providências para o resultado ser o que queremos.

 

Indo para outro grupo de convidados, ouve:

 

- Vocês realmente construíram algo fenomenal. Parabéns!

 

- Vocês todos já sabem, mas, me orgulho em dizer que fomos o primeiro país do mundo a utilizar a democracia direta de forma radical.

 

Ainda neste grupo, um senhor louro de meia idade afirma:

 

- Brazil still has too many laws protecting its production. This is not fair.

 

- Creio que o Senhor não está sendo justo. Mas, de qualquer forma, perdoe-me por não aprofundar sobre este tema, porque não estamos em uma reunião de trabalho.

 

Seguindo na sua via de satisfação do ego, ouve em outro grupo:

 

- Vocês não têm medo dos insatisfeitos partirem para a luta armada?

 

- Não sei se há tantos insatisfeitos assim. Entretanto, nossas Forças Armadas podem reprimir qualquer manifestação. Com relação à informação que a grande massa está recebendo, através do nosso suporte de mídia, estamos tranquilos. A satisfação do povo é diretamente relacionada com a informação recebida. Portanto, ter controle da mídia é primordial para se ter sucesso neste sistema.

 

Neste momento, ouve-se um som agudo de algo metálico batendo em vidro. Uma senhora usava uma faca, tomada emprestada de um garçom, e a batia em seu cálice. Depois de conquistar a atenção de todos, inclusive do anfitrião, disse, olhando para ele:

 

- Grata pela atenção de todos, pois queria dizer umas poucas palavras. Sei que falo em nome de todos, quando dou parabéns ao nosso anfitrião e aos demais arquitetos do nosso sistema pelos seus feitos. Portanto, gostaria de levantar um brinde para nosso ídolo, assim como para todos que promoveram mudanças tão profundas no nosso país. O que acho excepcional em vocês é que não se sentiram culpados porque alguns de nós – refiro-me aos brasileiros – somos fracassados. Não é porque eles são miseráveis que devemos adotá-los como nossos encargos. Eles próprios, ou o acaso, ou até a falta de oportunidades os fizeram miseráveis. Mas não fomos nós que os deixamos nesta situação. Então, graças ao reconhecimento deste princípio, vocês avançaram muito. Parabéns!

 

Todos levantaram suas taças e copos, pois, de qualquer forma, o brinde era para os homenageados. O anfitrião, falando baixinho para um amigo que estava ao lado, disse:

 

- Em qualquer grupo, tem sempre alguém inconveniente.

 

O anfitrião retoma a palavra roubada pela senhora da infeliz declaração, dizendo:

 

- Obrigado! Queria agora desejar a todos, porque esqueci anteriormente, um próspero Ano de 2043. Continuem aqui, nos prestigiando. O ato de agradecer a presença de vocês não significa que a festa acabou.

 

O mais novo aposentado com grandes serviços prestados à classe continua seu périplo de coleta de cumprimentos.

 

 

 

Paulo Metri é conselheiro do Clube de Engenharia.

Blog do autor: http://www.escritosdopaulometri.blogspot.com.br/

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