Correio da Cidadania

2012: aprofundamento da crise acirra tendências conservadoras e autoritárias

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Se 2011 chegou ao final com muita história pra contar, com seus diversos acontecimentos marcantes, simbólicos e, ao mesmo tempo, paradoxais,  nos planos nacional e internacional – conforme diagnosticado pela edição retrospectiva deste Correio -, 2012 começa com mais uma encruzilhada histórica.


Por um lado, tudo parece indicar que esteja a caminho o famoso‘mais do mesmo’- pior até, uma intensificação do mesmo. A crise econômica internacional, que voltou a mostrar sua força em 2011 a partir do velho continente, já trouxe indícios suficientes de que, “como assistimos na Grécia, na Itália, em Portugal, na Espanha, na Inglaterra, a representação democrático-burguesa tradicional já começa a ser crescentemente substituída pelo governo das instituições centrais do grande capital: FMI, Banco Mundial, Banco Central Europeu, OTAN etc. (...) com a institucionalização de governança do grande capital sobre os Estados nacionais europeus, de perfil ainda não claro, a ser construída sobre a submissão das classes trabalhadoras e populares”.


Este é o entendimento de nosso entrevistado especial para esta edição prospectiva, o historiador Mário Maestri. A despeito de enxergar um avanço nas resistências iraquiana e afegã, na medida em que quebraram o consenso imperialista em torno dos EUA, o historiador não vê de modo entusiástico a ebulição social que se espalha pelo mundo desde a ‘primavera árabe’, passando pelo Ocupe Wall Street, no coração do Império. As manifestações surgem em um momento de evidente refluxo do mundo do trabalho. Majoritariamente apolíticas e apartidárias, não apresentam condições mínimas para esboçarem um projeto de solução da crise que passe pelo questionamento efetivo das dívidas soberanas e das exigências do grande capital em detrimento de direitos sociais básicos. “Na falta de direção operária, as revoluções vivem a ameaça de ver os parcos ganhos democráticos sumirem no ralo da estabilização eleitoral, com o apoio da população ao radicalismo religioso (...) A bestial intervenção imperialista na Líbia foi um salto de qualidade no restabelecimento do controle imperialista naquela região em conflagração”, adverte Maestri.


No plano interno, o olhar de Maestri tampouco contemporiza com o atual governo de Dilma, que, nesse primeiro ano, gestionou o país sob as rédeas do grande capital. Paradigmática desta gestão foi, segundo Maestri, a condução da política externa, com uma “submissão voluntária” a partir do apoio ao movimento de isolamento da Líbia, Síria, Irã e também Venezuela. Para o historiador, “definitivamente, somos um país eternamente condenado a termos saudades do passado, mesmo quando ele se mostrou pouco generoso! Quem diria que estranharíamos a falta do Amorim, substituído por um patriota da velha escola do que ‘é bom pros USA é bom pro Brasil!’”.


Tomando-se a lógica de funcionamento e avanço irrefreável da contra-revolução neoliberal, a partir dos anos 80, não há, infelizmente, como tomar todo este entendimento como catastrofista.  Trata-se, antes de tudo, de análise amparada em avaliação sem os filtros ingênuos ou tendenciosos com que somos confrontados pelo sistema dominante de comunicação, intrincado que está aos interesses de grupos econômicos para os quais não interessa o questionamento do status quo.


Por outro lado, é o próprio Maestri quem destaca, há alguma luz no fim do túnel. Se se abrirem oportunidades para que lutas e mobilizações nacionais ligadas ao mundo do trabalho se internacionalizem, subjetiva e objetivamente, poderão apontar para o caminho a ser trilhado.


Correio da Cidadania: Em fins de 2010, você previu a radicalização do “confisco de conquistas e direitos”, impulsionado quando da “contra-revolução neoliberal”, na “Irlanda, Grécia, Espanha, Portugal, Inglaterra, Itália”, e uma provável “segunda onda recessiva”, com “governos nacionais agora incapazes de financiar novas medidas anticíclicas”. Qual sua visão sobre o desdobramento da presente crise?

 

Mario Maestri: Havia anos em que o capitalismo expandia sua produtividade e deprimia a remuneração do trabalho, superando artificialmente o subconsumo estrutural que produzia com a renda fictícia propiciada por gastos bélicos, pela dívida pública, pelo endividamento familiar etc. Em 2007/08, o acerto de contas iniciou-se nos Estados Unidos pelos empréstimos hipotecários, afundando o mundo, em forma desigual, na recessão.

