Correio da Cidadania

‘Se Romney vencer, recentes avanços no sistema de saúde dos EUA sofrerão forte retrocesso’

0
0
0
s2sdefault

 

Na próxima terça-feira, 6 de novembro, ocorrerá a primeira fase das eleições presidenciais nos Estados Unidos, com o presidente Barack Obama tentando se reeleger pelo Partido Democrata, enfrentando Mitt Romney, do Partido Republicano. Eleições que, nestes últimos dias, estão sendo protagonizadas pelo Furacão Sandy, que varreu a costa leste dos Estados Unidos e deixou para trás mortes e destruições a pouquíssimos dias de um dos mais esperados pleitos mundiais.

 

Foram, no entanto, muitos e variados os tópicos que dominaram o debate eleitoral do país nos últimos meses, desde as temáticas mais afeitas ao público interno, até aquelas que envolvem o mundo inteiro, relativas à política externa do país mais poderoso e rico do globo. Dentre as primeiras, o sistema de saúde dos Estados Unidos foi uma das que ocuparam um dos mais expressivos espaços, não somente nos veículos de comunicação internos, mas também na mídia de várias nações ao redor do mundo.

 

Não é gratuita a dimensão que assumiu a discussão em torno à assistência à saúde internamente aos EUA. É notório o reduzido alcance e a precariedade desta assistência em uma nação que tenha alcançado o atual grau de poderio bélico, tecnológico, econômico e financeiro – ainda que diante do recente aprofundamento de uma crise econômico-financeira.  A  redação do Correio pôde aferir isto de perto, em entrevista, nos EUA, com duas moradoras de Washington-DC no início de agosto.

 

Julie Yoder, mestre em Linguística e ex-professora no ensino público médio estadunidense, é fundadora de um Coletivo de Professores para o ensino e aperfeiçoamento em línguas, voltado para estrangeiros. Marike Korn, nascida na Alemanha, é especialista em línguas, mestre em Estudos Americanos, Inglês e Ciência Política e doutoranda em Filosofia. Já viveu no Canadá, Itália, Áustria e, atualmente, mora nos Estados Unidos, atuando também como professora do Coletivo fundado por Julie. Cada qual com a sua vivência e visão sobre a sociedade estadunidense, prontificaram-se a dar as suas opiniões e narrar suas experiências pessoais quanto ao sistema de saúde e à assistência médica no país em que vivem.

 

Ainda que o público, em nível mundial, tenha informações a respeito do que se passa na esfera da saúde estadunidense, enxergar esta realidade in loco, a partir da fala e da percepção de duas cidadãs que a vivem no cotidiano, chega a ser ainda mais estarrecedor. Pode-se até mesmo arriscar a opinião de que o sistema de saúde público brasileiro, com suas enormes e incontáveis deficiências, chegaria a causar inveja a alguns cidadãos dos EUA.

 

Depara-se, nos EUA, com enorme maioria da população vivendo no limite, de sua saúde e de sua própria vida’, declara Marike enfaticamente. Para Julie, ‘somente se você é saudável e rico, não perceberá o quanto o sistema de saúde do EUA maltrata as pessoas’.

 

E para aqueles que, muito legitimamente, têm a noção das insuficiências das medidas e política obamistas, face à promessa de renovação que um dia ensejaram, fica uma margem para novas dúvidas e reflexões. Se já se deram conta de que Obama, para além de ser o presidente negro de origem muçulmana, é hoje o maior representante do Império, seria difícil não imaginar, paralelamente, que eventual derrota sua no atual pleito significará carga e angústia ainda mais pesadas para muitos no país do capitalismo selvagem.


Leia a seguir a entrevista completa.

 

Correio da Cidadania: O que vocês têm a dizer sobre o sistema de saúde dos Estados Unidos?

 

Julie: Nós temos tido, tradicionalmente, o que chamamos de ‘Employer Based System’ (Sistema de Saúde baseado no Empregador), o que significa que o Estado não é o responsável pela assistência à saúde nos EUA, mas sim os empregadores.

 

Desta forma, a melhor maneira para ter assistência nestes últimos anos é trabalhar para uma organização que seja grande o suficiente para ser capaz de contratar um bom plano de saúde com companhias privadas. Ao mesmo tempo, e paradoxalmente, nem todo mundo nos EUA trabalha para uma organização, ou para uma companhia; nós temos uma história de empreendedorismo, onde as pessoas tendem para o trabalho por conta própria, tocando seus próprios negócios. No entanto, as forças econômicas estão mudando...

