Correio da Cidadania

Portugal: regressão social e resistências

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Este texto registra algumas impressões e reflexões a partir de minha estadia em Portugal, iniciada em setembro de 2011, período que coincide com o mais concentrado e violento ataque aos direitos dos trabalhadores e avanços civilizacionais historicamente conquistados. Seu objetivo é sistematizar algumas informações que permitam compreender minimamente o que se passa aqui, e também tentar em alguma medida esboçar uma análise, a partir de um olhar estrangeiro.

 

Antecedentes imediatos

 

O Partido Socialista esteve à frente do governo de Portugal entre 2005 e 2011, tendo tido José Sócrates como primeiro-ministro. Seu governo, em linhas gerais, pouco se distinguiu de outros governos tidos como de “centro-esquerda”, mas que na prática implementaram amplamente o programa neoliberal, através de medidas como congelamento de salários, cortes dos gastos sociais e da concretização de inúmeras parcerias público-privadas, com farta transferência de fundos públicos ao grande empresariado. Enfrentou uma dupla oposição: à esquerda, a crítica aos rumos neoliberais impostos em seu governo, e à direita, críticas centradas na pequena política e pautadas na defesa do acirramento das medidas neoliberais. As eleições presidenciais de janeiro de 2011 evidenciaram o enorme desgaste do Partido Socialista, em uma eleição que teve impressionantes 53% de abstenção, a vitória do conservador Cavaco Silva (PSD), com 53% dos votos válidos, e o naufrágio da candidatura de Manuel Alegre (PS), que, mesmo com o inexplicável apoio do Bloco de Esquerda, obteve apenas 19% dos votos (seguiram-se o “independente” Fernando Nobre, com 14%, e o comunista Francisco Lopes, com 7%).

 

Tais resultados estimularam a direita (PSD e CDS-PP) a precipitar a derrubada do governo e forçar eleições antecipadas. A oportunidade se deu em março passado, com a conjunção de dois eventos quase simultâneos: a realização da mobilização de 12 de março, que deu forma ativa ao descontentamento popular e colocou nas ruas centenas de milhares de manifestantes; e a tentativa do governo Sócrates, submisso às imposições do Fundo Monetário Internacional e do Banco Central Europeu, de fazer aprovar no Parlamento mais um pacote de ataques aos direitos dos trabalhadores e de cortes nos gastos sociais (o chamado PEC-4). Este pacote foi derrotado, pois, aos inevitáveis votos contrários da esquerda (BE e PCP), somaram-se os votos do PSD e do CDS-PP, que cinicamente afirmavam que o povo português não agüentaria tantos sacrifícios a mais. Seguiram-se então eleições, nas quais era previsível que o PS seria derrotado. Em plena campanha eleitoral, os três maiores partidos (PSD, PS e CDS-PP) assinaram o “Memorando de Entendimento” com a “troika” (Comissão Européia, Banco Central Europeu e Fundo Monetário Internacional), assumindo metas de cortes de gastos sociais e aumento de impostos, comprometendo-se com inúmeras medidas anti-sociais. Assim, do ponto de vista do capital financeiro, ganhasse quem ganhasse, os rumos do país estavam já decididos…

 

O Governo PSD-CDS-PP

 