 

Sob a escusa de relançar o consumo, os governos centrais endividaram-se para irrigar os bancos quebrados, salvando o incendiário e despreocupando-se com a casa e com os moradores em chamas. O capital financeiro tirou suas castanhas do fogo enquanto agravava-se o subconsumo, devido à queda do emprego e dos salários, fortalecido pela recessão e pela frágil retomada da economia.

 

A crise iniciada em 2007/08 foi apenas postergada e potenciada, já que os gerentes do capital não queriam e não podiam tomar medidas estruturais, ou seja, contra a própria lógica da acumulação do capital. Em 2010, o novo acerto de contas partiu da rubrica débito público, inflado pelas taxas de juro crescentes exigidas pelo capital financeiro mundial. O movimento partiu da periferia do mundo capitalista adiantado – Grécia, Portugal, Espanha – para o assalto de seu núcleo duro – Itália, França, Inglaterra etc.

 

Então, pretensamente para pagar as dívidas soberanas, impôs-se hemorragia da renda nacional, através de cortes dos gastos sociais e das pensões, aumentos dos impostos, privatizações dos bens públicos, desemprego na esfera estatal. Como comprova a Grécia, a política de terra arrasada aumenta o desemprego, diminui os impostos recolhidos pelo Estado, deprime o consumo, fomenta a recessão etc. O resultado é que o déficit público e a dívida soberana aumentam, em vez de recuar.

 

Porém, não se trata de política irresponsável ou ação inconseqüente. Servindo-se da presente crise estrutural, o grande capital impõe o consenso e radicaliza o processo – avançado quando da vitória mundial da contra-revolução neoliberal, em fins de 1980 – de absorção da renda pública e dos bens sociais, de super-exploração do trabalho, de corte dos direitos sociais, de restauração plena das práticas colonialistas.

 

Essa reformulação das condições gerais de trabalho e de existência da população, na busca da retomada da taxa média de lucro, pretende consolidar-se através da transformação dos trabalhadores em uma nova classe de escravos modernos – salários ínfimos, fim de direitos sociais, de pensões efetivas, de saúde e de educação pública. É bom lembrar que se prometeu, com tais medidas, era de progresso incessante da economia capitalista!

 

Esse programa exige reformulação política radical, mesmo em relação ao mundo avançado. Não é possível submeter a uma situação despótica uma enorme parcela da população nacional e chamá-la, periodicamente, para consulta política sobre seus destinos, mesmo sob crescente controle. O programa de reestruturação da ordem social no coração do capitalismo exige igualmente refundação da ordem política, em sentido crescentemente autoritário.

 

Como assistimos na Grécia, na Itália, em Portugal, na Espanha, na Inglaterra, a representação democrático-burguesa tradicional já começa a ser crescentemente substituída pelo governo das instituições centrais do grande capital: FMI, Banco Mundial, Banco Central Europeu, OTAN etc. Em nome do grande capital alemão e francês, Merkel e Sarkozy apontam para a institucionalização de governança do grande capital sobre os Estados nacionais europeus, de perfil ainda não claro, a ser construída sobre a submissão das classes trabalhadoras e populares.

 

A descrença de enormes parcelas da população européia, enojada com a política, com os políticos e com os partidos, facilita certamente essa reestruturação.

 

Correio da Cidadania: Na visão do sociólogo Ricardo Antunes, 2011 foi o ano de ‘ebulição social’ esperançosa, dos movimentos de mundiais que vão da “primavera árabe” ao Ocupe Wall Street, no coração do Império. Esses movimentos são revolucionários e socialistas?

Mario Maestri: A humanidade vive certamente a mais grave crise de sua história, com a barbárie já se instalando gostosamente entre nós. Apesar de apenas o mundo do trabalho poder interromper essa queda livre, a talvez principal característica de 2011 foi o silêncio político em que os trabalhadores ainda se mantêm, mesmo promovendo fortes mobilizações sindicais em algumas regiões e épocas – Grécia, Portugal, Inglaterra, Egito etc.

 

A vitória histórica da contra-revolução neoliberal deprimiu violentamente a crença do mundo do trabalho em seu programa socialista e revolucionário. Na Espanha, a grande resposta ao massacre social em curso foi a indignação, quase moral, de desempregados, de estudantes, de intelectuais, sob o silêncio político quase total dos trabalhadores e das suas organizações sindicais!