 

Pensando, portanto, neste sistema sob o qual temos vivido ao longo de vários anos, ocorre que, trabalhando para uma companhia privada, você tem a opção de adicionar seu marido ou esposa e seus filhos. Se os dois cônjuges trabalham, e o dois têm seguros de saúde associados ao seus respectivos trabalhos,  a família poderá escolher o melhor plano.  Isto é muito comum.

 

O problema é que, mediante este atual estado de coisas, a responsabilidade pela assistência é jogada para as corporações. Então, se você trabalha para uma grande corporação, você poderia ter um bom plano de saúde; se você trabalha para uma organização não lucrativa, eles provavelmente não terão dinheiro para oferecer às pessoas o que gostariam de oferecer.

 

Existe, deste modo, uma grande variação entre o gastos individuais dos cidadãos nos EUA para sustentar seus planos de saúde. Ao final, se você tiver sorte, terá um empregador com condições de subsidiar o seu ‘Prêmio Mensal’ (Prêmio é o nome que usamos para fazer referência aos pagamentos mensais).

 

A vantagem desta lógica, para aqueles que têm a sorte de pertencer a um grupo, é que, quando ocorre algum problema de saúde, há menos riscos, pois o plano está sendo suportado por um grande número de pessoas, que compraram o mesmo pacote.

 

Se você está trabalhando por conta própria, ou é um trabalhador independente, o sistema é totalmente diferente. Deve-se apelar para uma Companhia de Seguro, que exigirá o preenchimento de um formulário analisando as suas condições de saúde. E, se constar na sua ficha médica algum tipo de problema oneroso para a companhia, é bem comum que eles não te aceitem; alternativamente, se você puder adquirir um plano, ele será extremamente caro.

 

Neste sentido, a diferença básica de nosso sistema relativamente ao europeu é que, aqui, a fatura corre por conta dos empregadores e dos indivíduos. Há planos governamentais, mas eles são direcionados apenas para maiores de 65 anos, que se tornam elegíveis para o Medicare; e para aqueles que estão abaixo da linha de pobreza, que podem apelar para o Medicaid, um programa para o qual são elegíveis as pessoas mais pobres. Trata-se de sistemas populares, e que funcionam. Mas, no caso do Medicare, meus pais, por exemplo, passaram por diversas cirurgias nos últimos 5 anos, e não tiveram muita sorte com a sua cobertura.

 

A questão central que se coloca a partir deste cenário, ou a queixa mais geral da maioria dos cidadãos, é que as pessoas em idade ativa e com renda média – pertencentes à classe média de um modo geral - são aquelas que mais sofrem com o sistema de saúde.

 

Outro problema muito sério relacionado a este sistema de saúde baseado no empregador é que, à medida que as pessoas chegam mais próximas da idade de se aposentar, muitas vezes elas serão despedidas de seus trabalhos – o que se dá quando uma empresa diz que não poderá mais empregar o indivíduo, independentemente de ele ter cometido alguma falta. E frequentemente, pessoas mais velhas serão dispensadas primeiramente, e os seus benefícios serão cortados, porque os idosos levam a despesas maiores, são mais caros.

 

Aqui aparece claramente uma das enormes desvantagens do sistema baseado no empregador, do ponto de vista dos indivíduos: mesmo que o seguro de saúde seja bancado por uma corporação, isto sempre será feito a partir dos interesses da empresa, com foco na redução de seus custos. O que significa que, uma vez que um funcionário passe a representar mais custos do que benefícios, será indubitavelmente dispensado.

 

Marike: A qualidade da saúde aqui é muito alta, mas somente para pessoas que têm acesso ao sistema de seguro de saúde. Você tem hospitais e cirurgiões de altíssima qualidade, mas você não tem acesso, nem todo mundo tem acesso.

 

Há o Medicare e o Medicaid, este último somente para pessoas abaixo de um determinado nível de renda, para pessoas muito pobres, e que não terão acesso aos serviços de maior nível. Ao contrário, se você tem muito dinheiro, você sempre tem acesso aos melhores serviços de saúde.

 

Então, de um lado, há um sistema de saúde que talvez seja um daqueles de maior qualidade em nível mundial, mas ao qual a maioria da população não tem acesso, pois os serviços são caríssimos.

 

Eu, pessoalmente, fiquei bastante assombrada quando vim da Europa para os EUA, pois nasci e vivi na Alemanha e, depois, vivi na Áustria, países nos quais todo mundo tem seguro de saúde.