A derrota do Partido Socialista foi avassaladora. Mas também a esquerda foi derrotada em seu conjunto, não conseguindo captar a indignação popular crescente. O Partido Social Democrático (PSD), que poderíamos designar como “centro-direita” apenas para diferenciar do direitista e católico Centro Democrático Social / Partido Popular (CDS-PP), obteve 38,6% dos votos, atingindo maioria absoluta em aliança com o CDS-PP, que obteve 11,7%. Juntos atingiram 132 cadeiras, maioria absoluta das 230 totais. O PS caiu de 36% para 28%, restando com apenas 74 parlamentares. O Partido Comunista Português conseguiu interromper a histórica tendência à regressão eleitoral e manteve-se com 7,9% dos votos e, apesar de uma pequena diminuição da votação em números absolutos (5 mil votos a menos), passou de 15 para 16 parlamentares. O Bloco de Esquerda, por sua vez, foi severamente castigado nas urnas e perdeu quase metade de seus parlamentares (caiu de 15 para 8 mandatos). Sua votação em números absolutos caiu pela metade, e em termos percentuais caiu de 9,8% para 5,1%. Certamente parte da explicação deste mal resultado tem relação com o apoio à candidatura presidencial do PS poucos meses antes, o que dificultou a caracterização de uma alternativa à esquerda. Da mesma forma, o slogan de campanha do Bloco (“Esquerda de Confiança”) certamente não contribuiu para afirmar uma alternativa.

 

Um fenômeno igualmente importante foi o crescimento da abstenção, que parece ter se concentrado em eleitores do PS e do Bloco de Esquerda: apenas 59,6% dos eleitores aptos compareceram às urnas, e portanto a “maioria absoluta” da direita foi produzida com o voto de apenas 30% dos eleitores habilitados para votar. Desânimo e desmobilização são parte da explicação desta alta abstenção, mas, mais do que isto, a incapacidade da esquerda em apresentar uma alternativa afirmativa, que se mostrasse capaz de polarizar o debate. Uma eventual aliança entre PCP e BE poderia ter modificado este cenário, mas, embora tenha sido cogitada, ao que parece, não entusiasmou os dirigentes de nenhuma das organizações, e com isto perdeu-se a possibilidade de ao menos tentar fazer com que a eleição não se reduzisse, para a maioria dos portugueses, à escolha entre PS e PSD.

 

Como resultado da vitória eleitoral da direita, constituiu-se o governo Passos Coelho. A área econômica foi integralmente ocupada por tecnocratas neoliberais fundamentalistas, com destaque para o midiático ministro das Finanças Vitor Gaspar. O Ministério dos Negócios Estrangeiros ficou com o ultra-conservador líder do CDS-PP Paulo Portas. Algum destaque tem ainda o ministro da Educação, Nuno Crato, ainda que este se deva às suas idéias pedagógicas extremamente retrógradas e autoritárias. De resto, apenas a reafirmação do discurso tecnocrático e do pensamento único, repetido como mantra.

 

Durante a campanha eleitoral, Passos Coelho afirmou que os portugueses não agüentavam mais sacrifícios e chegou a sugerir que o PS poderia cortar o subsídio de Natal dos funcionários públicos. À frente do governo, não perdeu tempo e foi mais rápido e mais violento do que a maioria de seus críticos poderia esperar. O pretexto mais do que previsível, de que as contas públicas estavam ainda piores do que se imaginava, justificava cortes profundos e inéditos, o que tomou forma mais explícita no anúncio do Orçamento de Estado, verdadeiro pacote de regressão social.

 

A “austeridade” e o inacreditável “Orçamento de Estado”

 

No dia 13 de outubro, em pronunciamento teatral no rádio e televisão, Passos Coelho anunciou as diretrizes gerais do Orçamento de Estado para 2012. Em nome da austeridade e da necessidade de cortar custos, foram anunciadas medidas dramáticas, que em seu conjunto implicam em uma regressão social sem precedentes nos 37 anos de democracia portuguesa (pronunciamento disponível em: http://www.portugal.gov.pt/pt/GC19/PrimeiroMinistro/Intervencoes/Pages/20111013_PM_Int_OE2012.aspx).