 

Na Espanha, em Portugal, nos Estados Unidos, os indignados empantanam-se em apoliticismo e apartidarismo tão compreensível quanto nefasto. Como foi dito, a indignação contribuiu para que a praça Puerta del Sol ganhasse a abstenção e o PP (direita) as eleições! Também em Portugal e Grécia, após prestarem os melhores serviços ao capital, os socialistas entregaram o governo, total ou parcialmente, para que os conservadores sigam o massacre nacional e social!

 

Em Portugal, Espanha, Itália e outros sequer foi levantado esboço geral efetivo, desde o mundo do trabalho, para a solução da crise, através da rejeição à dívida soberana, estatização dos bancos, do sistema financeiro, das grandes empresas; substituição da Europa do capital pela Europa dos trabalhadores e dos povos. Os grandes sindicatos europeus acabam de referendar as medidas em aplicação, exigindo apenas mais sensibilidade social e respeito aos privilégios da burocracia! De certo modo, apenas o pequeno partido comunista grego, fogueado pelas lutas heróicas dos trabalhadores daquele país, inicia movimento apontando para a necessidade da superação estrutural da ordem capitalista.

 

Correio da Cidadania: Mas a chamada Primavera árabe não foi um enorme avanço?

 

Mario Maestri: Sobretudo na Tunísia e no Egito, o movimento revolucionário – contra as ditaduras e por melhores condições de existência – expressou a tensão insustentável de sociedades já frágeis submetidas às duras políticas neoliberais – privatizações, cortes dos subsídios, arrocho salarial, desemprego generalizado, principalmente de jovens. Especialmente no Egito, os trabalhadores desempenharam e desempenham ainda papel fulcral na revolução, sem jamais, porém, hegemonizá-la.

 

Na falta de direção operária, as revoluções vivem a ameaça de ver os parcos ganhos democráticos sumirem no ralo da estabilização eleitoral, com o apoio da população ao radicalismo religioso, expressão alienada e conservadora do radicalismo social com que sonham – igualitarismo, fraternidade etc. Com a legitimação de eleições democráticas, novas direções burguesas fundamentalistas restabelecerão e já restabelecem novas formas de submissão ao imperialismo.

 

A bestial intervenção imperialista na Líbia foi um salto de qualidade no restabelecimento do controle imperialista naquela região em conflagração. Expressa as dificuldades que vivemos o fato de que aquela intervenção tenha se dado sob silêncio das massas populares árabes e com a adesão de praticamente quase todas as ditas organizações de esquerda e de esquerda revolucionária ocidentais, inebriadas com a hipocrisia bélica democrático-humanitária do imperialismo, de se estar afastando um ditador e não intervindo na autonomia nacional líbia.

 

A intervenção na Líbia procura demonstrar didaticamente que o imperialismo pode arrasar, militarmente, o país árabe que quiser, quando quiser. E ela facilita a construção de uma enorme base de intervenção imperialista nessa região, para equilibrar a nova situação do Egito, do Iraque e eventualmente outras. Nesse momento, a pressão se concentra, sobretudo, na Síria, o atual elo frágil, e no Irã. Submeter plenamente esses dois países e também acabar com a resistência palestina seria uma fácil operação, exigindo “apenas” algumas dezenas de milhares de mortos.

 

Entretanto, não podemos e não devemos cair na crença de um super-imperialismo que tudo pode e tudo faz. As resistências nacionais iraquiana e afegã foram uma das razões da dificuldade econômica atual dos Estados Unidos, obrigados, agora, a se retirarem, totalmente, do Iraque, após longos anos de intervenção e de ocupação militar. Indiscutivelmente, uma derrota atualmente de difícil avaliação, que explica, também, a necessidade de estabelecer a Líbia como plataforma médio-oriental do imperialismo.

 

É inegável o avanço que constituiu a quebra do consenso ideológico imperialista nos USA, com movimento que denuncia centralmente o domínio da sociedade por uma minoria. Mas também no ainda umbigo do mundo os trabalhadores seguem silenciosos, mesmo observando com indiscutível simpatia a contestação, enquanto a combatiam ferrenhamente quando da crise de 1970.

 

Correio da Cidadania: Partindo para o âmbito interno, qual seu balanço da gestão de Dilma Rousseff, primeira mulher presidenta do Brasil?

