Correio da Cidadania

Da Primavera Árabe ao Inverno de Barack Obama

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2011 começou com revoluções populares onde menos se esperava: nos países árabes. As causas não foram rigorosamente as mesmas em todos eles. Em alguns havia péssima situação econômica, desemprego, desigualdades sociais e até fome. Em outros, foi a discriminação social e as injustiças sobre parte da população que pesaram mais. Mas em todos, sem exceção, estava muito claro que a revolta do povo tinha um ponto em comum: ele não mais aceitava ser oprimido por tiranos.


Três das revoltas da Primavera Árabe foram vitoriosas: Tunísia, Egito e Líbia. De todas elas, qual parece estar melhor encaminhada é a da Tunísia. Foi uma rebelião pacífica, na qual o povo se reuniu para exigir incansavelmente a queda do ditador Ben Ali.


E acabou conseguindo. Já realizaram eleições, com a vitória de um partido ligado à Irmandade Muçulmana. Que elegeu o maior número de deputados, por significativa maioria.

A Irmandade Muçulmana é muito forte em todo o Magreb. No começo, era um movimento radical, que pretendia implantar a sharia (mandamentos do Alcorão) como leis dos países. Posta fora da lei em todos os países da região, partiu para a realização de atentados a bomba.

 

Perseguida, adotou métodos mais brandos, embora os governos continuassem prendendo e torturando seus membros. Apesar disso, continuou bem viva e atuante, ganhando prestígio em todo o Magreb.

Nas eleições da Tunísia, seus candidatos apresentaram propostas democráticas e modernas. Deixaram claro que respeitariam os princípios da sharia, mas adaptariam suas regras práticas aos tempos de hoje. Declaração do seu líder, Gamouchi, sintetiza esta postura aberta: “Somos contra a imposição do véu para as mulheres em nome do Islã, mas também somos contra a proibição do véu, em nome da modernidade”.

No Egito, também houve uma revolução de massas pacífica, mas a ditadura Mubarak não se entregou facilmente. Muitos manifestantes, especialmente jovens, foram mortos pelas forças da repressão.

Por fim, o próprio exército acabou convencendo Mubarak a entregar os pontos. Em compensação, os militares assumiram o poder, mesmo sem chancela do povo. Comprometeram-se, no entanto, a entregá-lo aos civis num prazo de seis meses, quando seria eleito um presidente.

Mas isso não foi cumprido. A princípio os militares tentaram forçar um novo calendário eleitoral, que os manteria governando até 2013. Mas o povo voltou à Praça Tahrir, exigindo a saída deles, sem demora. Os militares reduziram seu prazo para junho de 2012. Nem assim o povo abandonou os protestos, reprimidos com violência crescente.

Realizada a primeira parte das eleições parlamentares, com a vitória da Irmandade Muçulmana e grande votação do movimento radical islâmico salafista, um dos principais generais declarou que a votação não exprimia a vontade do povo, cabendo a eles militares indicarem deputados para a Constituinte. Houve desmentidos do presidente da Junta, mas a dúvida ficou.

No momento, o povo continua nas ruas, lutando contra a repressão armada, exigindo a saída da Junta Militar e um governo provisório civil já. Para a maioria da população a Junta pretende continuar governando ainda por muito tempo.

Mubarak foi derrubado, mas seu tipo de governo ameaça voltar.

Na Líbia, houve uma guerra civil, unindo uma vasta gama de forças, desde milícias islâmicas radicais até habitantes das cidades, sem cor política, mas ansiosos pela democracia. Passando por antigos membros da hierarquia do kadafismo.

Por iniciativa da França, Inglaterra e EUA, a ONU aprovou que a OTAN agisse para proteger os civis de ataques do exército de Kadafi. Mas a OTAN extrapolou: bombardeou cidades, canhões, tanques, formações de infantaria, estações de tratamento de água, quartéis, residências etc.

E matou civis. Pelo menos 40, segundo fontes ocidentais, mas provavelmente muito mais, segundo as mesmas fontes.