 

As duas principais medidas, e que juntas simbolizam a dimensão da regressão social, são os cortes de subsídios e o aumento da jornada de trabalho. Quanto aos cortes, prevêem o seqüestro integral dos subsídios de Natal e de Férias (que correspondem a um 13º e um 14º salários, conquistados historicamente no contexto da Revolução de Abril e das lutas dos trabalhadores que se seguiram a ela) de todos os trabalhadores públicos e de todos os pensionistas com salários a partir de €1.000,00, bem como o seqüestro de um destes subsídios para os trabalhadores e pensionistas que recebem entre € 485,00 e €1.000,00 por mês (o que, dado o custo de vida em Portugal, é um montante irrisório). A segunda medida inserida no Orçamento, e que, mais explicitamente, elucida sua perspectiva, é a imposição do aumento da jornada de trabalho em meia hora por dia sem aumento dos salários. O pretexto é “dar mais competitividade às empresas portuguesas”. Na prática, trata-se de simples e direta intervenção na relação entre trabalho e capital em detrimento do primeiro e benefício do último, decretando-se o aumento da extração de mais valia. Para além destas medidas emblemáticas, propõe-se ainda a extinção de 4 (quatro!) feriados, dois civis e dois religiosos (com a surpreendente concordância da Igreja Católica, que assim aceita dar a “sua” cota de esforço para o “aumento da produção nacional”...

 

Simbolicamente, os feriados civis que devem ser extintos referem-se à República e à Independência... Também são anunciadas inúmeras privatizações (incluindo-se explicitamente a RTP e muito provavelmente a TAP), “cortes muito substanciais nos setores da Saúde e da Educação” (termos do próprio Passos Coelho em seu pronunciamento!), extinção do passe estudantil, manutenção de congelamento dos salários e aumento dos impostos. O Imposto sobre o Valor Agregado para o setor dos restaurantes e bares, por exemplo, passa de 13% para 23%, e os shows e espetáculos artísticos e culturais passam a pagar um imposto de 23%, praticamente inviabilizando a sobrevivência de grande parte dos grupos musicais e teatrais.

 

Todas estas medidas são “provisórias”, ou seja, perdurarão e serão mantidas enquanto a resistência popular não for suficientemente forte para derrotá-las. Do ponto de vista estritamente econômico, são simplesmente ridículas, pois pretendem combater um deficit que só irá aumentar com a recessão e contração econômica que provocarão. Em termos sociais, explica-se como gigantesca transferência de valor do trabalho para o capital. O governo não é nada discreto e alguns ministros falam explicitamente que algumas medidas de “austeridade” devem se prolongar “pelo menos até 2015”. O suposto (e falso) caráter “transitório” e “emergencial” destas medidas também visa dar uma aparência de legalidade para medidas explicitamente inconstitucionais (como o corte dos subsídios e o aumento da jornada de trabalho). O Partido Socialista, por sua vez, desempenhou mais uma vez papel de cumplicidade. Absteve-se da votação do Orçamento, legitimando sua aprovação, com o pretexto de que não poderia ser contra, pois os cortes eram necessários, ressalvando apenas que o caminho escolhido pelo governo era injusto. Tentou, sem sucesso, negociar que fosse cortado “apenas” um dos subsídios dos funcionários públicos e pensionistas. À última hora, avalizou um acordo segundo o qual o limite de salário dos isentos do corte dos subsídios foi elevado de € 485,00 para € 600,00, e a faixa intermediária, sobre a qual incide o corte de apenas um salário, ficou entre € 600,00 e € 1.100,00.

 

Os dramáticos cortes na saúde e educação se inserem em um quadro de já prolongado sucateamento e deterioração das condições de oferecimento dos serviços públicos, onde formas veladas e abertas de privatização são muito presentes, a oferta é insuficiente e a mercantilização generalizada. O caso dos transportes públicos é típico: são caros e sua qualidade piora a olhos vistos, sendo prevista uma reestruturação com extinção de inúmeras linhas e redução da oferta, tanto no transporte urbano (ônibus, metrô e trens) como no transporte ferroviário intermunicipal. Fechando o círculo, há uma acelerada criação de novos pedágios em praticamente todos os troncos rodoviários do país.

