Correio da Cidadania

Realidade e Farisaísmo

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A atual e aparente queda de braço entre o governo e os bancos deve ser mais bem entendida, antes de qualquer precipitada conclusão, conforme já alertei em artigo anterior.

 

O último, ou melhor, penúltimo capítulo dessa história foi a anunciada mudança nas regras de remuneração das cadernetas de poupança. O governo apresentou a iniciativa como uma necessidade para a garantia do processo de continuidade de redução da taxa básica de juros, a taxa Selic.

 

Com a queda da taxa Selic, os fundos de renda fixa – que são lastreados majoritariamente pelo rendimento dos títulos públicos – tenderiam a perder competitividade em relação à remuneração das cadernetas. Os títulos públicos, dentro desse raciocínio, renderiam menos, por conta da redução da taxa Selic, e por conseqüência os fundos passariam a pagar menos aos seus aplicadores. Os aplicadores em fundos pagam, também, taxas de administração aos bancos que os gerenciam (em geral, muito elevadas), além da tributação do imposto de renda, o que acabaria por tornar o rendimento da poupança, isento de imposto de renda, mais atrativo do que dos fundos. A cobrança do imposto de renda em relação aos títulos públicos é isenta apenas aos fundos de investimento estrangeiros, o que já é uma aberração.

 

A fuga de capitais dos fundos para as cadernetas, por sua vez, não interessa ao governo, pois é através dos fundos que os bancos captam recursos que são aplicados, em sua maior parte, em títulos públicos, fundamentais para a rolagem da dívida pública.

 

Contudo, o mais curioso é que essa versão da história é apenas uma meia verdade. A Campanha Auditoria Cidadã da Dívida Externa, em seu boletim diário de acompanhamento das notícias veiculadas pela mídia dominante, em sua versão do último dia 4 de maio, nos informa que “no dia 3/5/2012, por exemplo, o governo emitiu R$ 1,5 bilhão em títulos, pagando aos rentistas taxa de 10,7% ao ano, taxa esta que somente cai quando o governo reduz drasticamente o prazo de pagamento de tais títulos, conforme se pode ver na tabela da própria Secretaria do Tesouro Nacional”. O citado boletim lembra, também, que “segundo o último dado da Secretaria do Tesouro Nacional, dos R$ 29 bilhões de títulos da dívida interna emitidos em março pelo Tesouro, apenas R$1,8 bilhão foram indexados à Taxa Selic”. Além disso, “apenas 27,52% do estoque da Dívida Interna sob responsabilidade do Tesouro estavam indexados à Selic, com o custo médio da Dívida Interna sob responsabilidade do Tesouro Nacional sendo de 11,47%, bem mais que a Taxa Selic” (vide www.auditoriacidada.org.br)

 

Em suma: a vinculação da remuneração dos títulos públicos à taxa Selic é hoje uma realidade para menos de 30% dos títulos emitidos pelo Tesouro, e as taxas que vêm sendo oferecidas aos credores da dívida interna mobiliária, nos chamados títulos pré-fixados, excedem à atual taxa Selic, de 9% ao ano.

 

Em todo o caso, a mudança decretada para o cálculo dos rendimentos das cadernetas somente será aplicada, caso a taxa Selic chegue a 8,5% ao ano ou menos do que isso, nas novas cadernetas abertas ou para os novos depósitos realizados, a partir do dia 4 de maio. Com a Selic fora dessa faixa ou para as contas de cadernetas já existentes, a remuneração continua a ser de 0,5% ao mês, mais a variação da TR – Taxa de Referência, calculada pelo Banco Central.

 

Com isso, o governo tenta capitalizar a medida, destacando o “respeito aos contratos” e procurando assegurar que os poupadores da caderneta não sairão perdendo.

 

E para não esquecer o fio da meada do último capítulo dessa história, os analistas do mercado financeiro já voltam a manifestar preocupações com o ritmo da inflação e os seus riscos à estabilidade econômica. A depender dessa turma, as novas regras de remuneração da poupança não terão oportunidade de ser aplicadas, pois, como sabemos, para ela somente a elevação da taxa Selic é eficaz para se combaterem eventuais elevações de preços em uma economia.

