Correio da Cidadania

O casal espião

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Enfim, conheci espiões ao vivo. Até ir ao México, em março passado, espionagem consistia, para mim, no universo literário de John Le Carré, Graham Greene e Ian Fleming, o criador de James Bond, agente 007. E na leitura do clássico “A orquestra vermelha”, de Gilles Perrault, que narra a atuação da rede de espionagem soviética na Europa Ocidental durante a Segunda Guerra Mundial.

 

Gilberto e sua mulher, Alicia, ingressaram jovens no Partido Comunista mexicano. Aos 17 anos, na década de 1960, o partido lhes propôs serem agentes secretos da inteligência militar soviética nos EUA. Casaram-se, foram treinados na Rússia e, em seguida, se mudaram para Washington. Ali, durante 20 anos, cumpriram a missão de descobrirem, país afora, bases de mísseis.

 

Levavam uma vida aparentemente normal: cursaram a universidade, fizeram doutorado, empregaram-se como professores, tiveram dois filhos e viviam de seus salários. Muito eventualmente os russos forneciam algum dinheiro para despesas com viagens – em geral, de carro, para localizarem as bases. O receio dos soviéticos é que os americanos fizessem um ataque de surpresa.

 

Na Rússia, Gilberto ganhou uma velha máquina de escrever. Foi instruído a escrever em suas teclas apenas mensagens de muita importância. Sem necessidade de datilografar com papel no rolo. Uma tecla, em especial, só deveria ser apertada caso soubesse que os americanos haviam decidido esquentar a guerra fria. Ele acredita que a máquina era uma espécie de avó do computador, em condições de comunicar dados por radar ou satélite.

 

Em Washington, não tinham contato com nenhum russo. Em uma construção abandonada, repleta de sucata, apanhavam periodicamente uma determinada pedra. Abriam-na em casa e recebiam as instruções. No bojo da mesma pedra, enviavam suas mensagens. Todas em um sistema de código muito parecido ao que inventei na prisão – descrito em meu livro “Diário de Fernando – nos cárceres da ditadura militar brasileira” (Rocco) - para remeter para fora denúncias embutidas em cartas que, lidas por quem desconhecia a chave, pareciam tratar de assuntos triviais.

 

As duas chaves utilizadas pelo casal eram: “Uma maçã por dia evita médico por toda a vida” e “Ninguém pode ser amigo de todos o tempo todo”. Na prisão, precisei passar para fora a mensagem “Jeová assassinado pela repressão de Brasília em Guaraí”. Militares do Distrito Federal haviam fuzilado, no interior de Goiás, o militante Jeová de Assis Gomes, que hoje figura entre os desaparecidos.

 

Se eu escrevesse a mensagem, certamente não passaria pela censura da prisão. Utilizei o sistema de chave numérica, no caso 5-8-4, e enviei este parágrafo na carta: “Deus bíblico é chamado Jeová, que pune o assassino e salva o assassinado, pois é assim pela mão divina, livre de repressão, que os Profetas, se vivos hoje, fariam de sua missão em Brasília a nova Babilônia infiel, em verdade hoje ameaçada pelo uivo faminto do guaraí”.

 

Ao grifar este parágrafo da carta na seqüência vocabular 5-8-4, o leitor identificou: “Deus bíblico é chamado Jeová, que pune o assassino e salva o assassinado, pois é assim pela mão divina, livre de repressão, que os profetas, se vivos hoje, fariam de sua missão em Brasília a nova Babilônia infiel em verdade hoje ameaçada pelo uivo faminto do guaraí”.

 

Um dia, preso pelo FBI, o casal soube que há sete anos era seguido. Em uma das viagens, por dezenas de agentes: um em uma moto, outro no caminhão, um terceiro dirigindo um carro esporte... O revezamento de veículos e motoristas os impedia de perceber o monitoramento do FBI.

 

Gilberto e Alicia escaparam de longos anos de prisão porque o advogado que apareceu para defendê-los, amigo do casal, ameaçou denunciar o FBI à corregedoria por transgredir, ao persegui-los, leis de vários estados. Propôs um acordo, logo aceito: Gilberto e Alicia, acompanhados dos filhos, e apenas com as roupas do corpo, foram deportados para o México no dia seguinte à prisão. O casal desconfia de que o advogado fazia parte da rede de espionagem soviética.

 

Hoje, a família vive em Cuernavaca e o casal dá aulas na universidade. Instei-os a publicarem sua história. Alicia não está convencida de que seja o momento.

 


Frei Betto é escritor, autor do romance policial “Hotel Brasil – o mistério das cabeças degoladas” (Rocco), entre outros livros. Página e Twitter do autor: http://www.freibetto.org - Twitter:@freibetto.


Copyright 2012 – FREI BETTO – Não é permitida a reprodução deste artigo em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização do autor. Se desejar, faça uma assinatura de todos os artigos do escritor. Contato – MHPAL – Agência Literária (Este endereço de email está sendo protegido de spambots. Você precisa do JavaScript ativado para vê-lo.)

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