 

Na Áustria, onde morava antes de vir para cá, o sistema é público. Na Alemanha, onde nasci e vivi antes de ir para a Áustria, há o sistema privado e o sistema público para os seguros de saúde, mas se trata de um serviço altamente regulamentado. Ou seja, ainda que haja operação privada, ela é bastante regulada.

 

Na Suíça, existem somente companhias privadas de seguro de saúde, mas são também fortemente reguladas. Não podem simplesmente decidir te expulsar dos seus planos, porque você está doente, ou por conta de doenças pré-existentes, tal com ocorre aqui.

 

Correio da Cidadania: Como vocês veem o novo Plano de Saúde de Obama, em seus principais pontos?

 

Julie: O principal objetivo é aumentar a cobertura, porque nós temos uma grande quantidade de pessoas que não têm seguro de saúde.

 

Correio da Cidadania: Especialmente na classe média, não?


Julie: Sim. Quando se perdem os empregos, perdem-se os benefícios. Há a possibilidade de se prosseguir no mesmo plano de saúde em caso de demissão, mas a um custo bem maior. Por exemplo, se a sua companhia negociou o valor de 450 dólares por mês por pessoa com uma empresa seguradora de saúde, e a sua contraparte é 100 dólares por mês enquanto está trabalhando, você pode se manter no mesmo plano caso saia da companhia; mas, para prosseguir, terá que pagar o preço cheio, ou seja, 450 dólares por mês. Mas, se você perde seu trabalho, perde sua renda! Como poderá bancar despesas ainda mais altas? A não ser que se trate de alguém com algum dinheiro, alguma economia, ou que tenha ajuda na família, a situação ficará bem complicada.

 

Há um programa de governo específico, que permite uma extensão de benefícios de saúde para pessoas que estão desempregados, mas que também exigirá dispêndios individuais maiores que aqueles incorridos pelos que estão empregados. E, novamente, se você está desempregado, e sem renda, vai se deparar com uma situação difícil, porque será impossível despender uma quantia mensal por um longo tempo contando somente com as economias.

 

Por estas razões, o principal objetivo deste novo plano é aumentar a cobertura. Trata-se de um arranjo complexo, e há uma série de pessoas que não o entendem, mas a ideia é aumentar a cobertura para além daquilo que já fazem o Medicare e Medicaid.

 

Neste sentido, aparecem as medidas estruturantes para efetivar este novo sistema. As principais delas são a decisão recente da Suprema Corte, estabelecendo a obrigatoriedade de aquisição de um seguro de saúde a partir de agora, ao mesmo tempo em que deverá haver regulação em muito maior grau para as companhias de seguro.

 

As companhias de seguro não eram, em sua maioria, regulamentadas. Portanto, se, por um lado, a regulação será incrementada, haverá também a obrigatoriedade de que todos obtenham um plano de saúde. E, caso não o obtenham, deverão pagar uma multa de agora em diante.

 

Face ao novo arranjo, a ideia é que as companhias de seguro possam obter os recursos daqueles que têm saúde para amparar os que não a têm.

 

Marike: A obrigatoriedade de aquisição de assistência médica, a partir da nova lei de Obama, é, na minha visão, essencial, pois, se mais pessoas vão pagar, o prêmio (pagamento) inicial vai baixar.

 

Na Alemanha, por exemplo, esta é a lei, você tem que ter assistência de saúde. Na Áustria, não é lei, mas todos têm assistência médica, pois é normal que assim seja, é parte da vida. Fato é que ninguém precisa ficar com temores relativos à assistência ou despesas médicas nesses países.

 

Correio da Cidadania: De todo modo, parece que esta parte do plano tem causado muitas polêmicas, não?

 

Julie: Sim, esta parte do plano está sendo muito impopular, e é em cima dela que os republicanos estão tentando faturar.  Muitas vozes têm sustentado a ideia de que forçar todos a adquirirem um plano de saúde é inconstitucional, é uma violação da liberdade individual.

 

E foi uma grande surpresa que a decisão da Suprema Corte tenha sido pela constitucionalidade da medida. Eles compararam esta a outras situações onde há requisições e regras específicas, com consequentes multas pelo seu não cumprimento.  Então, o que acabou por ficar decidido é que, a partir de uma certa idade, por volta de 14 anos, todos terão que, realmente, adquirir seguro de saúde.