 

Mario Maestri: Dilma Rousseff prosseguiu, nesse primeiro ano, a gestão do país de acordo com as necessidades do grande capital, promovida pelo senhor Lula da Silva, nas suas duas administrações. Nesse ano, apesar do céu ainda relativamente sereno para os padrões brasileiros, Dilma Rousseff já registrou a sua fragilidade, nascida de sua escolha arbitrária para a magistratura suprema. Uma fragilidade que se expressou, por exemplo, nas intervenções de Lula da Silva quando de crises com a base aliada e, sobretudo, na correção de rumo da política externa, para obter o consenso da direita tradicional brasileira e do imperialismo.

 

A visita de Obama ao Brasil registrou a nova subalternização voluntária do Brasil, saudada efusivamente pela grande mídia brasileira! O aparato militar estadunidense se comportou no Brasil como se estivesse nos USA. Obama anunciou o ataque à Líbia na capital de país que se pronunciara, ainda que timidamente, contra medidas militares contra aquele país. Uma submissão voluntária que se expressa também no apoio ao movimento de isolamento da Líbia, da Síria, do Irã e mesmo da Venezuela, sempre propiciado pelo imperialismo...

 

Essa política abandona de forma vergonhosa a doutrina tradicional brasileira de defesa da não ingerência externa nos assuntos domésticos das nações. Princípio que não constitui apenas orientação moral, mas ação precaucional contra intervenção nos assuntos e no território do próprio Brasil, grande produtor de matérias-primas, sem condições militares efetivas de defendê-las das grandes nações imperialistas, já que não possui e não pretende possuir a arma atômica.

 

Definitivamente, somos um país eternamente condenado a termos saudades do passado, mesmo quando ele se mostrou pouco generoso! Quem diria que estranharíamos a falta do Amorim, substituído por um patriota da velha escola do que “é bom pros USA é bom pro Brasil!”. Esse lamentável recuo na nossa política externa expressa também o dinamismo do setor primário-exportador e a fragilidade crescente dos segmentos industrialistas brasileiros. Ele ainda dissolve as ilusões sobre o tal de imperialismo ou sub-imperialismo brasileiro, novamente quase em moda!

 

Correio da Cidadania: Mas a nova política internacional do Brasil é apresentada como resultado da sensibilidade com os direitos humanos da senhora Dilma Rousseff. Você acha que a presidente tem de fato honrado um de seus primeiríssimos pronunciamentos?

 

Mario Maestri: Se fosse assim, onde estava essa sensibilidade quando a OTAN arrasou a Líbia, causando dezenas de milhares de mortos? E essa tal sensibilidade, é uma espécie de pomada externa? Parece, pois não serve para ser usada no Brasil! Sem pudor, a senhora presidenta ajoelhou-se e pediu a bênção dos evangélicos e católicos fundamentalistas e mandou, de viva voz, o programa contra a homofobia nas escolas para os quintos do inferno! Na ONU, não disse palavra sobre o combate à homofobia e, agora, patrocina lei federal que dá licença para a agitação homofóbica pelos pastores e sacerdotes nas igrejas!

 

Mais ainda, enquanto a Argentina, o Uruguai, o Peru mandam seus militares torturadores e assassinos para a cadeia, a presidenta cria uma dita Comissão da Verdade sem efeito penal, que institui comitezinho de sete membros para investigar, durante apenas dois anos, as violações aos direitos humanos de quase meio século (1946 a 1988), e não dos vinte anos da ditadura! Tudo para não desagradar os senhores generais – tenentes e capitães da ditadura –, que decidiram até mesmo quem a presidenta deixaria falar na inauguração de seu programa. Uma lei para inglês ver, que procura soterrar a legislação internacional, que por sua vez exige a denúncia e punição dos criminosos de Estado!

 

E se há direitos humanos no Brasil, promovidos por esse governo, decididamente não são para pobres e trabalhadores, sobretudo negros, pois segue solta a execução direta pela polícia de cidadãos delinqüentes e pretensos delinqüentes, sob o aplauso da grande mídia e das nossas classes médias! E, se a senhora presidenta quer fazer, realmente, algo sobre os direitos humanos no país, por que não toma em mãos a questão das prisões brasileiras, onde se encontram apenas populares, definitivamente piores do que os campos de detenção (não os campos de extermínio) da Alemanha nazista?

