Correio da Cidadania

Depois do pós-neoliberalismo: um socialismo com características latino-americanas?

0
0
0
s2sdefault

 

O ciclo hegemônico neoliberal do capitalismo, que começou nos anos 1970, agora está em todo o mundo, no mínimo, capengando.

 

Podemos dizer que o “neoliberalismo realmente existente” começou a tomar maiores desdobramentos com o fim do sistema de Bretton Woods, na crise dos anos 1970, com a liberalização e desregulamentação dos mercados financeiros, os ataques ao papel intervencionista do Estado na formação de preços e políticas de privatização e flexibilização das relações de trabalho.

 

Além disso, as políticas neoliberais compreendiam a financeirização das corporações e a especulação financeira como elementos importantes na maximização dos lucros, e a segmentação dos elos das cadeias produtivas das corporações e sua re-localização em países e regiões que oferecessem melhores condições de mão-de-obra barata, infra-estrutura menos onerosa e estabilidade política e social. Nesse período a ortodoxia neoliberal passou a dominar as instituições financeiras internacionais, como o FMI e o Banco Mundial, tornando-se os principais agentes na promoção das políticas de “ajustes estruturais”.

 

Já no final da década de 1980 a “onda neoliberal” parecia perder o ímpeto, em razão de sua incapacidade de transformar as conquistas iniciais na consecução de seu principal objetivo programático: promover uma reanimação do capitalismo avançado mundial. Com o fim da URSS e o colapso do socialismo real o neoliberalismo ganhou um novo respiro, com uma possibilidade de expansão única num período de “fim da história” em que “não há alternativa”. Sua ideologia se disseminou: a vitória do Ocidente na guerra fria, com o fim da URSS, não foi o triunfo de qualquer capitalismo, mas do “capitalismo neoliberal”.

 

Neste momento o neoliberalismo encontrou uma conjuntura social tão favorável que lhe foi permitido espalhar-se rapidamente por todas as regiões (e quase todos os países) do mundo: além de reafirmar sua hegemonia nos países capitalistas avançados, tomou de assalto o Leste Europeu, a América Latina, África e parte da Ásia. Foi precisamente neste período que ocorreu a consolidação do neoliberalismo, a vitória do pensamento neoliberal no plano político-ideológico.

 

Na década de 1990, os países latino-americanos, em sua grande maioria, adotaram práticas de cunho neoliberal em seus sistemas sócio-econômicos, políticos e ideológicos. Além do Chile, Bolívia, México, Argentina e Venezuela, países pioneiros na implantação do regime, o neoliberalismo surgiu no Brasil em momento crítico à política nacional-desenvolvimentista. Após a crise da dívida, diversas tentativas de estabilização inflacionária, fracassos dos planos econômicos, o projeto neoliberal foi ganhando espaço político no país. No Brasil, o neoliberalismo nasceu associado à abertura econômica e à democratização, culminando com a derrota do protecionismo e com a diminuição dos direitos trabalhistas provenientes do populismo. As orientações neoliberais foram acolhidas por amplos setores da sociedade brasileira, de governantes e empresários a lideranças do movimento popular e sindical, além de intelectuais. Embora desde a década de 1980 as medidas neoliberais tenham sido aplicadas no Brasil, a ofensiva maior ocorreu durante o governo de Fernando Henrique Cardoso.

 

Na América Latina, o século XXI começou com um período de prolongada instabilidade frente ao esgotamento do neoliberalismo e as dificuldades de construção de projetos alternativos. O ciclo de crises regionais, da crise mexicana de 1994, brasileira em 1999 e argentina em 2000, configuraram a ampla crise ideológica do neoliberalismo – diferentemente do que está ocorrendo agora na Europa.

 

A expansão descontrolada do neoliberalismo na América Latina precipitou rapidamente sua crise de legitimação pela desregulamentação dos mercados de trabalho, entreguismo e privatização generalizada de setores estratégicos da economia nacional, ataques aos movimentos sociais combativos e sucateamento estatal.