 

Mas é preciso ressaltar que há quesitos importantes a serem observados ainda, de forma que a equação deste novo plano venha a ser bem sucedida. Por exemplo, por enquanto, ainda que diante das novas regras, se você adquire um plano, está limitado à companhia que atua na sua cidade ou no seu estado.

 

Assim, ainda que o mercado seja livre, e privado, ele é monopolizado por algumas empresas, que têm o poder de fixar os preços. Este é um aspecto que deve ser observado.  Se Minessota, por exemplo, possui um sistema de seguro de saúde muito bom, com companhias que fazem negócios prioritariamente em Minessota, mas que atuam nacionalmente, eu, como residente em Washington DC, deveria poder comprar meu plano em Minessota!

 

Há, portanto, questões que não se resolverão de início, até que as pessoas possam compreender melhor como as novas regras funcionam. Mas há uma perspectiva de se abrir ainda mais o mercado e aumentar a competição. De forma que os cidadãos não fiquem restritos à companhia que é a dominante na região e estado em que habitam, o que constitui, hoje, um dos nossos principais problemas e limitações.

 

Uma outra situação associada à falta de competição pode ser vista em Maryland, Washington DC e Virginia, onde há uma grande companhia, dominante na região, à qual está ligada a maioria dos médicos e profissionais de saúde. Trata-se de um cenário que cria uma enorme limitação quanto ao acesso e escolha de médicos, hospitais etc. para planos de saúde associados a outras companhias.

 

A ideia toda é, desta forma, aumentar o acesso, criando mais competição, ao lado de maior regulação. O que conduzirá a menores empecilhos para a escolha da população e impactará na redução de custos.

 

Correio da Cidadania: E quais seriam outras peças mais específicas de relevância na nova lei de Obama?

 

Julie: Uma outra parte essencial deste projeto é que as companhias de seguro não mais terão permissão para eliminar as pessoas de seus planos quando elas ficarem doentes.

 

Atualmente, se você tem um plano de saúde há três anos e adquire um câncer nesse período, a companhia de seguro pode se virar para você e dizer que se tornou um paciente caro, o que justificaria eliminá-lo de sua carteira. Situação terrível, vez que o paciente não terá recursos para fazer o tratamento contra o câncer e ainda estará marcado com aquilo que se chama aqui de ‘Preexisting Disease’ (Doença Pré-existente) - o que praticamente o impede de encontrar outra empresa que o assegure.

 

Neste aspecto, mesmo nos planos de saúde associados a empresas acontecem problemas terríveis, alguns dos quais eu mesma pude obervar de perto. Tenho uma conhecida que trabalhava na escola na época em que eu lá estava, que teve um câncer, e o plano de saúde a que tinha direito queria adiar a cirurgia pela qual ela teria que passar, ou forçá-la a pagar por ela.

 

Neste momento foi que eu percebi que estava vinculada a uma instituição que oferecia um seguro de saúde que poderia atuar de modo discricionário nos momentos mais urgentes e delicados. Seria, portanto, inútil continuar vinculada a esta instituição por causa da suposta segurança de um seguro saúde; melhor seria cuidar de meu trabalho por conta própria.

 

Este é, então, um ponto forte e essencial do novo projeto, todas as pessoas deverão ser asseguradas e ninguém mais poderá ser eliminado porque está doente.

 

A noção de doenças pré-existentes também deverá ser usada de forma mais adequada, menos nociva. No que se refere à gravidez, por exemplo, ela também pode ser considerada uma condição pré-existente - no sistema atual, nenhuma companhia se disporá a fazer a inclusão de uma mulher grávida. Uma situação complicada, que deve ser revista.

 

Um outro ponto importante do projeto, que ficou muito popular, é que os jovens poderão permanecer no plano de seus pais até os 26 anos. Trata-se de uma medida para assegurar o período entre a formatura e a obtenção de um primeiro emprego, quando os jovens não têm recursos, ou não os têm em quantidade suficiente para se manter. Portanto, até os 26 anos, poderão ficar sob o amparo do plano familiar.

 

E, finalmente, um dos benefícios que deverão se tornar mais evidentes são os cuidados preventivos, que também terão provisão de agora em diante sob o novo sistema. Será possível fazer check-ups, para avaliar preventivamente problemas de saúde. No caso das mulheres, a prevenção ginecológica terá cobertura de 100%, sem necessidade de pagar um médico para autorizar os exames preventivos.

 

Marike: Quanto a estes últimos pontos citados por Julie, sobre a cobertura à maternidade, à juventude e sobre os check-ups, vejo-me neste país diante de situações absurdamente discrepantes com relação ao lugar de onde venho.