 

Correio da Cidadania: Qual sua avaliação sobre a proposta de luta contra a pobreza extrema de Dilma Rousseff? É pra valer?

 

Mario Maestri: “Brasil sem Miséria” é outra gargalhada cínica, dada por essa senhora que, em janeiro, em um dos primeiros atos determinantes de seu governo, arbitrou o salário mínimo em 545 reais, substancialmente abaixo do seu valor real, favorecendo a renda do capital, através do aperto da miséria relativa e absoluta de milhões de brasileiros. Sem necessidade de programas, de burocratices, de ONGs, o acréscimo do salário mínimo é o maior distribuidor de riqueza e de dignidade do Brasil, ao entregar ao trabalhador nem que seja uma pequena parte do que lhe é roubado, mensalmente.

 

Um tímido aumento de 30% no salário mínimo realizaria um vasto e efetivo programa de erradicação da miséria, de proteção da velhice, de defesa da infância, de crescimento da alfabetização, de extensão da segurança, de promoção da dignidade do trabalhador etc. O mesmo pronto resultado alcançaria a entrega de terra para os milhões de miseráveis do campo brasileiro. Mas, para isso, haveria que desagradar os patrões (e as patroas!), arrochar um pouquinho o grande capital financeiro, limitar a corrupção generalizada do governo...

 

Mas é claro que a senhora Dilma Rousseff não foi desencantada para concorrer e ser eleita presidenta com os fins de promover tal desatino!

 

Correio da Cidadania: O que pensa, neste contexto, das declarações da presidente quanto à política de tolerância zero contra a corrupção e os “malfeitos”?

 

Mario Maestri: É interessante, a senhora presidenta teme tanto que se revele o caráter generalizado da corrupção no seu governo que procura até mesmo eufemismo para a palavra maldita! Essa declaração é outro sinal da hipocrisia da presidenta, do governo e do mundo político brasileiro, praticamente como um todo. A corrupção corre livre e alegre no Brasil, nos municípios, nos estados e no governo federal, já como forma estrutural de governar e via normal de acumulação de capitais. No passado, tínhamos político transviado; hoje, a carreira política é caminho trilhado conscientemente para apropriar-se dos bens públicos, no melhor dos casos, em forma legal, através dos salários e adereços parlamentares milionários!

 

Os seis ministros que caíram, em menos de um ano, por suspeitas de corrupção ou atos assemelhados, em geral com origens no governo Lula da Silva, foram denunciados pela imprensa, por opositores, por desafetos, por correligionários... Jamais pelo governo, que fez o possível para acobertá-los, em nome da governabilidade. E, convenhamos, se seis foram descobertos, quantos continuam e continuarão na moita?

 

Enquanto alguns poucos políticos são defenestrados e suas arapucas montadas com o dinheiro público desarmadas, milhares de outros seguem tranqüilos seu curso e seus malfeitos! O corruptor e o corrompido sabem que dificilmente serão descobertos e, se o forem, não terão que pagar pelo que fizeram e muito menos devolver o que embolsaram. A corrupção nos governos do Collor e, sobretudo, do FHC foi de proporções abismais. Também quando do mensalão, no governo Lula da Silva, o dinheiro público foi visto caindo como maná dos céus nos bolsos dos políticos aliados. Alguém foi preso? Ou melhor, alguém segue na cadeia? Foi devolvido o apropriado? No Brasil, a corrupção é crime que compensa e paga, mais do que bem!

 

No processo de desconstrução neoliberal do Estado, atualmente sob responsabilidade do PT, seguem sendo distribuídos literalmente bilhões de reais através de ONGs que são, em sua imensa maioria, ferramentas para o enriquecimento dos administradores, além de financiamento dos partidos, consolidação do clientelismo, cabides de emprego... Passam as denúncias e segue o alegre andor da corrupção, atrelado ao dinheiro público fácil, que dizem faltar para a saúde, para a educação, para o lazer, para os transportes, para as infra-estruturas etc.

 

Correio da Cidadania: No final de 2010, você propôs que, no caso de nova recessão e crise econômico-financeira mundial, possivelmente a senhora Dilma Rousseff encontraria “condições piores” do que as de 2008-09. Como avalia a situação de momento, à luz de tal previsão?