 

Da crise de legitimidade prematura do neoliberalismo periférico latino-americano abriram-se diversos espaços de disputa política para a construção de alternativas “pós-neoliberais”.

 

Para Emir Sader, existem duas vertentes do campo pós-neoliberal na América Latina: Brasil, Argentina, Uruguai por um lado, e Venezuela, Bolívia e Equador por outro. Na primeira existiriam governos anti-neoliberais, cujas políticas buscam a superação desse modelo; na segunda existiriam governos também com a pretensão de ser anticapitalista. Para ambas vertentes, o principal eixo político da América Latina seria o enfrentamento entre o neoliberalismo e o pós-neoliberalismo. Comentando este processo a partir do Brasil, Sader escreve:

 

“Sem uma estratégia pré-definida, Lula buscou avançar pelas linhas de menor resistência. Centrou seu governo em dois eixos fundamentais, que o diferenciou dos governos neoliberais e o aproximou dos novos governos latino-americanos. Eixos que representam os elos mais frágeis do neoliberalismo: a prioridade das políticas sociais ao invés da do ajuste fiscal e a prioridade dos processos de integração regional em lugar dos Tratados de Livre Comércio com os Estados Unidos. São essas as duas características comuns aos governos latino-americanos que podemos caracterizar como pós-neoliberais. É o caso da Venezuela, do Brasil, da Argentina, do Uruguai, da Bolívia e do Equador, que em seu conjunto mudaram a fisionomia do continente e se constituem no único núcleo regional atual de resistência ao neoliberalismo”.

 

Atualmente existem governos pós-neoliberais na maioria dos países sul-americanos e nos países centro-americanos. Portanto, por mais que o neoliberalismo permaneça hegemônico em grandes partes do mundo, o pós-neoliberalismo já apresenta amostras em alguns países latino-americanos, seja pelo viés do pós-neoliberalismo lulista ou pelo viés (ainda incipiente) anticapitalista.

 

No caso de Venezuela, Bolívia e Equador, esses governos, em maior ou menor grau, optaram por políticas de confronto explícito com o ideário e os agentes neoliberais, colocando em marcha políticas de caráter anti-neoliberal e politizando setores que eram excluídos da cena política, incentivando amplos processos de transformação social. Essa experiência, assim como todas da humanidade, não está livre de contradições. O “pós-neoliberalismo bolivariano” executado na Venezuela, por exemplo, depende do lucro do

comércio do petróleo para o financiamento do Estado, conferindo à economia do país um elevado grau de volatilidade, devido às flutuações do mercado internacional. Por não haver diversificação do aparelho produtivo nacional, o país continua refém das oscilações do preço do petróleo para a efetivação dos programas sociais. Entretanto, o “pós-neoliberalismo bolivariano” é marcado pela intervenção estatal na politização e mobilização das favelas, organizando unidades militares, incentivando a organização política nas bases da sociedade, diferentemente do “pós-neoliberalismo lulista” que amplia o descrédito do espaço político e cultural, considerando o desenvolvimento do capitalismo como foco principal no desenvolvimento da América Latina.

 

No caso do Brasil, o governo pós-neoliberal seria capaz de dar o salto estratégico para aumentar o controle dos capitalistas e do mercado impulsionando novas polarizações políticas, sociais e culturais rumo ao encontro com um novo horizonte latino-americano? Afinal, é compatível articular estas transformações sem fazer mudanças que limitem o poder dos capitalistas e da “canalha ilustre” do Estado, mantendo a dívida da “governabilidade de coalizão”? Haveria disposição política de fazer isso e colocar em jogo a conciliação de classes existente para impulsionar tal tipo de reformas pós-neoliberais? Teriam os governos de centro-esquerda na região capacidade de enfrentar os monopólios e oligopólios capitalistas e dar um salto estratégico do pós-neoliberalismo ao socialismo?