Os problemas do país são muito sérios, pois as instituições do governo anterior foram destruídas; parte das cidades bombardeadas pela OTAN encontra-se em ruínas; os esquadrões de milicianos não entregaram suas armas, alguns ocupam pontos estratégicos das cidades, como o aeroporto de Trípoli.

As eleições serão realizadas em junho. Até lá, o governo provisório terá muitas dificuldades para dar um mínimo de organização ao país.

 

Nos três outros países onde a Primavera Árabe aconteceu de forma mais clara, Síria, Iêmen e Bahrein, o povo, por enquanto, foi vencido.

Na Síria, onde o governo atirava no povo, a França, a Inglaterra e os EUA ameaçaram repetir o que fizeram na Líbia. Durante as discussões na ONU, Dilma Rousseff apresentou sua doutrina de “responsabilidade de proteger”: dar preferência à diplomacia e a sanções para evitar intervenções militares que, ao defender civis contra governos violentos, promoviam destruições e morte de civis.

Com os vetos anunciados da Rússia e da China, as potências ocidentais, por enquanto, desistiram de novas intervenções. Tendo a Síria aceitado a intervenção pacífica da Liga Árabe, esboça-se uma solução para a violência no país, apesar da denúncia de que o exército do presidente Assad tenha matado 5.000 pessoas (ele sustenta que 1.100 eram soldados do governo).

A revolta do Iêmen foi social e política. O povo exigia o fim de um governo que se eternizava e melhores leis para os trabalhadores. Ali também se verificaram muitas manifestações populares de protesto. O governo atirava no povo, mas as potências ocidentais fecharam os olhos.

No fim, aderiram à revolta grupos oposicionistas. O presidente renunciou. No entanto, a situação ainda está indefinida.

No rico Bahrein, quem se revoltou foi a maioria xiita, discriminada nos salários e nos benefícios sociais. Foi um movimento pacífico: somente reuniões e passeatas. Mas o governo reagiu violentamente, atirando no povo e pedindo o auxílio da vizinha Arábia Saudita. Que atendeu, enviando tanques e 2 mil soldados para sufocar as manifestações.

Muita gente foi morta, presa e torturada. Inclusive médicos, “criminalizados” por tratarem de rebeldes feridos.

Indagado por que os EUA não intervinham no Bahrein, como fizeram na Líbia, o Almirante Mullen, chefe do Estado-Maior combinado das forças armadas, explicou que eram casos diferentes: “o Bahrein é nosso aliado”.

Outros países árabes foram influenciados pela “Primavera”. Marrocos, Jordânia e Argélia anunciaram algumas reformas liberalizantes.

A maioria dos políticos de Israel vê com muito ceticismo o que está acontecendo no mundo árabe.

No Egito, eles perderam Mubarak, com quem mantinham boas relações. Aparentemente, os generais que estão mandando são suscetíveis de serem influenciados pelos EUA e, portanto, continuarem aquela boa amizade.

Acredito que talvez não, pois, mesmo que continuem governando, os generais egípcios não vão querer brigar com o povo, que já manifestou claramente sua posição contrária ao governo de Israel.

A Tunísia e a Líbia votarão sempre a favor dos palestinos, mas, pelo menos a curto prazo, dificilmente tomarão parte em alguma ação anti-Israel fora da diplomacia.

O Bahrein é um satélite estadunidense, sem luz própria, que fará o que o Departamento de Estado dos EUA ordenar.

O Iêmen é um país muito pobre, com muitos problemas com a Al Qaeda, não mudará sua política externa bem comportada e favorável aos EUA.

Resta a Síria. Muitos israelenses aplaudirão a queda de Assad, um bom amigo do Irã e protetor tanto do Hezbollah, quanto do Hamas.

No entanto, para certos experts em Oriente Médio, caindo Assad, seu sucessor poderá ser alguém mais perigoso, capaz até de ações agressivas, que o governo sírio atual evita.

Por sua vez, os EUA têm uma postura ambivalente. No caso do Egito, defenderam Mubarak até quando ele já estava praticamente derrotado. E assim mesmo, fizeram de tudo para emplacar no lugar do “rais” seu vice-presidente, um aliado de Israel, ex-chefe da polícia secreta, que colaborou com as “renditions” do governo Bush, torturando suspeitos de terrorismo.