 

A esquerda partidária

 

Em meio ao grande desafio representado pelas condições sociais vigentes e agravado pelos novos ataques governamentais, a esquerda partidária mostra-se relativamente frágil e, a despeito de inúmeros esforços e de algumas mobilizações realmente importantes, incapaz de barrar a aprovação do Orçamento ou mesmo de impor alguma modificação relevante. O Bloco de Esquerda vive ainda as dificuldades decorrentes da recente e impactante derrota eleitoral. A despeito de uma diversidade de grupos e posições que convivem em seu interior (alguns dos quais com perspectiva muito mais à esquerda), sua direção é extremamente moderada e insiste no discurso de uma “esquerda de confiança”, que nada contribui para o enfrentamento das medidas anti-sociais. Em especial, a recusa por defender explicitamente o não pagamento da dívida torna seu discurso insuficiente e o faz parecer contraditório, abrindo brechas para a legitimação social das medidas governamentais. O BE ressente-se ainda de uma reduzida organicidade, tendo pouca inserção sindical e limitada influência nos movimentos sociais. Sua base eleitoral, em grande medida concentrada em estratos médios, e sua reduzida organicidade são parte da explicação da regressão eleitoral e incidem como fatores que dificultam a retomada de uma postura ofensiva.

 

O PCP difere-se nitidamente do BE em vários aspectos. A começar por sua organização centralizada que imprime uma ação política uniforme. Também é traço característico sua forte inserção sindical (através da Central Geral dos Trabalhadores de Portugal, CGTP). É muitas vezes criticado por grupos mais à esquerda pela sua defesa da “concertação social” e por uma certa auto-suficiência, que se expressa na pouca disposição em empreender ações conjuntas mais amplas. Embora tenha uma organicidade invejável, uma limitação é sua distribuição regional muito desigual, com fortíssima inserção no Sul do país (em especial no Alentejo) e implantação muito menor no norte, mesmo em cidades importantes como Porto, Coimbra e Aveiro. Dos 16 mandatos obtidos, 8 são provenientes do Sul, 5 de Lisboa e apenas 3 do Norte.

 

A CGTP é ainda uma poderosa estrutura sindical, com implantação nacional e grande capacidade de mobilização, ainda que sua influência seja desigualmente distribuída entre diferentes categorias e setores da classe trabalhadora. É fortemente controlada pelo PCP e consegue se fazer presente no debate político nacional. Uma limitação importante é o fato de que organiza em seu interior fundamentalmente trabalhadores possuidores de contratos de trabalho estável, em um país onde cresce vertiginosamente o número de precarizados, sobretudo no seio da juventude, que permanece assim à margem da estrutura sindical. Em contexto de acirramento da crise social, paradoxalmente, é comum ouvir vozes patronais e governamentais elogiando a CGTP por fazer todas as suas manifestações em absoluta “ordem”, supostamente ao contrário de outros movimentos que se dão sem uma direção centralizada, como o dos “indignados”. Um signo desta prudência e moderação talvez excessiva é a recusa, tal qual o Bloco de Esquerda, em defender explicitamente o não pagamento da dívida, compartilhada pelo PCP e pela CGTP.

 

Gestação de uma “esquerda social”? Geração à Rasca, precarizados, indignados

 

Uma das características mais evidentes do processo social português recente é o acelerado crescimento do trabalho precário, sob as mais diversas conformações legais. A principal delas é o “recibo verde”: os trabalhadores se travestem de figura jurídica e enquanto tal vendem seu trabalho às empresas, na qualidade de “empreendedores” de seu próprio trabalho, perdendo portanto qualquer direito trabalhista ou sindical. Ao adoecerem ou se acidentarem, na condição de “patrões de si mesmo”, assumem sozinhos os “prejuízos”. Tal condição incide contra jovens das classes trabalhadoras, mas também (e sobretudo) contra jovens provenientes dos setores intermediários (em processo muito rápido de empobrecimento). Muitos deles portadores de títulos universitários não vislumbram alternativa de emprego estável e sobrevivem com estágios, trabalhos temporários e outras formas de trabalho precário. Existem em Portugal hoje aproximadamente 800.000 “recibos verdes”, aos quais se somam inúmeros outros trabalhadores submetidos a distintas formas de trabalho precário, temporário e degradante (incluindo-se aí milhares de imigrantes, legais e clandestinos, que sequer podem se converter em “recibos verdes”).

