Correio da Cidadania

Para onde vai o presidente Morsi?

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Para El Baradei (Prêmio Nobel da Paz, com toda justiça), respeitado político egípcio, o presidente Morsi está se comportando como “um novo faraó”.

 

Liberais, socialistas, nasseristas – secularistas de um modo geral – que foram coautores da Primavera Árabe no Egito acusam Morsi de querer se tornar um ditador, com ele o país estaria “substituindo um ditador (Mubarak) por outro”.

 

E dezenas de milhares de manifestantes já estão há dias protestando na Praça Tahrir contra o governo, enquanto, em várias cidades do interior, as sedes da Irmandade Muçulmana, à qual o presidente pertence, são atacadas. Tudo por causa do decreto do presidente Morsi, que tornava suas ações não sujeitas à apreciação do Poder Judiciário.

 

Seria tão grave que a oposição, segundo um dos seus líderes, Amr Hamzawy, rejeita negociações, exigindo o simples cancelamento do decreto, pois “nossa posição é clara e não há espaço para manobras”.

 

A Europa e os EUA também são contra.

 

O senador John McCain, líder republicano, declarou à Fox News que a decisão de Morsi seria inaceitável. Os EUA deveriam suspender sua ajuda financeira enquanto o presidente egípcio não voltasse atrás.

 

Por sua vez, Victoria Noland, em nome do Departamento de Estado dos EUA, condenou a excessiva centralização de poderes nas mãos de Morsi, o que é engraçado, tratando-se da representante de um país onde o presidente tem direito de mandar prender, sem julgamento e por prazo ilimitado, quem considerar suspeito de ligações terroristas e de enviar aviões sem piloto para matar “inimigos” no exterior.

 

Se os pronunciamentos estadunidenses não significam grande coisa, devido à notória hipocrisia que está por trás deles, a revolta da oposição secularista, que lutou decisivamente contra Mubarak, é algo realmente sério.

 

Teria razão?

 

Além de tornar os atos e leis do presidente inquestionáveis, inclusive pelo Judiciário, o decreto de Morsi tem outras partes importantes.

 

Ele protege a Assembléia Constituinte e o Conselho Shura (a Câmara Alta do Parlamento), estabelecendo que nenhuma autoridade poderá dissolvê-los.

 

Demite o Procurador-Geral, general Abdel-Meguid Mahmoud, indicando um substituto de sua confiança para exercer a função por quatro anos, deixando de ser em caráter perpétuo, como era antes.

 

Ordena que todos os membros do aparelho de segurança, processados e absolvidos por assassinato ou outras violências contra manifestantes, nas fases de Mubarak e de transição, sejam julgados novamente.

 

Por fim, Morsi desfrutaria desses novos poderes até quando o novo Parlamento fosse eleito, de acordo com a nova Constituição. O decreto também aumenta em dois meses o prazo para que a Assembléia Constituinte conclua seus trabalhos.

 

A partir da data da aprovação final da nova Constituição, os poderes do presidente seriam somente aqueles que ela definisse.

 

A oposição teme que o governo, aproveitando esses novos poderes presidenciais, prenda os líderes adversários, acabe com a liberdade de imprensa e persiga os partidos secularistas; Morsi contesta todas estas acusações.

 

Ele garante que seu decreto objetiva garantir o processo revolucionário, iniciado com a deposição de Mubarak, em 25 de janeiro de 2011.

 

Com a queda do tirano, fora formada uma Junta Militar, o Conselho Superior das Forças Armadas (SCAF), que assumiu o poder provisoriamente, prometendo entregá-lo aos civis num prazo máximo de seis meses.

 

No entanto, a lua de mel com o povo durou pouco. Cedo, o SCAF começou a tomar atitudes estranhas.

 

A Lei de Emergência, que nega o direito de reunião e dá à polícia e ao Exército poderes sem limites de revistar, prender e encarcerar quem quisesse, foi mantida, provocando protestos populares. Presos em grande número, os manifestantes foram levados a julgamento pela justiça militar, como acontece nos regimes totalitários.

 

Mas o povo não saiu das ruas, exigindo o fim da Lei de Emergência e justiça civil para os civis.

 

Nada disso foi atendido. Pelo contrário: a repressão tornou-se mais violenta. Chama a atenção o número de pessoas processadas nos tribunais militares: cerca de 12.000, mais do que nos 38 anos do governo Mubarak.

 

As sentenças condenatórias foram de alguns meses a oito anos de prisão. Os choques aumentaram enquanto o tempo passava e os militares procuravam adiar ao máximo as eleições parlamentares e presidenciais.

 

Em fins de outubro, o SCAF fixou as eleições parlamentares e presidenciais para um ano depois. No começo de novembro, quiseram forçar a aprovação de princípios a serem seguidos na elaboração da Constituição, que praticamente tornavam as Forças Armadas um Estado dentro do Estado, além de “guardiãs da democracia”, com poderes de veto sobre as leis dos deputados.

 

Foi demais.

