Correio da Cidadania

A solidão de Bush, o fracasso dos falcões

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Ainda que lhe falte mais de um ano para abandonar a Casa Branca, a situação atual de Bush é a de um presidente em estado terminal. O fustigamento parlamentar da oposição aumenta a cada semana, seus aliados republicanos vão-no abandonando um após o outro, seu assessor estrela Karl Rove desertou, a bolha imobiliária continua a desinchar assinalando um futuro obscuro para a economia norte-americana e provocando sucessivas sacudidas bursáteis globais. O seu companheiro de aventuras, Tony Blair, deixou o cargo de primeiro-ministro na Grã-Bretanha – o que em Washington gera crescentes temores acerca de um possível deslizamento dos ingleses em direção à União Européia, enfraquecendo seus laços atlantistas e tomando distância da estratégia euro-asiática dos falcões [1] .

 

Além disso, começaram a circular declarações de funcionários e "filtrações" midiáticas quanto a cenários elaborados no Pentágono de retirada rápida das tropas estadunidenses do Iraque [2]. Nesse nível e no conjunto do sistema de poder dos Estados Unidos já quase ninguém põe em dúvida o fracasso da aventura iraquiana e, enquanto o setor mais extremista dos falcões sonha com algum "golpe de força" milagroso dentro do Iraque ou por meio de um ataque contra o Irã, o Império esboça recuos que lhe permitam preservar a sua presença no Oriente Médio. As vendas maciças de armas aos regimes amigos da região é um dos meios empregados. O governo estadunidense acaba de acordar vendas de 20 mil milhões de dólares aos estados do Golfo (incluídos 10 mil milhões para a Arábia Saudita), 30 mil milhões de dólares para Israel e 13 mil milhões de dólares para o Egito.

 

Combinando "interesses estratégicos" dos Estados Unidos e interesses comerciais das empresas beneficiadas com essas vendas [3] , obviamente os funcionários envolvidos no negócio receberão as "recompensas" correspondentes (curiosa mistura de corrupção e fanatismo imperialista).

Por outro lado, acumula apoios no establishment o chamado plano Biden-Gelb de dividir o Iraque em três partes (uma sunita, outra xiita e uma terceira curda), o que implica no êxito (nada assegurado) da estratégia de guerra étnica desenvolvida pelos ocupantes. A concretização do plano lhes permitiria (em teoria) retirar-se com relativamente poucas baixas, uma vez que a resistência iraquiana ficaria submersa num oceano de conflitos locais. Em meados do ano passado, o senador democrata Joseph Biden e Leslie Gelb, presidente emérito do Council on Foreign Relations, publicavam no New York Times um texto pejado de cinismo onde, tomando como precedente o "exitoso" desmembramento da Iugoslávia, propunham esquartejar o Iraque. Completando o coro sinistro, nada menos que David Walker, titular do "Government Accountability Office", pronunciou em 7 de Agosto último uma conferência na qual traçou o paralelo entre a decadência do império romano e a situação atual dos Estados Unidos [4] .

As duas bolhas imperiais estão desinchando ao mesmo tempo: a bolha financeira, centrada no mercado imobiliário (ainda que as suas consequências sejam muito mais amplas), e a bolha militar, apoiada nas guerras do Iraque e do Afeganistão (passo decisivo na delirante estratégia de conquista da Eurásia). A interação entre ambos os fracassos é evidente e surgem como os aspectos mais visíveis, por agora, da degradação geral da sociedade norte-americana que não pode ser compreendida senão na sua totalidade. Desse modo, é possível explicar comportamentos setoriais (militares, políticos, financeiros e outros) aparentemente desmesurados, incoerentes, às vezes abertamente estúpidos, mas que integram uma dinâmica superior marcada pela decadência. E como os Estados Unidos constituem a espinha doença e a cabeça enferma do capitalismo mundial, seus tremores afetam (exprimem) o conjunto do sistema. É por isso que as interrogações sobre o seu futuro têm alcance planetário.

Contra-ataque imperial?

A primeira interrogação refere-se à possibilidade de um contra-ataque do Império. Poderíamos supor que os falcões encurralados estariam tentados a desencadear algum golpe de sorte procurando reverter a péssima situação atual. Durante todo o ano passado, esta hipótese adquiriu certa verossimilhança. A crescente agressividade da Casa Branca em relação ao Irã, o seu compromisso com a invasão militar israelense do Líbano e seus atos hostis contra a Rússia levavam a pensar em uma aventura militar em marcha.