 

Foi sobre este lastro social que se constituiu o movimento da “Geração à Rasca” (algo como “geração dos ferrados”), que se apresenta como “movimento informal, não hierárquico, apartidário, laico e pacífico, que defende o reforço da Democracia em todas as áreas da nossa vida”. A despeito de um programa impreciso e uma organização extremamente frouxa, esta organização conseguiu impulsionar uma gigantesca mobilização por todo país em 12 de março passado, a primeira mobilização de grandes proporções que se realizou sem o protagonismo do PCP e da CGTP. Reunindo entre 300.000 e  500.000 pessoas em todo o país, de acordo com diferentes avaliações (http://geracaoenrascada.wordpress.com/), foi uma mobilização impressionante, mais ainda por ter sido produzida à margem da estrutura sindical e da esquerda partidária. Ainda que o “reforço da democracia” defendido possa ser objeto de interpretações distintas, este movimento coloca em evidência a questão da precarização do trabalho, e assim remete às questões centrais do embate político. Outra expressão do descontentamento foi o acampamento realizado na Praça do Rossio, inicialmente constituído em solidariedade aos espanhóis acampados na Puerta del Sol. Numeroso no início, esvaziou-se gradativamente, dada a limitação da perspectiva de efetivação da democracia direta através de assembléia permanente, sem maiores articulações sociais ou perspectiva de avanço organizativo.

 

Já em outro contexto, e sob o governo Passos Coelho, ocorreu a mobilização internacional dos indignados em 15 de outubro. Em Portugal foi convocada por diversos movimentos e organizações sociais, que constituem desde então a Plataforma 15 de outubro (http://www.15deoutubro.net), que reúne atualmente 38 grupos e organizações. Novamente a manifestação não contou com a participação da CGTP e dos sindicatos. A data coincidiu com o impacto do anúncio das diretrizes do orçamento e, a despeito da pouca divulgação prévia, a participação  foi impressionante, reunindo ao menos 60 mil pessoas em Lisboa e 15 mil no Porto (http://pt.globalvoicesonline.org/2011/10/17/portugal-15opt-fotos-videos/). Para além do seu caráter massivo, ficou evidente o forte aumento da indignação e revolta dos participantes, determinando inclusive alguma confrontação com policiais. As palavras de ordem mesclavam a defesa de uma “democracia real”, a resistência às medidas do orçamento do Estado e a defesa de trabalho e remuneração dignos e estáveis. No final, em frente à Assembléia da República, ocorreu uma grande assembléia popular, que aprovou a defesa da nacionalização da banca, da suspensão do pagamento da dívida externa e da realização de uma greve geral.

 

Dois dias depois, foi anunciada a realização de uma Greve Geral, marcada para 24 de novembro, promovida conjuntamente pela CGTP e pela UGT (União Geral dos Trabalhadores, vinculada ao Partido Socialista e fortemente burocratizada). A data marcada (mais de 40 dias adiante) em certa medida esfriou o clima de mobilização que se vivia e deu ao governo tempo necessário para afinar os argumentos e justificações das medidas impostas, com cumplicidade do PS, em seu mal-ensaiado jogo de cena, e dos grandes meios de comunicação. Neste meio tempo, realizaram-se algumas greves setoriais, de pouco impacto. Sobretudo, neste período consolidou-se a aprovação do Orçamento, tendo sido aprovado em suas linhas gerais, com a abstenção do PS, restando apenas a votação das especificidades.