 

Mario Maestri: O capital tem no Brasil uma indiscutível vantagem, a de manter multidões de brasileiros na literal escravidão econômica. O que constitui também desvantagem para o país, no caso do recuo do mercado internacional, ao qual estamos crescente e patologicamente atrelados. Definitivamente, não temos consumo interno capaz de sustentar significativamente a atividade econômica no país, no caso de uma forte recessão internacional.

 

A tal de nova classe média brasileira dos governos petistas é literalmente “canção pra boi dormir”, com objetivos políticos e ideológicos. Nos países de capitalismo avançando, onde não raro os produtos e os serviços são mais baratos que no Brasil, ela seria considerada, sem eufemismos, como explorados vivendo abaixo da linha da pobreza. Por outro lado, o brasileiro está endividado como jamais, mesmo não alcançando os níveis de outras nações. E o governo, mais ainda!

 

O Brasil tem hoje sua economia mais vulnerável devido à crescente dependência às exportações primárias e ao enfraquecimento tendencial de nossa indústria, resultado também da obediência cega às exigências dos USA de mantermos nossa moeda super-valorizada e de mantermos a livre flutuação do câmbio. Tivemos um déficit de quase oito bilhões de dólares com os USA no ano passado, enquanto em 2006 tínhamos um superávit de quase dez bilhões. Nossas classes médias seguem a festança de viagens e compras no exterior. Sentimo-nos super-fortes, uma potência, como os ... argentinos dos tempos do Menem. Numa dessas, não terminamos no corralito, mas no brejo!

 

A internacionalização e a desnacionalização de nossa economia avançaram de forma terrível, festejadas diariamente pela grande imprensa e pelo governo. Elas ensejam hemorragia de capitais através de remessas de lucro, de dividendos, de royalties, encoberta pela entrada de capitais atraídos pelos juros milionários, pela compra de empresas, pela aquisição de terras...

 

Com a supervalorização do real, a dívida pública interna brasileira assumiu dimensões monstruosas, em boa parte devido à compra de dólares com dinheiro captado no mercado financeiro, a taxa plena, e investindo – nossas reservas! – em títulos da dívida pública dos USA, com remuneração quase inexistente. A dívida pública interna é hoje de 1,8 trilhão de reais, a metade de todo o PIB do Brasil em 2010! E segue crescendo... As grandes empresas nacionais contraíram igualmente enormes dívidas em dólar no exterior. A dívida externa segue também crescendo...

 

Uma violenta retirada de capitais especulativos do Brasil, exigida por crise externa, e um acréscimo substancial da taxa de juros dos títulos da dívida soberana brasileira, ao igual do que está ocorrendo na Europa, estouram as finanças públicas federais em um bater de pestanas. E aí, vamos finalmente nos transformar em um país do primeiro mundo, como a Espanha, a Itália, privatizando a Petrobrás, a Caixa Econômica Federal, o BNDES, aposentando-nos aos 70 anos, trabalhando 48 horas por semana, sem sábado inglês, perdendo o décimo terceiro, pagando até para ir à cadeia ou chamar os bombeiros!

 

Correio da Cidadania: Como enxergou em 2011 o tratamento da questão ambiental no Brasil pelo novo governo?

 

Mario Maestri: Enquanto as seqüelas das transformações patológicas do clima literalmente se abatem sobre nossas cabeças, os governos nacionais não tomam qualquer medida efetiva contra suas causas. E, em verdade, não podem tomar, pois, na ordem capitalista, não há força capaz de se impor à necessidade da luta sem moral e sem quartel do capital pelo aumento, no aqui e no agora, de sua taxa média de lucro. Sem uma organização poderosa do movimento social, em curto prazo, e reorganização socialista e revolucionária da sociedade, em médio prazo, conheceremos muito logo seqüelas duríssimas e eventualmente irremediáveis da realidade que vivemos!

 

O dito novo Código Florestal faz parte da materialização nacional dessa catástrofe política. O paradoxal é que a flexibilização da lei tem sido imposta ao governo pela sua própria base de sustentação, sob a batuta do comunista certamente mais amado pelos latifundiários e pelo agronegócio de todo o mundo! Parlamentar, diga-se de passagem, premiado pela presidenta com o ministério dos Esportes! Em verdade, tudo segue como dantes, neste triste quartel de Abrantes, onde a administração Lula da Silva literalmente promoveu, há pouco, a legalização da grilagem de milhões de hectares de terras públicas na Amazônia Legal, com as MPs 422 e 458!