 

Alguns autores faziam-nos recordar histórias de outros tempos, como a invasão do Canal de Suez em 1956 por parte da França e da Inglaterra, dois impérios coloniais em declínio cujos dirigentes haviam perdido a percepção da realidade, o que os conduziu ao fracasso. Segundo Michael Klare, as elites imperiais decadentes costumam tomar decisões descabeladas uma vez que super-estimam o seu poderio (declinante), subestimam o poder (ascendente) dos seus inimigos e finalmente perdem as estribeiras diante de reais ou supostos desafios destes últimos [5]. Ingleses e francesas acreditavam naquela época que podiam dobrar Nasser facilmente, do qual não aceitavam as reivindicações nacionalistas, mas o mundo havia mudado e os estados colonialistas sofreram uma humilhante derrota política.

 

Agora, os Estados Unidos encontrariam-se diante de uma situação semelhante: negariam-se a registrar a magnitude, a importância (geo)estratégica da sua derrota no Iraque e o fato de que a sua gigantesca maquinaria bélica está perdendo rapidamente a capacidade de dissuasão que tinha na década passada. Além disso, o caos financeiro em que estão submersos os impediria de perceber que perdem peso econômico global e que o seu endividamento vertiginoso torna-os mais dependente da rede financeira internacional e das decisões monetárias da União Européia, do Japão e da China.

De qualquer forma, o rápido enfraquecimento do governo Bush vai reduzindo a sua capacidade operacional e é muito provável que essa tendência se acentue nos próximos meses (o que não elimina completamente a possibilidade de uma agressão imperial desesperada, como demonstra a sua recente fanfarronada quando declarou como organização terrorista os "Guardas da Revolução" do Irã).

Entretanto, é necessário olhar para além do bunker de Bush e do aspecto exclusivamente militar do tema. O "complexo industrial-militar" tradicional mudou muito nos últimos anos. Atualmente, faz parte de uma rede de interesses mais ampla e mais complexa que abrange também negócios financeiros, energéticos, de segurança privada, etc. Trata-se de um sistema muito concentrado que (sobretudo) a partir do fim da Guerra Fria conseguiu capturar o grosso da elite política norte-americana. Um dos pilares da referida cooptação foi a ascensão hegemônica de uma "cultura" financeiro-mafiosa claramente parasitária. Prisioneira de visões simplistas, deslumbrada pelo gigantismo do mega-aparato militar de cujas alturas o "inimigo" (por exemplo: as populações do Iraque ou do Irã) é visto como um pequeno objeto, um modesto formigueiro que pode ser manipulado ou exterminado à vontade. Acrescentemos a isto que, apesar de os candidatos à presidência do Partido Democrata criticarem Bush pelo desenvolvimento da guerra no Iraque, não deixam de mostrar as suas presas nos casos do Irã ou do Paquistão-Afeganistão [6] .

Também poderíamos abordar o tema na óptica da deformação "financeira" da realidade, que gera imagens fantasiosas em que enormes massas de fundos derrubam todos os muros culturais e políticos.


Em um caso (militarismo) a realidade é simplificada ao extremo sob o convencimento de que a força bruta pode tudo, no outro (visão mercantil do mundo) a deformação não é menos grosseira ("o poder do dinheiro é irresistível"). Em princípios do século XXI, nos encontrávamos perante a degeneração integral da elite dominante (central) do mundo, que combina o mais elevado refinamento consumista e tecnológico o primitivismo intelectual. Não é a primeira vez que isto se verifica na história humana.

A minha conclusão é que o militarismo imperial-mafioso não tem porque desaparecer com Bush. Ele foi gestado durante um prolongado período anterior (marcado durante a década passada pela primeira Guerra do Golfo, pelos intermináveis bombardeios sobre o Iraque, pela guerra do Kosovo, o desenvolvimento incessante de bolhas especulativas, etc) e tem sólidas raízes entre os dirigentes dos partidos Democrata e Republicano.

Por outro lado, sua dependência energética obriga o capitalismo norte-americano a pressionar cada vez mais os países possuidores dos referidos recursos. Não se trata só da sua declinante produção petrolífera confrontada com recursos globais que tenderão a diminuir no curto prazo. Trata-se também da "solução" (parcial e efêmera) encontrada: os biocombustíveis, cuja expansão significaria de fato a apropriação de vastas extensões territoriais da periferia, reduzindo drasticamente os fornecimentos alimentares desta última. Em ambos os casos o Império, comportando-se como um vampiro, para sobreviver "necessita" depredar cada vez mais o mundo subdesenvolvido e disputar essas presas às outras potências (União Européia, Japão, China). Na realidade, a irrupção dos biocombustíveis impulsiona o Império a uma recomposição estratégica focando novos espaços, ou melhor, reclassificando na sua hierarquia de interesses certas zonas da periferia. Economias agrícolas subdesenvolvidas antes colocadas num segundo plano estão a passar ao primeiro nível na escala de prioridades. É o caso das grandes extensões de terras férteis da América Latina.