Vitoriosa a revolução, Obama declarou seu apoio, continuando a fornecer mais de 1 bilhão de dólares em armamentos. E em gás, para a repressão dos manifestantes, conforme denúncia pública dos funcionários da alfândega egípcia.

Além disso, apelou para que os governos do Bahrein e do Iêmen fossem moderados no tratamento dado aos rebeldes. Infelizmente, não foi atendido.

Quanto à Síria, Obama foi diferente: declarou que Assad não representa mais seu povo, portanto deve sair. Kadafi, como se sabe, ele tratou com mísseis e bombas de alto poder de destruição.

Tudo em defesa dos direitos humanos. Mas só nesses países.

 

Para quem esperava que Barack Obama fosse um campeão dos direitos humanos e da justiça em todo o mundo, 2011 foi frustrante.

Obama começou o ano mal, vetando uma resolução do Conselho de Segurança da ONU que considerava ilegais os assentamentos judeus na Palestina. No começo de maio, o presidente conseguiu uma grande vitória: matou Bin Laden.

 

Fortalecido pelo apoio popular registrado nas pesquisas, ele fez um corajoso pronunciamento. Não era possível esperar mais pela independência da Palestina. Tinha que sair logo, com base nas fronteiras de 1967. Palmas pra ele, ouviram-se no mundo inteiro.

 

Mas o Partido Republicano reagiu rápido. Chamou Netanyahu para que viesse voando. E preparou para o líder israelense uma recepção de rei no Congresso americano.

Sob aclamações dos dois partidos, Netanyahu rejeitou a proposta de Obama, taxando-a de ameaçadora à segurança de Israel.

No dia seguinte, uma barragem de declarações e artigos inundaram a mídia americana, enchendo Obama de críticas.

Aterrado, ele voou para um seminário da AIPAC (lobby judaico-americano) e praticamente pediu desculpas. Afirmou que fora mal entendido. Falara em “limites de 1967”, porém, com as alterações geopolíticas que aconteceram depois, ou seja, os assentamentos judaicos. E que tudo isso estaria subordinado à segurança de Israel, valor que ele colocava acima de qualquer outro.


Depois dessa fria, Obama não teve mais coragem de encarar a trinca Israel/ AIPAC/ Congresso. Fez de tudo para evitar que o pedido de reconhecimento da Palestina como Estado independente chegasse à ONU.

 

Primeiro, ameaçou Abbas de interromper as dotações americanas à Margem Oeste (administrada pelo Fatah). Depois, quando os palestinos resistiram, pressionou a Bósnia a não votar pela independência. E conseguiu.

Tentou fazer o mesmo com outros países, obtendo alguns êxitos e algumas derrotas. Mas foi o que bastou para garantir suficientes votos em branco que impediriam os palestinos de conseguirem o número de votos a favor necessários.

De qualquer modo, Obama já havia anunciado seu veto, alegando que a independência só seria justa se fosse resultado de negociações entre as duas partes. Considerando que se fala em negociações desde 1993 e não se andou um único passo, esse veto valia por uma pá de cal no assunto.


Em seguida, tentou impedir que a UNESCO aceitasse a Palestina como país-membro. Desta vez se deu mal. A Palestina venceu e Obama censurou Sarkozy por ter votado a favor. Seu argumento: “isso enfraquece nossa posição”.

 

Fraco, revelou-se Obama neste dezembro. Desta vez, excessivamente. Estando em discussão no Congresso um projeto que permitia detenções de americanos suspeitos de terrorismo em prisões militares, sem julgamento e sem prazo definido, disse que o vetaria.

 

Em seguida, negociou um artigo que permitisse ao presidente excluir quem quisesse dessas penas. E aí, mudou de idéia, não vetará mais esse projeto liberticida, que deixa os cidadãos a mercê do Estado, pois lhe confere poderes ditatoriais. E assim o ano está acabando num verdadeiro inverno para Barack Obama.


Em sentido inverso ao caminho seguido pela Primavera Árabe, os EUA se afastam da democracia, com a conivência do seu presidente.

 

Luiz Eça é jornalista.

Website: www.olharomundo.com.br

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