Correio da Cidadania

Conjuntura e projetos

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Há algumas análises sobre a presente conjuntura no Brasil, na América Latina e no mundo, para os quais haveria atualmente três grandes projetos em disputa. De um lado, o projeto do grande capital das corporações transnacionais, ainda hegemônico do ponto de vista econômico, ideológico, político e militar, que tenta se renovar e gerar um novo ciclo de acumulação e de controle. De outro, haveria um projeto de integração capitalista, no qual as burguesias locais procurariam desenvolver o capitalismo e realizar sua própria acumulação, mesmo em contradição com o grande capital hegemônico.

 

Marginalmente a esses dois projetos de caráter capitalista haveria um terceiro, de cunho popular, que objetivaria reorganizar a economia de cada país no sentido de dar solução aos problemas do povo, principalmente os relacionados à fome e à falta de terra, trabalho, moradia e educação. A primeira lacuna dessa análise reside no fato de que as conjunturas dos países centrais – Estados Unidos e Europa Ocidental – são diferentes das conjunturas dos países africanos, asiáticos e latino-americanos. Além disso, a conjuntura de cada um dos países desses blocos difere em muitos aspectos.

 

Por exemplo, a crise norte-americana tem raízes profundas na crescente desindustrialização da sua economia, na desregulamentação quase completa do seu sistema financeiro especulativo, no monstruoso déficit fiscal do seu Estado, em grande parte decorrente das despesas em armamentos e guerras, e na crescente incapacidade da sua população em manter o emprego e a capacidade de consumo. A crise na Europa está relacionada com a política alemã, e em parte francesa, de manter suas indústrias à custa da desindustrialização dos demais países europeus, cujas sociedades passaram a funcionar à custa de transferências financeiras, aparentemente como doações, que causaram grandes rombos fiscais nos Estados. Enquanto o governo Obama procura resolver a crise dos Estados Unidos através de políticas de incentivo industrial e de tributação das grandes fortunas, políticas emparedadas pelo Congresso, o governo alemão está forçando os países europeus quebrados a aplicarem arrochos neoliberais. Do ponto de vista político, a reação conservadora à crise nos Estados Unidos e na Europa continua se fortalecendo, inclusive com o surgimento de correntes ultradireitistas, enquanto a reação popular ainda parece não ter objetivos nem direção política claros.

 

As conjunturas de cada país latino-americano também diferem. Venezuela, Colômbia, Equador, Peru, Bolívia, Paraguai e Chile, que nunca conseguiram desenvolver uma indústria própria de porte e, em vários casos, nem mesmo uma agricultura moderna, embora possuam grandes reservas de recursos naturais, se veem às voltas com a necessidade de se industrializarem, até mesmo para explorar melhor alguns desses recursos, além de enfrentarem classes dominantes muito reacionárias. A Argentina e o Brasil, que já tiveram uma indústria desenvolvida, praticamente quebrada pelo período neoliberal, se encontram diante da necessidade de reconstruir suas indústrias nacionais, tendo como eixo a nova revolução científica e tecnológica e o fato de que a maior parte do parque industrial, que restou da destruição neoliberal, se encontra monopolizada por corporações transnacionais. E ambos também enfrentam a crescente concentração agrária, voltada para o mercado internacional, paralelamente a um constante processo de expropriação das economias agrícolas familiares, responsáveis pela produção para o mercado interno e, portanto, pela seguridade alimentar de suas sociedades.

 

Paradoxalmente, a quebradeira neoliberal na América Latina, que atingiu também os Estados de cada país, rachou as classes dominantes e as burguesias locais, permitindo a surpreendente vitória eleitoral de partidos de esquerda, em geral em coligação com partidos de centro e centro-direita, e o estabelecimento de governos de coalizão. Esses governos se veem, em geral, obrigados a resolver não só os problemas imediatos de profunda miséria e pobreza, analfabetismo real e funcional, desemprego, ausência de assistência médica etc. etc., mas também os problemas estruturais relacionados com o desenvolvimento da infraestrutura econômica e da indústria, reforma agrária, reforma política etc. etc. O problema desses governos é que eles não possuem coesão, nem força política, e nem apoio social firme, para realizar as reformas estruturais, além de enfrentarem resistências diversas para resolver os problemas imediatos, inclusive dentro dos próprios partidos tidos como de esquerda. A grande fase de descenso das mobilizações sociais nesses países parece continuar, embora haja pequenos indícios de que algo se move no sentido de sair da estagnação. Porém, não há certeza de que isso se torne uma realidade a curto prazo.

 

Se olharmos as coisas com realismo, talvez tenhamos que reconhecer que, com exceção da Ásia, tanto os capitalismos desenvolvidos norte-americano e europeu, quanto os capitalismos em desenvolvimento na América Latina e na África, assim como os movimentos populares em quase todo o mundo, atravessam a presente conjuntura debatendo-se para sair das crises, grandes e pequenas, em que foram jogados. Seus projetos não são claros, seja para o futuro imediato, seja para o futuro de mais longo prazo. No caso dos movimentos sociais, alguns acham que podemos lutar pelo socialismo sem passar pelas dores do desenvolvimento das forças produtivas capitalistas, parecendo retomar do início uma discussão da socialdemocracia operária do final do século 19 e começo do século 20. Outros acham que desenvolver as forças produtivas significa apenas desenvolver os meios de produção, a tecnologia e a capacidade de produção. Esquecem que, para um projeto popular, o aspecto mais importante do desenvolvimento das forças produtivas consiste no crescimento da força social da classe dos trabalhadores assalariados e de sua luta econômica, social e política. Em outras palavras, já deveria estar suficientemente claro que um projeto popular, para se cristalizar no mundo atual, seja nos países desenvolvidos, seja nos países em desenvolvimento, precisa ter o capitalismo como contraponto.

No caso brasileiro, como no caso de alguns outros países latino-americanos, africanos e asiáticos em que vigora o capitalismo, e nos quais a esquerda se tornou governo, ou parte importante de governos de coalizão, sem que existam fortes mobilizações reformistas e/ou revolucionárias, a situação é ainda mais complexa. Esses governos precisam ter como eixo de sua ação o revigoramento quantitativo e qualitativo da classe dos trabalhadores assalariados, o que só pode ser feito se houver o crescimento do capitalismo, em especial do capitalismo intensivo em trabalho.

 

A engenharia política, social e econômica necessária para isso passa por planos de desenvolvimento e investimento que saibam combinar adequadamente o crescimento de indústrias intensivas em capital, ou em ciências e tecnologias, e de indústrias que empreguem tecnologias tradicionais, mas empreguem muitos trabalhadores. Portanto, paradoxalmente, projetos populares nesses países não podem abdicar de tratar dessa questão. Mesmo porque não passa de ilusão supor que haverá uma retomada dos movimentos populares de massa sem ter como suporte um poderoso contingente de trabalhadores assalariados.

 

Wladimir Pomar é escritor e analista político.

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