Outros impérios?

Não é demasiado insistir em que a crise norte-americana não pode ser entendida se não a assumirmos como parte de um fenômeno mais amplo, mundial. O chamado processo de "globalização" que se desenvolveu a partir da década de 1970, chegando ao seu momento de vitória nos anos 1990 (sob a hegemonia financeira estaduidense), impôs a articulação de uma rede densa de interdependências econômicas entre os países centrais que capturou o conjunto da periferia. O extravasamento financeiro, que inclui endividamentos públicos e privados colossais tanto nos países centrais como nos periféricos e saqueios destes últimos, foi a resultante de uma crise crônica de super-produção que se prolonga desde há pouco menos de quatro décadas [7].

Também deve ser assinalado que a hegemonia norte-americana, sobretudo nos anos 1990 e até a atualidade, assume um aspecto duplo: por um lado é a de uma potência que opera como mega-sujeito (parasita) da economia global, impondo seus privilégios consumistas ao resto do mundo do qual extrai bens e serviços em troca de papéis-dólares que se foram desvalorizando. Mas também se trata de uma enorme lixeira mundial para onde se dirigem fundos e mercadorias que a crise de super-produção não permitia colocar em nenhum outro mercado comparável. As burguesias do Japão, Alemanha, Coréia do Sul ou China não fizeram senão conceder uma espécie de "crédito" muito suave e por tempo indefinido ao seu grande cliente. Os chineses e os japoneses acumularam gigantescas "reservas" em dólares ou títulos do Tesouro dos Estados Unidos em troca das suas mercadorias, os europeus colocaram nos Estados Unidos enormes excedentes financeiros e assim o fizeram também países petrolíferos como a Arábia Saudita. Dito de outro modo, os Estados Unidos são ao mesmo tempo parasitas e tábua de salvação do capitalismo mundial, do qual absorvem toda classe de excedentes financeiros e produtivos. A dívida total dos norte-americanos, pública e privada, aproxima-se dos 50 trilhões de dólares (ultrapassa o Produto Bruto Mundial). Dela, 10 trilhões correspondem à dívida para com credores externos [8].

As turbulências financeiras de agosto de 2007, centradas nos males da economia norte-americana, arrastaram bolsas e bancos da Europa e da Ásia e assim continuará acontecendo no futuro. Trata-se um único navio global à deriva, ainda que a sua tripulação seja bastante heterogênea - o que gera uma imagem confusa de acordos e rivalidades, tropeços e ações concertadas.

Recentemente, os chineses ameaçaram os norte-americanos com a chamada "opção nuclear" (desdolarizar as suas reservas) se estes últimos adotassem medidas comerciais protecionistas contra a indústria chinesa. Mas se esta ameaça se concretizasse, verificar-se-ia uma queda financeira planetária da qual ninguém ficaria a salvo (em primeiro lugar a própria China, cujo sistema depende da sua dinâmica exportadora).

A União Européia (o duo França-Alemanha) não simpatiza com a invasão estadunidense do Iraque, mas não deseja uma derrota do Império que poderia redundar numa perda de controle quase completa do Oriente Médio por parte do Ocidente. A China manifestou a sua oposição à aventura iraquiana, mas as suas compras maciças de títulos do Tesouro dos EUA serviram para financiar essa guerra. A Rússia levanta o seu punho militar respondendo à hostilidade norte-americana e ameaça os satélites europeus da super-potência (e de vez em quando lança algum grunhido aos outros estados europeus, tentando condiciona-los). Contudo, o renascimento russo depende das suas exportações energéticas, dependentes por sua vez da saúde da economia internacional e sobretudo dos seus clientes da Europa. Ainda que se os russos olharem para o Leste (tentando diversificar mercados), encontrarão a China e o Japão, dependentes do poder de compras dos Estados Unidos.

As grandes potências estão condenadas a lutar entre si e ao mesmo tempo realizar acordos destinados à sobrevivência comum. Duas conclusões surgem de imediato: primeiro, o declínio econômico e político dos Estados Unidos afeta negativamente as demais potências e, em consequência, essa fato inevitável acabará por debilitá-los. Segundo, o desenvolvimento do processo geral de degradação fará cada vez mais necessários e difíceis os acordos financeiros, comerciais e políticos entre os países centrais. É evidente que o futuro não copiará o século XX, quando o declínio do Império inglês abriu caminho para a ascensão dos Estados Unidos e da Rússia. Proporá, sim, diferentes cenários de despolarização ou multipolaridade frouxa (mais ou menos caóticos ou efêmeros).