 

A não inclusão dos cuidados com a maternidade configura para mim discriminação, já que pelo menos 50% das mulheres tendem a ficar grávidas. Se eu, por exemplo, resolver agora ter um filho, deverei gastar muitos mil dólares a mais com contas médicas, pois meu plano de saúde não cobre despesas relativas à maternidade – para cobrir, eu teria que pagar pelo menos 200 dólares a mais por mês. Isto para mim é discriminação, volto a repetir.

 

Quanto aos jovens sem cobertura de saúde antes das alterações introduzidas por Obama, isto se dá em grande medida por considerarem que não seria necessário - o que é uma atitude estúpida, distante daquilo que é considerado razoável no lugar de onde venho.

 

Outro ponto importante é que, na Europa, o sistema de saúde é muito baseado em check-ups regulares – costuma-se fazer check-ups anualmente. Assim, eu estava acostumada a ir ao meu ginecologista, ao dentista, uma vez por ano quando estava lá. Obviamente que, se você tem uma assistência médica regular, problemas que poderiam se tornar mais graves podem ser resolvidos facilmente, evitando transtornos e gastos futuros.

 

Este é, no entanto, um modelo que as pessoas aqui nem mesmo compreendem; na verdade, estão sugestionadas a não compreenderem. Simplesmente dizem que não vão obter uma assistência médica

 

Correio da Cidadania: Ressalta da fala de vocês que uma das ideias essenciais do novo plano é o incremento da competição, ao lado de uma maior regulação do sistema – qual seja, trata-se de um sistema privado, mas que, para ter um funcionamento minimamente mais amplo e igualitário, necessitaria sofrer maior regulamentação pública.

 

Marike: Sim, antes de Obama, não havia regulação alguma, já que este é um país que se baseia na crença do mercado livre, da competição aberta entre as grandes corporações, na ideia de que as pessoas têm que ter liberdade para escolher. Mas, se você é pobre, esta liberdade não passa de uma ilusão, pois, na prática, você não tem liberdade para escolher. Trata-se, portanto, de um sistema que não funciona, a não ser para as pessoas ricas e para as grandes corporações – para aqueles que não são extremamente ricos, até mesmo para a classe média, esse sistema não passa de um embuste.

 

Mas isto, tal como acabo de descrever, ocorreu antes de Obama. As companhias de seguro podiam te expulsar ao seu bel prazer, a qualquer hora, baseando-se em critérios relativos a doenças pré-existentes, o que inclui, por exemplo, diabete e colesterol. E quase todos neste país têm colesterol alto! As pessoas são, portanto, expulsas de um plano de saúde e, muito dificilmente, conseguirão contratar outro, em função das mesmas restrições – as quais, inclusive, somente se agravam na medida em que se cria um histórico de baixa aceitação por companhias anteriores.

 

Depara-se, portanto, nos EUA, por incrível que possa soar, com uma enorme maioria da população vivendo no limite, de sua saúde e de sua própria vida. Não há garantia alguma, nem de obter um seguro de saúde e nem mesmo se você já possui algum.

 

O que ocorreu comigo assim que eu cheguei aqui foi me deparar com um seguro de saúde onde havia um período de carência antes que se tivesse o direito a ter alguma cobertura. Por exemplo, seria necessário gastar 5 mil dólares, em algumas parcelas mensais,  antes que a companhia de seguro começasse a te assegurar. E, além do mais, antes de Obama, você não tinha nem mesmo a garantia de que a sua companhia de seguro não iria te expulsar do plano adquirido em função do estabelecimento de absurdas pré-condições para a permanência.

 

De onde venho, as companhias de seguro privadas são altamente reguladas, e você sempre tem um sistema de saúde conduzido pelo governo. Por exemplo, se alguém fica desempregado, imediatamente terá um seguro de saúde público, que quase sempre é tão bom quanto o privado. A diferença básica é que, se você tem um plano privado, você terá um quarto particular em um hospital; se depender do sistema público, terá que compartilhar um quarto com outros pacientes, mas no mesmo hospital. Não se está, então, diante de um tratamento diferenciado que vá impactar diretamente na saúde.

 

Como já destaquei, o oposto do que ocorre aqui, já que, se a pessoa é rica, e tem um câncer, sem problemas, é só se encaminhar para um dos melhores hospitais do mundo e pagar a conta, obviamente altíssima. O que não é o caso dos pobres, que até poderão ir ao hospital, haverá médicos para atendê-los, mas ou não terão como pagar as contas ou não terão o mesmo atendimento. Depara-se, assim, com um sistema que se estrutura às expensas dos mais pobres.