 

Desdobramento do império do agronegócio sobre o Brasil, a verdadeira caça aos chamados índios no Mato Grosso do Sul retoma, nesse início de século 21, no governo da senhora Dilma Rousseff (que tem, como vimos, “enorme” sensibilidade com a questão dos direitos humanos), a tradicional e histórica limpeza dos campos, promovida desde a chamada descoberta, para pôr a terra à disposição da exploração mercantil. Em nosso país, onde se mata, sem maiores problemas, trabalhadores, camponeses, mendigos, negros, travestis, delinqüentes, favelados, se mata também índio, com todo o desaire!

 

Correio da Cidadania: Como encara a relação do governo com a Copa do Mundo e as Olimpíadas?

 

Mario Maestri: A Copa do Mundo e as Olimpíadas têm objetivos econômicos, políticos e ideológico, todos eles de conteúdos anti-nacionais e anti-populares. Inicialmente, as obras para aqueles eventos servem para canalizar, de forma doce, imensos recursos públicos em favor de interesses privados e, não raro, da propriedade privada, em sentido estrito. Operações que ocorrerão, é claro, com a tradicional e já esperada participação direta ou indireta dos nossos políticos. Tudo em detrimento das enormes carências da população de saúde, educação, moradia, transporte, lazer...

 

Nesse processo, é literalmente vergonhosa a redução do Estado nacional à situação de verdadeira república das bananeiras, ao submeter-se às exigências draconianas da FIFA, em proveito dos interesses que a integram e representam, com isenções de impostos, direitos de exclusividade, adaptação da legislação brasileira... A possível liberação da venda de bebidas alcoólicas nos estádios, em obediência às exigências das grandes empresas internacionais do setor, será prostituição dos interesses nacionais por parte de nosso mundo político e administrativo sem limites!

 

A grande vantagem dessa mega-operação é que ela se dá com o apoio geral da população, na qual se incute o orgulho nacional por hospedarmos estes grandes eventos! Nessa obra de engambelação nacional, na qual nossa grande mídia desempenha o papel mesquinho e interesseiro de sempre, tem papel central a fixação do interesse da população no eventual atraso das obras em relação ao calendário! Trata-se de nossa versão da corrida espacial estadunidense para chegar à Lua! Hoje sessentões e cinqüentões estadunidenses morando na rua lembram-se ainda comovidos quando a bandeira yankee foi estaqueada na Lua, mesmo impossibilitada de tremular!

 

E, sobretudo, a Copa do Mundo ocorrerá em julho de 2014, literalmente semanas antes das eleições presidenciais! E as Olimpíadas, em 2016, quando das eleições municipais! Já podemos ver Dilma e o da Silva enrolados na bandeira nacional, ao igual que Garrastazu Médici, em 1970! E o mais interessante é que tudo está sendo projetado para anos de crise mundial de impossível avaliação. Ainda que isso seja totalmente indiferente para os que se banquetearão com a Copa e as Olimpíadas, o rombo financeiro pago pelo brasileiro pode ser ainda maior do que o esperado!

 

Correio da Cidadania: Quais as suas expectativas para a esquerda na seqüência do governo Dilma? Há indicativos de que tenha, a seu ver, alguma relevância nas eleições municipais de 2012?

 

Mario Maestri: A tragédia da descrença dos trabalhadores em seu programa é agravada abismalmente pela desorganização geral dos aparatos políticos e sindicais classistas que deveriam facilitar a retomada da confiança do mundo do trabalho em suas forças e soluções. Os partidos ditos de esquerda e de esquerda revolucionária encontram-se há longos anos sem vínculos reais com as lutas sociais, em forte refluxo desde a grande derrota de 1989-90. Em forma geral, com as exceções dos que se esforçam para superar esses percalços, no melhor dos casos, essas organizações foram infiltradas pelo programa de classes e facções sociais médias com oposições não essenciais ao capital. Facções sociais com programas no estilo “um outro mundo é possível”, sempre no contexto do capitalismo.

