Correio da Cidadania

Euforia com mega-eventos pode manter intactos retrocessos da era Teixeira

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Cerca de dois meses após a renúncia de Ricardo Teixeira da presidência da CBF, absolutamente nada no futebol brasileiro oferece sinais de mudança. Seu sucessor, José Maria Marin, entulho malufista e da ditadura, continua candidamente no cargo que parecia prestes a ser disputado em novas eleições, com o crescente beneplácito dos clubes, federações e governo federal.

 

Dessa forma, ficou até fácil para os asseclas de Teixeira, certamente em tom de gratidão, exaltarem o “legado” e o “brilhantismo” de sua gestão, que teria tornado o futebol brasileiro vencedor como nunca. Não faltaram exemplos da mídia, capitaneada pela Globo, ressaltando os títulos conquistados pela seleção em todas as categorias, e o esquecimento, nada inocente, das variadas formas de devastação que Teixeira e sua turma promoveram em nosso futebol.

 

Cabe, portanto, uma análise a respeito do que foram, de fato, os anos de Ricardo Teixeira à frente do futebol nacional e sua verdadeira herança.

 

O Ministério do Bom Senso adverte:

 

Antes que alguns precipitados saiam em defesa do que Romário definiu como “câncer extirpado”, é bom se ater a tais fatos, vide a subserviência com que certa parte da mídia tratou o cartola, inclusive em sua vexatória despedida através de carta lida por um “desconhecido” vice.

 

Em primeiro lugar, os atuais valores astronômicos que giram em torno da CBF e da camisa da seleção nacional não são nada mais que produto da valorização global adquirida pelo futebol a partir dos anos 90, tornado um grande e bilionário negócio em escala mundial. E nesse sentido, o Brasil ainda se encontra atrás de outros países, apesar de ser hoje a sexta economia do mundo e o propalado “país do futebol”.

 

Em segundo, quem trouxe e bancou a Copa do Mundo no Brasil foi o governo federal, cuja chancela foi fundamental para receber o voto de confiança da FIFA, que por sua vez tem escolhido somente países que permitem uma fácil ramificação de seus negócios – e também de seus parceiros. Além disso, a federação internacional estabeleceu, no fim dos anos 90, um rodízio de continentes para receber a Copa. Quando chegou a vez da América do Sul, o Brasil foi candidato único. E ainda a respeito do mundial, cabe lembrar que Teixeira garantiu que seria financiado pela iniciativa privada, algo que comprovadamente não acontecerá.

 

Em relação aos títulos da seleção, não passa de “apropriação indébita”, provavelmente a maior especialidade da figura cuja gestão distanciou como nunca a seleção brasileira de seus torcedores. Aceitou passivamente uma patética imposição da FIFA (em 2003), por pressão da UEFA (a Confederação Européia), de só realizar amistosos da seleção em território europeu (ou a 4 horas de distância de avião), o que caiu como uma luva em sua estratégia de terceirizar os jogos da seleção para uma empresa de marketing esportivo, que por sua vez se ocupa de “vendê-los” pelos mais lucrativos preços. Por isso a equipe canarinho acumulou dezenas de “clássicos” inexpressivos mundo afora, inclusive mantendo relações com os mais repugnantes governos.

 

Além do mais, jamais propiciou um ambiente de profissionalismo e organização nas federações e nos clubes, que passaram a maior parte desses anos acumulando dívidas estratosféricas e, mais diretamente, sendo roubados e degradados pelos mais diversos conluios de cartolas e empresários – assim como os estádios. Aliás, foi sob sua gestão que essa nova categoria surgiu com toda a força no futebol nacional, sem barreiras para atuação, o que levou ao assalto de inúmeras categorias de base. Acabou-se a velha Lei do Passe para que todo o poder fosse transferido aos empresários.