 

Correio da Cidadania: O que vocês poderiam comentar sobre a reação e o sentimento das pessoas de classe média de uma forma geral, já que as suas condições poderão melhorar substancialmente com o Plano Obama?


Julie: Eu não tenho uma visão tão ampla, na medida em que a maioria das pessoas com as quais tenho convivido está tocando seus próprios negócios. Mas, até onde consigo ver, grande parte da população está a favor deste novo projeto, visto que sofreu muito sob o sistema atual. Somente se você é saudável, rico, conseguiu ter uma vida profissional regular, não perceberá o quanto este sistema atual maltrata as pessoas de forma geral.

 

Há, obviamente, aqueles que são refratários às mudanças. Posso citar amigos de meu pai, como emblemáticos de uma certa ala que votará contra Obama nas eleições porque está contrariada com seu projeto para a saúde. Eles, de todo modo, não têm os mesmos problemas que as pessoas jovens têm, e eles são incapazes de enxergar além de seus circuitos de convivência.

 

Em meu círculo social, as pessoas veem com bons olhos as perspectivas que se abrem, visto que querem ter seus próprios negócios, sem ter que se submeter a um emprego. E o atual sistema é praticamente impeditivo a que se conduza a vida nesta direção – ou seja, as regras do atual sistema são bastante limitantes para aqueles que assim projetam suas vidas.

 

No geral, as pessoas, a meu ver, estão vendo mais benefícios que desvantagens. Estão começando a perceber estas pequenas, mas significativas, mudanças.

 

Correio da Cidadania: Pensando nas eleições, como todas estas mudanças impactam as chances de Obama?


Julie: No meu ponto de vista, que tem sido reforçado pelo que estou vendo em alguns órgãos de mídia, as pessoas poderão começar a perceber que seus custos com seguro de saúde tendem a decrescer; que antes não podiam ser tratadas quando estavam doentes e agora poderão sê-lo; além de se darem conta de mudanças em sua própria condição física. O que tenderá a fazê-las se moverem para o lado de Obama, ou a reforçarem sua opção por ele. Porque, se Romney vencer, a primeira coisa que ele fará será destruir este projeto, e todo mundo sabe disto.

 

Quero dizer que, se os republicanos ganharem, todos estes avanços sofrerão forte retrocesso, pois eles têm sido, desde o começo, extremamente ativos contra este projeto.

 

A própria mídia tem reforçado a ideia de aumento da desvantagem de Romney na medida em que o tempo for passando. A população tende, portanto, a intensificar seu entendimento e percepção das mudanças que estão em curso, o que influenciará no seu voto provavelmente a favor Obama.

 

Marike: Eu não acredito que Romney vá ser presidente, por vários destes motivos narrados, para os quais há uma quantidade enorme de aspectos envolvidos.

 

Correio da Cidadania: Como têm percebido a crise econômica internacional, intensa no continente europeu neste momento, e seus impactos nos EUA e, possivelmente, nas eleições?

 

Julie: Em meu ramo pessoal de trabalho, por exemplo, os impactos dessa crise não aparecem tão diretamente, visto que tenho lidado profissionalmente com profissionais liberais, tais como economistas, diplomatas e outros, que não estão abalados financeiramente. Ouvimos notícias diferentes, contraditórias até, dando conta da crise econômica mundial, mas, no dia a dia, não parece tão impactante aqui desta vez...

 

É preciso, no entanto, notar que a mídia nos EUA é bastante focada no próprio país. Existem os veículos que cobrem os acontecimentos internacionais, obviamente. Mas deve-se admitir que, na verdade, as pessoas aqui não parecem muito interessadas nesta situação, ou no que acontece para além de seus próprios interesses e territórios. Na média, os americanos estão muito pouco ligados em buscar informações e notícias neste sentido.

 

Correio da Cidadania: De toda forma, há um problema de desemprego que é evidente nos EUA, que se acirrou a partir da crise de 2008. Como vocês diriam que o presidente Obama e o público em geral estão lidando com esta situação?

 

Julie: A verdade é que há um desapontamento, no sentido de que não parece haver, em minha visão, políticas decididas ou medidas de impacto para a recuperação de postos de trabalho. Mas é também inegável que, já antes de Obama, começou a haver uma migração de postos de trabalho para fora do país.