 

Se for correto utilizar o termo “pós-neoliberalismo” para as experiências dos novos governos progressistas que subiram ao poder principalmente pelo vazio político constituído pelo esgotamento social da hegemonia neoliberal, é decisivo encontrar os limites e contradições destas experiências. Minimizar tais contradições é um profundo erro político, um verdadeiro desvio na articulação de um projeto de emancipação popular.

 

Estes complexos processos pós-neoliberais, que ainda necessitam demonstrar porque podem ser alternativas reais considerando as possíveis formas de regresso do neoliberalismo, não devem ser confundidos com uma transição pós-capitalista.

 

Nossa pergunta é: quando vamos conseguir tocar na questão de fundo de qualquer transformação pós-capitalista, no caso, os meios de produção?

 

Em nosso momento, é urgente colocar na ordem do dia um caminho de desenvolvimento que não seja exclusivamente capitalista para o pós-neoliberalismo, uma transição que afete as estruturas oligárquicas e que avance na criação de formas de propriedade que possam se transformar em formas socialistas.

 

Um projeto do pós-neoliberalismo ao socialismo depende de potencializar a descentralização e a autonomia das empresas e unidades produtivas e, ao mesmo tempo, que faça possível a efetiva coordenação das grandes orientações da política econômica. Um socialismo que promova diversas formas de propriedade social, desde empresas cooperativas até empresas estatais e associações destas com capitais privados, passando por um amplo leque de formas intermediárias nas quais trabalhadores, consumidores e técnicos estatais se combinem de diversas formas para engendrar novas relações de propriedade sujeitas ao controle popular, sem confundir propriedade pública com propriedade estatal.

 

A dinâmica das diversas formas de propriedade num processo de transição socialista deve deixar claro que a propriedade privada não seria o fator determinante numa economia de mercado predominantemente socializada.

 

Para lidar com o mercado se impõe um nível de planejamento mais flexível, mas que delimita progressivamente o comportamento do setor privado na economia pela modernização da propriedade estatal e cooperativa. O Socialismo de Mercado, assim, não é para o mercado manter suas relações caóticas e anárquicas, mas para utilizar os mecanismos dos mercados numa melhor alocação dos recursos e estimular a competição entre os capitais, visando alcançar os limites do capitalismo junto com uma transição socialista que prevê o controle da reprodução social pelos produtores associados de diversas formas que se sustentem reciprocamente. O objetivo é uma transição em que o capital se oponha a este processo com uma posição historicamente retrógrada e insustentável devido ao dinamismo das propriedades públicas, estatais e não estatais, com um sistema orgânico entre produção e distribuição, descentralização do poder político e radical transgressão da divisão social hierárquica do trabalho.

 

Esse “socialismo de mercado com características latino-americanas” seria uma forma de superar o neoliberalismo aprofundando a coexistência de formas de propriedade estatal, pública não-estatal, cooperativas, empreendimentos de economia solidária e de propriedade privada com diversos mecanismos de controle dos trabalhadores, consumidores e técnicos, descentralizando os poderes de decisão e a produção/circulação de conhecimentos de forma material e imaterial. Superar a antinomia falsa entre planificação socialista e o mercado faz parte deste processo de transição, ainda mais quando os objetos veiculados pelo mercado são materiais e imateriais. Qualquer socialismo de mercado depende de ampla e complexa planificação. Um socialismo de mercado não é uma convivência pacífica com o mercado dominado pelo capitalismo. Não devemos confundir mais capitalismo ou “livre iniciativa” com mercado.

 

Qualquer socialismo demanda formas de controle dos elementos que produzem o mercado. Devemos mostrar que é possível um mercado sem a dominação da propriedade privada. Claro que um dos objetivos do socialismo é suprimir o mercado, mas isso não se dará de maneira imediata por decreto, estatização total ou isolamento num só país, mas pelas próprias contradições do mercado mundial. É a partir daí que podemos buscar elementos mínimos para elaborar o projeto de um socialismo com características latino-americanas que, felizmente, ainda está trilhando apenas seus primeiros passos. Obviamente, não se trata de um experimento simples.

 

Fernando Marcelino é economista.

0
0
0
s2sdefault