 

A greve geral realizou-se em 24 de novembro, ainda em clima de revolta e indignação, mas já tendo o impacto das más novas sido em parte assimilado por parte da população. Curiosamente, no mesmo dia da greve, agências de rating rebaixaram a cotação da dívida portuguesa, ao que o governo respondeu que seria então necessária “mais austeridade”... A greve desenvolveu-se de acordo com o esperado, com grande adesão, conseguindo paralisar parcialmente o país. Em especial, a adesão no setor dos transportes foi muito grande, o que foi decisivo para o sucesso da greve. No setor privado, a adesão foi desigual, com maior sucesso em algumas grandes indústrias (como a Autoeuropa) e adesão mais reduzida no comércio e nos serviços. A despeito da “guerra de números”, em termos gerais, a adesão parecer ter sido um pouco superior à greve geral de 24 de novembro de 2010 (a qual se realizou contra o governo do PS e portanto sem a participação da UGT). O balanço oficial da CGTP encontra-se em http://grevegeral.net/

 

Um dado novo e importante foi a realização de mobilização de rua conjuntamente com a realização da greve geral, algo inédito em Portugal. Diversos movimentos, com destaque para a Plataforma 15 de Outubro, convocaram uma marcha em direção à Assembléia da República. Por sua vez, a CGTP marcou outra marcha, mas saindo de ponto diferente. A conjunção entre a mobilização dos trabalhadores sindicalmente organizados e a dos indignados, precarizados, estudantes e trabalhadores diversos seria um desfecho da maior importância, que infelizmente não se efetivou. As marchas não se unificaram e, ao chegarem no Largo de São Bento, sede da Assembléia da República, os trabalhadores vinculados à CGTP fizeram um cordão de isolamento para que as marchas não se misturassem, tendo realizado um rápido ato, dando logo por encerrada a sua atividade e se retirando do local.

 

A marcha convocada pela Plataforma 15 de Outubro reuniu milhares de pessoas, a despeito das dificuldades impostas pela ausência de transporte público. Mesmo com a saída dos integrantes da CGTP, o Largo de São Bento permaneceu por muito tempo completamente lotado, pois boa parte da marcha dos indignados ainda estava a caminho, estendendo-se por vários quarteirões. Pretendia-se realizar então uma Assembléia Popular, com microfone aberto, o que foi inviabilizado pelos eventos que se sucederam. Era visível um forte aparato repressivo, bem como imposição de uma barreira policial em local distinto do habitual, restringindo a área ocupada pelos manifestantes. Não havia qualquer disposição coletiva em ocupar o Parlamento.

 

Ainda assim, algumas grades foram empurradas (há uma polêmica quanto se foi por manifestantes ou por provocadores infiltrados), o que não teria maiores conseqüências, se não houvesse imediatamente uma impressionante e violenta reação policial. Imediatamente, várias centenas de integrantes da tropa de choque apareceram, reagindo com muita violência. Como não havia manifestantes no alto das escadas, expulsaram os jornalistas credenciados, inclusive ferindo levemente alguns. Foram jogadas algumas garrafas, mas a mobilização revelou organização e maturidade suficientes para evitar o conflito buscado pelo aparato regressivo. No balanço final, ficou a demonstração explícita e intimidatória da “mobilização” policial (até então oculta, pois pequena parte do contingente estava visível), dois feridos e sete detidos. A contabilidade oficial registra como feridos apenas um jornalista e um policial militar (que teve alta no mesmo dia e não teve o nome revelado...), embora inúmeros manifestantes tenham sido agredidos. Nas imediações, militantes eram agredidos por policiais à paisana, e um deles foi filmado e identificado. (http://www.youtube.com/watch?feature=player_embedded&v=SPxOg6dvW8g)

 