 

Correio da Cidadania: Neste aspecto, acompanhando as notícias da mídia local nestes últimos dias, tem sido possível observar que este problema de perda de postos de trabalho internamente, os quais têm se movido para o exterior, vem sendo bastante ressaltado e, acima de tudo, atribuído à gestão Obama.

 

Julie: Trata-se, a meu ver, de estratégia política da mídia para as eleições, que, afinal, estão se aproximando. Além de ser um tanto ridículo, em minha opinião, sugerir que um problema dessa ordem esteja circunscrito aos últimos anos da gestão Obama, de 2008 a 2012.

 

As assim chamadas “Cidades de Manufatura”, com suas fábricas e postos de trabalho, têm, afinal, se movido para fora do país desde as décadas de 80 e 90, indo em direção a países como o México, por exemplo. A ideia das ‘Cidades do Aço em Recessão’ é, por sua vez, de longa data, muito comum, porque suas fábricas foram desativadas e se moveram para fora há muitos anos atrás.

 

Correio da Cidadania: Vocês não gostariam, finalmente, de acrescentar algo a respeito de suas experiências pessoais com os seus seguros de saúde aqui nos EUA?


Marike: Fato é que, quando eu cheguei aos EUA, eu estava terrivelmente assustada. Cheguei a considerar ter cometido uma loucura, mas permaneci, pois, em meu trabalho, eu teria mais oportunidades. No entanto, nem mesmo podia comentar com meus pais sobre a situação que eu vivia, pois não entenderiam. Casei-me com um estadunidense, que nunca se preocupou com nada disso. Somente tinha um plano de saúde porque seus pais pagavam por ele.

 

Eu não tinha um trabalho assim que cheguei e, portanto, não tinha dinheiro para fazer um plano de saúde. Meu marido, como disse, é uma pessoa extremamente despreocupada nesse sentido, mas nem mesmo seus pais abriram um diálogo comigo, porque também não se ligam tanto nesse tema. Eu carregava grande preocupação de que, em face de alguma adversidade, eu não teria como bancar minha assistência médica. E fiquei na expectativa de que aqueles com os quais eu convivia mais proximamente, os pais de meu marido, poderiam me ajudar de alguma forma a encontrar uma saída. Mas jamais tocaram no assunto comigo.

 

Não tive, portanto, seguro médico por um ano. Meus pais não sabiam disso, jamais entenderiam, com sua mentalidade europeia, uma situação dessas.

 

Eu teria que pagar muitos e muitos mil dólares caso tivesse que ir a um hospital durante este período...

 

Após um ano vivendo aqui, eu adquiri meu plano de saúde, já que passei a ter condições de suportá-lo a partir de meu trabalho como autônoma. É caro, apesar de muitas pessoas acharem que eu não pago um valor tão alto, porque eu não tenho as doenças pré-existentes. Ocorre que, como integrante que era do sistema europeu, tenho uma outra percepção desta realidade, o que aqueles que moram aqui nem sempre percebem.

 

Eu fiquei muito assustada quando cheguei, e preciso ser honesta, ainda tenho temores, mesmo com as novas regras em andamento. Porque, se você tem um emprego público aqui, está melhor, já que vai ter o seguro que o governo concede para os seus funcionários. Mas eu não tenho essa garantia, já que trabalho por conta própria. E acredito que, se Romney se eleger, ele tentará revogar as modificações levadas a cabo pela atual lei de Obama. Porque os republicanos já disseram que o principal objetivo que terão nos quatro anos de governo, caso se elejam, será eliminar cada uma dessas medidas que entraram e poderão ainda entrar em vigor.

 

E fico muito temerosa também porque sou estrangeira. Ainda que meu trabalho esteja indo bem, e eu esteja apta neste momento a suportar os custos de um plano de saúde, dependo constantemente de uma network para prosseguir com minhas atividades, o que nem sempre é fácil ou estável. Ademais, provenho de um outro lugar, com uma outra mentalidade, onde a ideia de segurança e estabilidade são parte da existência.

 

A realidade hoje é que, de fato, eu estou assegurada por um plano de saúde, que cobre todas as despesas médicas e, agora, sem dedução, mas prossigo sem confiança no sistema de saúde norte-americano. Há alguns planos de saúde europeus para pessoas que moram no estrangeiro, mas eu não sei se funcionam, eu teria que pesquisar mais a respeito, e novamente entrariam aqui minhas desconfianças relativas ao sistema norte-americano, ao seu substrato legal.