 

Dentro de tamanha desordem e insolvência financeira, não surpreende que as últimas gerações de jovens tenham se acostumado a assistir nossos melhores jogadores pela televisão, nas competições européias, nos mais diversos países e em clubes de todos os níveis. Em muitos casos, não há televisão que resolva, pois também mandamos enormes contingentes do nosso “pé-de-obra” para os países árabes, asiáticos, do leste europeu, dentre outros destinos que oferecem enorme comodidade estrutural e salários com os quais os clubes brasileiros não podem concorrer.

 

E a respeito da retórica estelionatária de que sua gestão trouxe incríveis 112 taças, de todas as categorias, incluindo as Copas de 94 e 2002, só nos resta o desprezo e aquele riso de canto de boca, de quem sabe que no futebol, especialmente o brasileiro, jamais se coloca na conta de dirigentes os títulos conquistados pelos jogadores. Um discurso francamente abusivo, pois jamais se viu Teixeira vivenciar e debater o futebol, de modo a demonstrar algum conhecimento que pudesse ser colocado na conta dos resultados da seleção, para bem ou para mal.

 

O futebol doméstico continuou parado no tempo, com um calendário extenuante e a eterna troca de favores com dirigentes de federações estaduais dando as cartas e mantendo tais competições com fórmulas caça-níqueis, desgastantes e cada vez piores tecnicamente. Já as divisões nacionais de acesso seguem ao relento, sendo absolutamente insuficientes para acomodar os cerca de 600 clubes profissionais que militam no país. Fora que as séries C e D são ainda muito precárias e desprestigiadas.

 

Com isso, privilegiam-se enormemente os grandes clubes, com um ano inteiro repleto de competições e jogos atraentes, o que obviamente os faz mais rentáveis, criando um grupo seleto de poucas dezenas, que basicamente são os times das séries A, e mais modestamente, B. A imensa maioria fica relegada a competições fracas e pouco úteis, ou simplesmente no ócio por meses, o que as impede de se sustentar com consistência e revelar novos jogadores.

 

Um tiro no peito do Norte/Nordeste

 

Na esteira de tamanho descaso com os clubes, por conta da excessiva atenção destinada aos negócios, não é de surpreender que as equipes das regiões Norte e Nordeste, e dos estados mais fracos em geral, sucumbissem aos tempos modernos. Descuidada a organização do futebol doméstico, por sua vez guiado pelos interesses particularistas da Rede Globo, é esperado que as equipes de segundo ou terceiro escalão também se vejam diante de dificuldades imensas.

 

Preocupada somente com audiência e retorno publicitário, a Vênus Platinada, grosso modo, só quer saber de Corinthians e Flamengo, o que relega equipes tradicionais e importantes, menos populares e de força mais regional, a papéis cada vez mais decorativos no cenário futebolístico, por vezes sequer servindo como formadoras de novos atletas, algo que em última instância prejudica todo o conjunto.

 

Contra a vontade da associação que congregava os clubes nordestinos, Teixeira e Globo extinguiram o Campeonato do Nordeste, competição que reunia os principais clubes da região e era um grande sucesso de renda e público, encerrado em 2002. O mesmo se deu com a Copa Norte, que mesmo de forma mais modesta também fortalecia alguns clubes da região.

 

Com esse fator, somado a uma distribuição cada vez mais elitizada do dinheiro e a eterna covardia dos dirigentes dos clubes, gente absolutamente do mesmo nível de Teixeira, talvez apenas com menos habilidades, o século 21 marcou o início da marginalização dos times dessas regiões, cuja distância para os grandes do Sudeste/Sul não parou de crescer.

 

Mesmo algumas potências campeãs nacionais como o Bahia e o Sport sofrem para se manter na primeira divisão, que dirá a respeito de ter grandes equipes por longo período, como se via antigamente. Hoje em dia, a principal divisão nacional abriga poucos clubes nordestinos, que via de regra lutam apenas pela permanência, jamais pelas primeiras posições.

 

Ao Norte, potências regionais como Remo e Paysandu não conseguem lugar sequer na segunda divisão, mesmo possuindo admiráveis massas torcedoras. Já os amazonenses, a despeito de sediarem a Copa, têm um futebol que mal pode ser chamado de profissional, sendo que seu campeonato amador supera o ‘oficial’ em popularidade.