A crise

A terceira interrogação refere-se à duração e intensidade da crise atual. O pensamento conservador é teimoso e insiste em negar a realidade. Em fins da década passada, afirmava que nos encontrávamos em meio a uma grande reconversão positiva do capitalismo quando a simples observação dos fatos nos indicava extravasamento de uma maré financeira. Agora, quando a economia mundial se encontra submersa num oceano de bolhas especulativas e sob a ameaça de uma penúria energética grave, afirma que se trata apenas do desinchar da bolha imobiliária norte-americana e dos seus "danos colaterais" que logo (muito logo) serão superados graças ao funcionamento do "mercado" e às sábias intervenções dos bancos centrais das grandes potências.

Mas a realidade é muito mais teimosa do que essa gente. Esta crise não nasceu em 2007, vem de longe. Desde os princípios da década passada as bolhas e turbulências financeiras internacionais sucederam-se umas atrás das outras. Ao mesmo tempo, a massa financeira global foi crescendo em progressão geométrica. Dívidas públicas e privadas, hipertrofias bursáteis, negócios com "produtos derivados" foram-se expandindo muito mais além do ritmo de crescimento da economia real. Por exemplo: os negócios com "produtos financeiros derivados" representavam por volta do ano 2000 cerca de duas vezes o Produto Bruto Mundial. Em 2006, eram oito vezes maiores. Se extrapolarmos a sua taxa de expansão média do último lustro, em 2010 essa massa especulativa representaria 16 vezes o Produto Bruto Mundial.

Por trás do fenômeno financeiro encontra-se a crise de super-produção crônica que atravessa a economia global - que encontrou uma "via de escape" (uma droga milagrosa) nas atividades especulativas como espinha dorsal de um sistema de saqueio que, sob o discurso do "neoliberalismo", destruiu (devorou) boa parte das economias periféricas e reconverteu ao parasitismo os núcleos hegemônicos do capitalismo. Mas essa via não é infinita. A expansão da massa financeira pode ser emplastrada após cada turbulência, mas finalmente a metástase acaba por danificar o conjunto do sistema, tornando-o inviável.

Ainda que isso não seja tudo, a crise crônica de super-produção converge com a fase declinante de um ciclo muito mais longo, o da exploração dos recursos energéticos não renováveis, pilar decisivo da dinâmica do desenvolvimento industrial capitalista que lhe permite concretizar a sua reprodução ampliada de acordo com a sua própria lógica, autonomizada dos ritmos da natureza, ou seja, oposta à mesma (e saqueadora da mesma). Em resumo, o que estamos experimentando agora é a convergência histórica de duas grandes crise: a de superprodução (que chega à sua etapa de turbulência aguda) e a de subprodução ou penúria produtiva centrada, numa primeira fase, na área energética mas que (mediante os biocombustíveis) começa a estender-se ao setor alimentar.

A crise financeira puxa em direção à recessão e a penúria energética exerce pressões inflacionárias. Nos anos 1970, verificou-se uma pequena antecipação do fenômeno, que foi chamado "estagflação". O termo é demasiado suave para o que vem aí.

 

 

Notas

 

[1] John Bolton, "Britain can't have two best friends", Financial Times, July 31 2007.
[2] Sarah Baxter, "US braced for bloody pull-out", TimesOnline, July 29, 2007
[3] Dan Glaister, "US accused of fuelling arms race with $20bn Arab weapons sale", The Guardian, July 30, 2007.
[4] David Walker, "Transforming Government to Meet the Demands of the 21st Century", http://www.gao.gov/htext/d071188cg.html

[5] Michael T Klare, "Beware empires in decline", AsiaTimes, Oct 19, 2006.
[6] Axel Brot, "Germany, the re-engineered ally", AsiaTimes, Aug 8, 2007.
[7] Alguns autores, como Ernest Mandel, colocam a sua data de nascimento em 1968 (combinando sintomas econômicos com rupturas político-culturais). Outros localizam-na em 1971, quando os Estados Unidos renunciaram ao padrão dólar-ouro – o que coincidiu com o começo do declínio da sua produção petrolífera. Outros ainda em 1973-1974 quando estala a crise petrolífera internacional e se desencadeia um processo estagflacionário.
(8) Michael Hodges, "America's Total Debt Report", http://mwhodges.home.att.net/nat-debt/debt-nat.htm.

 

 

Jorge Beinstein é economista argentino.

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Publicado originalmente pela ALAI.

 

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