 

Julie: Eu tive muitos problemas com meu plano de saúde e, de fato, por volta de 2006, esse assunto ainda não era um tema nacional. Eu sabia que eu passava por uma situação complicada, mas que ainda não era discutida nacionalmente nos EUA. Inclusive, uma das promessas de Obama, já em sua primeira campanha presidencial, foi justamente a reforma do sistema de saúde, caso fosse eleito presidente.

 

Quando, finalmente, este assunto veio à pauta nacional, eu me senti muito legitimada. Porque, em meu caso específico, eu fiquei muito doente quando trabalhava na escola pública. O prédio da escola permaneceu em péssimas condições por 6 anos,  muitas crianças adquiriram problemas respiratórios, como asma, e muitos adultos tiveram doenças tipicamente associadas às instalações em mau estado de conservação.

 

Eu decidi, a partir de certo momento, como já mencionei, sair deste emprego, já que eu não tinha um diagnóstico claro para a minha doença e seria, portanto, difícil encontrar provas de que estava associada ao local de trabalho. E eu sabia que, se eu permanecesse, eu ficaria ainda mais doente. Não valia mais o esforço de permanecer em um trabalho insalubre por causa do plano de saúde.

 

No que se refere ao plano que eu possuía, como funcionária, eu pagava uma quantia irrisória, e decidi pesquisar as novas condições caso eu quisesse permanecer na mesma companhia de seguro - daquele momento em diante, com um plano individual. Procurei os responsáveis e disse que gostaria de continuar com o mesmo plano quando começasse a trabalhar por conta própria. Com o que me sugeriram muito prontamente preencher os formulários para tentar persistir com aquela assistência individual. Dentre as informações que tive que fazer constar, relacionei alguns médicos que tinha visitado no passado. Obtive, ao final do processo, uma resposta negativa, sob o argumento de que eu era muito doente!

 

Os meus problemas alérgicos, relacionados ao ressecamento de minha pele, eram bastante associados a stress, e por isto eu já havia procurado psiquiatras nos últimos 10 anos. Ocorre que, nas pré-condições para a aceitação neste plano de saúde que eu pleiteava, não deveriam constar doenças pré-existentes relacionadas ao estado físico nos últimos 5 anos; e, quanto a doenças pré-existentes relacionadas ao estado mental, a restrição era maior: 10 anos!

 

Não havia mais o que fazer, no caso!

 

Trocando ideia com uma amiga, que também trabalhava por conta própria, cheguei à conclusão de que não havia alternativa a não ser ir em busca de uma nova companhia e, simplesmente, mentir, omitindo o meu histórico médico nos formulários para a requisição de um plano de saúde.

 

Então, nos últimos anos, eu tenho sido extremamente cuidadosa quanto aos médicos que procuro, quando os procuro e, especialmente, por que os procuro.

 

Eu planejo o máximo que posso e, quando estou doente e não sei o que está errado, vou ao médico; mas, a depender do problema que tenho, e se este for relacionado ao meu passado alérgico, só posso ir ao médico em caso de extrema necessidade. Caso contrário, podem argumentar, com base em antigos documentos médicos, que me omiti nos formulários dados quanto às doenças pré-existentes.

 

Correio da Cidadania: Isto é terrível, chega a ser surreal no país mais rico e poderoso do mundo.


Julie: Sim, e são muitas as pessoas que planejam suas idas ao médico.  Elas evitam ao máximo procurar os médicos por motivos relacionados a stress e os procuram apenas quando se sentem realmente muito mal.

 

Procurar, por exemplo, um psiquiatra e solicitar à companhia seguradora o pagamento do tratamento criaria uma condição extremamente negativa no histórico médico, que acarretaria fortes empecilhos para uma eventual busca futura de um novo plano de saúde. Neste sentido, cuidados mentais também não poderão mais ser tratados de modo diferente, dissociados de problemas físicos, causando impedimentos para a abertura de um plano de saúde.

 

Valéria Nader, jornalista e economista, é editora do Correio da Cidadania.

Comentários   

0 #1 RE: ‘Se Romney vencer, recentes avanços no sistema de saúde dos EUA sofrerão forte retrocesso’Gilberto Jordan 05-11-2012 20:23
Perdão Valéria!
E com Obama houve grandes avanços!!!!
Gosto das tuas posições mas ficar defendendo como um mal menor é absolver uma criminoso de guerra e assassino como é Obama!
Citar
0
0
0
s2sdefault