 

Temos casos clássicos. Na Espanha, o PCE, a Izquierda Unida; em Portugal, o PCP e o Bloco de Esquerda. Apesar da dilaceração vivida pelos trabalhadores e de representarem segmentos sociais não coincidentes, mantêm e fortalecem, em forma mais ou menos acabada, as ilusões da superação da crise no seio do capitalismo e da União Européia. Na Itália, há poucos anos, a Refundação Comunista desorganizou politicamente a resistência dos trabalhadores, participando do governo social-liberal de Dini, ensejando a expulsão, pela primeira vez, desde a II Guerra, da palavra comunista do Parlamento! Na França, o partido com maior consenso eleitoral operário é o Front Nacional, de extrema-direita. De forma geral, com suas diversidades, essas organizações contribuem para o fortalecimento da ordem burguesa, e não para a luta imprescindível pela sua superação e destruição.

 

Expressando, principalmente, segmentos médios e marginalizados da população, mais comumente a direção das ditas organizações de esquerda – grandes, médias, pequenas – vive para manter e ampliar a incorporação ao Estado, através do parlamento, da administração pública, do sindicalismo estatal. São as eleições parlamentares, administrativas, sindicais, estudantis etc. que pautam e organizam a vida desses grupos, na perspectiva de implementação de retoques na ordem vigente e de progressão social individual, e não de organização dos trabalhadores para a difícil luta pela reorganização socialista da sociedade. Essa cooptação, como sabemos, é igualmente extensiva aos movimentos sociais, hoje mais voltados em manter e alimentar suas estruturas e representados, através do Estado, do que dirigir sua ação para a luta pela destruição do Estado.

 

No Brasil, onde a tradição de organização dos trabalhadores é recente e muito limitada, esse processo de fragilização, descaracterização e adesão dos partidos e organizações sociais foi extremamente rápido e profundo. PT, PC do B, PSB lutam com unhas e dentes para seguirem governando em nome do grande capital, apenas propondo que a coisa seria eventualmente pior se as rédeas estivessem nas mãos da oposição burguesa tradicional. Devido a isso, exigem que a população apanhe sem gritar!

 

Mesmo organizações que se proclamam da classe trabalhadora abrem crescentes espaços de colaboração com o grande capital – pluralidade de centrais sindicais; abandono das reivindicações universais por políticas focalizadas, cotas etc.; ataque a Cuba socialista, sob a desculpa de ataque à direção burocrática; apoio à intervenção imperialista na Líbia, na Síria e, muito logo, se necessário for, no Irã; e aliança com partidos burgueses, para vencerem eleições.

 

Sem qualquer ilusão com a rejeição parlamentar, arriscaria dizer que a essa altura pouco importa aos trabalhadores se estes grupos avançarem nas eleições municipais de 2012, o que pode ocorrer em uma ou outra cidade, mas jamais nacionalmente. Eles já são parte e não solução do problema.

 

Correio da Cidadania: Finalmente, e tendo em vista o cenário aqui traçado quanto à crise econômica internacional e nacional e o caráter do governo atual, o que espera, no geral, para o ano de 2012 e para um futuro próximo?

 

Mario Maestri: Através do mundo, expandem-se a descrença na ordem capitalista e as lutas e oposições contra sua ofensiva, sem que se levante programa efetivo de superação de tal situação. As classes trabalhadoras encontram-se desprovidas de organizações sindicais para a defesa de seus direitos elementares e de organizações políticas que facilitem a superação de sua atual fragilidade subjetiva.

 

Creio que seja mais possível que a reversão de tal situação se dê, caso ocorra, a partir de lutas e mobilizações nacionais paradigmáticas do mundo do trabalho, que levantem e apontem o caminho a ser trilhado. Um processo que, para ser vitorioso, terá de se internacionalizar, subjetiva e objetivamente. Tal movimento teria a capacidade de reconstruir os órgãos sindicais e políticos dos trabalhadores, afastando os parasitas e incorporando os grupos, núcleos, indivíduos, ligados aos seus destinos, no necessário processo de recomposição orgânica e programática.

 

Trata-se de processo envolvendo o velho coração do mundo do trabalho – Inglaterra, França, Itália, Espanha, Japão – e os novos países de pujante e crescente industrialização – Coréia do Sul, Índia, China etc. O papel das lutas sociais no Brasil possui uma importância central nesse processo, devido ao enorme peso do país na América do Sul, até hoje exercido, historicamente, como elemento de estabilização da ordem capitalista e imperialista. Mais do que nunca, a emancipação da humanidade encontra-se nas mãos das classes trabalhadoras.

 

Valéria Nader, economista e jornalista, é editora do Correio da Cidadania.

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