 

O povo lotou a Praça Tahrir durante manifestações que duraram cinco dias e foram reprimidas com uma violência desmesurada, causando 42 mortes e mais de 3 mil feridos.

 

As eleições parlamentares acabaram se realizando, entre fins de dezembro de 2011 e os primeiros meses de 2012, com a vitória da Irmandade Muçulmana. Logo a seguir, foi escolhido pelos parlamentares um comitê de 100 membros para redigir a nova Constituição.

 

Mas os militares não renunciaram ao poder, apoiados pelos juízes da Suprema Corte de Justiça, todos eles nomeados por Mubarak.

 

Em 14 de junho, dois dias antes das eleições presidenciais, a Suprema Corte decretou o Parlamento inconstitucional e o SCAF apressou-se em dissolvê-lo.

 

Não se definiu o que aconteceria com a comissão que fora nomeada para fazer a nova Constituição. O SCAF anunciou que informaria posteriormente.

 

Três dias depois, os militares publicaram uma declaração, os chamados “anexos constitucionais”, que concediam ao novo presidente eleito poderes semelhantes aos da Rainha da Inglaterra, enquanto o SCAF assumiria os poderes legislativos até um novo Parlamento ser eleito.

 

Além disso, continuava com o poder de prender civis e passaria a elaborar os orçamentos da Defesa, sem ingerência de qualquer outra autoridade.

 

Ao tomar posse, ainda em junho, Morsi anulou a dissolução do Parlamento. Mas, um mês depois, sentindo-se sem força, voltou atrás, ratificando a decisão da Justiça.

 

Em agosto, Morsi tornou a avançar na sua luta contra os militares e seus aliados, os juízes da Suprema Corte. Ele promoveu a aposentadoria do poderoso ministro da Defesa, o Marechal Tantawi, presidente do SCAF, e do general Sami Anam, chefe do Estado-Maior das Forças Armadas, substituindo-os por generais de sua confiança.

 

E mais: anulou o decreto do SCAF que limitava os poderes do presidente e dava poderes legislativos aos militares.

 

Em setembro, novo round da luta política: a Suprema Corte manteve sua decisão de dissolver o Parlamento, questionada por Morsi e o Partido da Liberdade e da Justiça (da Irmandade Muçulmana).

 

Na semana passada, ao justificar seu controvertido decreto, Morsi lembrou que seus efeitos seriam temporários – durariam somente até a eleição do novo Parlamento.

 

Negou que pretendesse usá-los para perseguições dos adversários e restrições à liberdade de imprensa.

 

Precisaria deles para limitar os poderes da Suprema Corte, formada por juízes nomeados por Mubarak e aliados aos militares.

 

Caso contrário, os juízes poderiam interferir negativamente no processo constitucional, fortalecendo a posição dos militares na nova Constituição. E a Primavera Árabe ficaria seriamente comprometida.

 

Eles já haviam dado provas de sua posição antirrevolucionária, ao condenar à prisão dezenas de participantes das manifestações da Praça Tahrir (depois, anistiados por Morsi) e liberar indivíduos das forças de segurança dos tempos de Mubarak e da fase de transição, implicados em assassinatos e torturas.

 

O próprio Procurador-Geral, demitido pelo mesmo decreto de Morsi, também tivera um comportamento dúbio em todos esses processos. Seu afastamento foi, aliás, aprovado pelas forças oposicionistas.

 

Segundo Morsi: “Esse decreto é necessário a fim de punir os responsáveis por atos de corrupção e de outros crimes durante o regime anterior e o período de transição”.

 

Outra acusação que se faz é que ele neutralizara o judiciário para que os partidos que o apoiam, maioria na Constituinte, incluíssem na Constituição leis favoráveis à islamização do país.

 

Desde o início do seu governo, o presidente egípcio tem afirmado claramente que, sob sua liderança, o Egito será um Estado civil e inclusivo. E, de fato, em nenhuma das suas ações verificou-se qualquer indício de que pretenderia tornar o Egito uma República islâmica.

 

Lembre-se de que a Suprema Corte estava para julgar a constitucionalidade do Conselho Shura (a Câmara Alta do Parlamento) e da nova Assembléia Constituinte.

 

Como ela já havia dissolvido a Câmara Baixa do Parlamento e a antiga Assembléia Constituinte, tudo indicava uma repetição dessa decisão nos novos casos.

 

Com isso, o Egito ficaria com presidente, mas sem Parlamento, nem Constituição. Num perigoso impasse. A esse respeito, Morsi declarou: “Uma situação assim poderia provocar o retorno dos generais”.

 

Pelo equilíbrio do novo presidente, que vem, passo a passo, vencendo os desafios no caminho da formação de um Estado democrático e sólido, é de se crer que os poderes que ele se outorgou eram mesmo necessários.

 

A oposição me parece bem intencionada, mas excessivamente exigente na recusa em admitir qualquer concessão aos princípios da democracia.

 

A opção não é entre ditadura e liberdade, mas entre os generais e o governo Morsi, com tudo o que estas forças significam. É simples assim.

 

Luiz Eça é jornalista.

Website: Olhar o Mundo.

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