 

O mesmo vale para o Centro-Oeste, com exceção de Goiás. Mas as sedes da região na Copa serão os novos estádios a serem erguidos em Cuiabá e Brasília. O belo e prontíssimo Serra Dourada não tem vez nessa grande onda de negócios em torno dos estádios/shoppings.

 

Como se não bastasse, um dos últimos atos de Teixeira foi ajudar a implodir a negociação coletiva dos clubes com a televisão pela transmissão do Campeonato Brasileiro, evitando a concorrência exigida pelo Cade e favorecendo descaradamente a Rede Globo, que mais uma vez levou a melhor rasgando as regras do jogo e usando seu cacife de emissora oficial da República.

 

Com isso, as agremiações partiram para negociações individuais, o que tende a mostrar efeitos nefastos para o futebol nacional até no curto prazo, uma vez que as equipes mais populares e com mais “força de mercado” assinaram contratos por valores incomparáveis. Isso certamente aumentará o abismo entre os times grandes e pequenos no país. Portanto, outra punhalada nos clubes do Norte/Nordeste, que, a depender das medições de mercado, sempre estarão (muito) atrás.

 

Um legado... para os amigos

 

Diante do apanhado, fica notório que Ricardo Teixeira não passou de mero balconista do mundo do futebol, isso na chamada era da globalização, isto é, no momento em que o esporte, como tudo na vida, se mercantilizou como nunca, trazendo diversos negócios associados e entes outrora estranhos interessados em investir. Sequer, portanto, pode ser chamado de visionário ou qualquer coisa que o valha.

 

Sua postura pessoal diante da imprensa e do público torcedor sempre foi marcada pela arrogância e triunfalismo nos momentos de vitórias, dentro ou fora de campo. Por outro lado, sempre agiu como rato nos momentos negativos ou de questionamentos, desaparecendo completamente do radar.

 

Tampouco utilizou as fortunas angariadas pela seleção brasileira no sentido de fomentar o futebol país afora, especialmente nos locais com menos recursos. Preferiu comprar jatinhos e financiar campanhas políticas de aliados, entre outros investimentos obscuros.

 

Jamais dialogou ou respeitou torcedores, sendo presença inexistente nos estádios e grandes jogos dos torneios nacionais, e nunca se importou com as condições de conforto e respeito aos jogadores e freqüentadores desses locais que agora passam por um claríssimo processo de higienização e elitização.

 

Pois, no que depender de gente como Teixeira, o futebol tem mais é que se tornar um espetáculo para quem pode pagar, de preferência cada vez mais, sem que haja problemas na substituição do torcedor pelo consumidor nas arquibancadas. Aliás, arquibancadas e gerais podem sumir e dar lugar somente às chamadas numeradas e seu seleto público abastado e passivo.

 

O governo, por sua parte, apesar de financiar Copas do Mundo e dívidas gigantescas desses clubes, nada faz, contentando-se em limá-lo do cargo, em nome dos fortes apelos públicos, e escrever mais uma página farsesca de sua “faxina contra a corrupção”, sem qualquer conteúdo político de fundo e propostas realmente renovadoras. Como dito em análise anterior, não passa de uma rápida aparada de arestas a fim de tornar todas as maracutaias vindouras mais discretas e palatáveis, pois, diante dos mega-negócios que se avizinham, um personagem como Teixeira só tinha a atrapalhar.

 

Teixeira foi pra bem longe, mas se o país se recusa a adentrar a maioridade política, administrativa e moral, não será o futebol, mero reflexo geral, a tomar a iniciativa. Por aqui isso está claro. E que venha a Copa e seus ilusionismos, sob a batuta da mesma CBF de sempre.

 

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Saída de Ricardo Teixeira da CBF não promete mudanças nem no futebol, nem na Copa

 

Gabriel Brito é jornalista do Correio da Cidadania.

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