 

Nesse aspecto, o grande problema a ser considerado, levando-se em conta que a maioria da clientela desse tipo de aplicação se constitui de pessoas de menor renda, assalariados ou trabalhadores em condições de fazer alguma poupança, é o modelo de economia – e de país – que continuamos a construir, sob a hegemonia dos bancos e das transnacionais.

 

Com o crescimento do emprego e da renda dos segmentos mais pobres, observado nos últimos anos, há um enorme espaço de propaganda positiva para esse modelo, iniciado nos anos 1990, mas de aparente sucesso apenas no período a partir de 2003. De lá para cá, as raízes do modelo periférico-liberal se aprofundaram.

 

Avançamos nas aberturas financeira, comercial, produtiva e tecnológica, com acentuada perda de soberania em áreas vitais para o planejamento do nosso futuro. A desnacionalização da economia e o grau de concentração dos negócios são gritantes; a deterioração dos serviços públicos essenciais à população é absurda. Privatizações, fraudulentas e perniciosas ao país, não somente não foram revistas, como continuam a avançar. E a desmoralização e descrença da população com o instrumento da política, como ferramenta para um mundo melhor, é evidente.

 

Contudo, para muitos vivemos uma espécie de aurora de novos tempos. A população, bombardeada por meios de comunicação de massa que procuram difundir os supostos acertos da política econômica, parece não perceber que as dificuldades do seu dia-a-dia são crescentes. De alguma forma, o acesso aos crediários com altas taxas de juros e a possibilidade de comprar bens de consumo a prestações criou uma espécie de amortecedor contra as evidentes contradições vividas. Os centros comerciais – os shoppings – e suas instalações parecem substituir escolas de qualidade, centros de saúde adequados, transportes decentes.

 

As lideranças políticas procuram também estimular a ilusão. Recentemente, em solenidade no Rio de Janeiro, onde Lula foi agraciado com o título de doutor honoris causa, por cinco diferentes universidades públicas do estado, ao abordar um dos maiores problemas urbanos que temos vivido – a falência dos transportes públicos e as dificuldades de mobilidade nos grandes centros –, o ex-presidente afirmou que é o sonho de todo trabalhador ter o seu carro próprio, poder passear com sua família e se divertir. Disso ninguém pode discordar. Outra coisa é admitir como plausível, ou inevitável, um modelo de cidade onde o trabalhador gaste quatro, cinco ou seis horas do dia para o seu deslocamento de casa para o trabalho e do trabalho para a casa.

 

Ou seja: uma liderança como Lula, político projetado pela esquerda e com origem popular, contundente crítico do modelo dos bancos até a sua chegada à presidência da República, não se constrange em jogar para a platéia e apostar em um nível atrasado de consciência, para poder se manter em evidência.

 

Nesta mesma solenidade, contudo, as fraturas do falso modelo exitoso de governo, inaugurado a partir de 2003, se mostraram em diversos momentos. Logo no seu início, com a atriz Camila Pitanga cobrando da presidente Dilma o veto ao Código Florestal, recém aprovado pelo Congresso, pela própria base governista.

 

Ou na fala do reitor da UFF, ao reivindicar reajustes salariais para os professores universitários e também a destinação de verbas equivalentes a 10% do PIB para o Plano Nacional de Educação. Ou mesmo no patético esforço de Lula para defender e elogiar Sergio Cabral Filho, o corrupto e desmoralizado governador do Rio, além de seu aliado.

 

A realidade, portanto, teima em se mostrar, mesmo em ocasiões onde o farisaísmo se manifesta e o baixo nível de consciência e responsabilidade com o nosso futuro se mostram sem pudores.

 

Paulo Passarinho é economista e apresentador do programa de rádio Faixa Livre.

Comentários   

0 #1 Ogoveno não precisa de emitir títulos para se financiarRicardo Lopes 13-05-2012 07:38
Concordo com tudo o que foi observado por você Paulo Passarinho. Com o acréscimo de que nenhum governo que possua o poder de emissão monetária, precisa de emitir títulos para se finaciar. Para isso, basta que se emita moeda. E esta não será inflacionária,a menos que se chegue próximo do pleno emprego (considerando um desemprego residual).
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