Lamentavelmente, em entrevista coletiva, ao lado do presidente da UGT, o presidente da CGTP Carvalho da Silva afirmou que “a CGTP não tem nada a ver com isso” e acrescentou que “essas situações não favorecem os trabalhadores”, omitindo-se de fazer qualquer consideração adicional ou menção à estrutura repressiva montada (http://www.ionline.pt/portugal/greve-geral-sindicatos-rejeitam-envolvimento-nos-incidentes-policia-no-parlamento). Em retribuição, o ministro da Administração Miguel Macedo elogiou as centrais sindicais pela “manifestação ordeira”, em contraposição ao que teria se constituído como “ato de provocação” dos indignados (http://www.publico.pt/Política/incidentes-frente-a-ar-foram-actos-de-provocacao-diz-miguel-macedo-1522542). A revelação do vídeo acima mencionado desmonta esta versão, levando a Plataforma 15 de Outubro a realizar uma coletiva de imprensa em frente ao Ministério da Administração, denunciando “a presença de elementos da polícia, não fardados e não identificados, presentes entre os manifestantes, e que incitaram à violência por palavras e ações (ver https://www.facebook.com/notes/15-outubro/14%C2%BA-comunicado-de-imprensa-28-de-novembro-governo-divide-e-criminaliza/224461157625794)

 

Algumas observações provisórias

 

Está em curso em Portugal um avassalador e coordenado ataque às conquistas históricas dos trabalhadores portugueses, em ritmo e dimensão inéditos. O governo Passos Coelho parece decidido a ir às últimas conseqüências e sua equipe parece perfeitamente adequada para atingir este objetivo. Por outro lado, há uma resistência expressiva e crescente, mas (ainda?) não suficientemente forte para impedir a continuidade destes ataques. Em nosso entendimento, a principal limitação que persiste é a dificuldade ou desinteresse em articular as organizações e mobilizações dos trabalhadores sindicalizados com as organizações (frágeis) e mobilizações dos trabalhadores precarizados, estudantes, jovens e os diversos atores sociais que constituem o movimento dos indignados, a “geração à Rasca”, o Movimento Democracia Real, os Precários Inflexíveis e as diversas organizações existentes ou que se constituam neste processo. Não se trata de negar a centralidade da organização e luta da classe trabalhadora “tradicional”, mas de perceber que, para a retomada de sua ofensiva política, é imprescindível organizar e mobilizar os inúmeros trabalhadores submetidos a formas precárias e instáveis de trabalho. Finalizo com algumas impressões, muito em aberto:

 

- no que se refere à esquerda partidária, é fundamental que se realizem atividades conjuntas reunindo suas principais organizações (PCP e BE), o que poderia contribuir para que ambas superem as suas respectivas limitações (que, conforme registrado acima, são muito distintas entre si);

 

- no que se refere às organizações específicas da classe trabalhadora com perspectiva classista (CGTP, portanto, e indiretamente o PCP e as demais organizações que se coloquem sob esta perspectiva, ainda que com inserção muito mais reduzida), a necessidade e urgência de considerar como prioritária a organização dos trabalhadores precarizados em suas distintas conformações, sem o que poderão no máximo sustentar uma luta de resistência, bem ou mal sucedida, mas não terão condições de retomar a necessária e urgente ofensiva socialista;

 

- a necessidade de uma resposta direta e afirmativa ao discurso da inevitabilidade da austeridade, que tenha como ponto central o não pagamento da dívida, sem o que serão facilmente caricaturizadas como discurso vazio e utópico e permanecerão sem resposta frente ao discurso conservador de que não há outra forma de produzir determinado percentual de contenção de gastos, conforme imposto pela troika.

 

É difícil vislumbrar no curto prazo tal salto qualitativo, assim como é difícil imaginar que a revolta e indignação dos precários se converterá em organização efetiva no curto prazo. Mas como está claro que as alternativas para os trabalhadores por dentro da ordem não existem (sequer a alternativa do mal menor...), resta por ora luta defensiva e a resistência e, em seu percurso, a possibilidade de retomar a ofensiva e construir uma nova hegemonia. Oxalá os camaradas portugueses o consigam!

 

 

Gilberto Calil é professor da Universidade Estadual do Oeste do Paraná, Brasil. Pós-Doutorando na Universidade do Porto. Integrante do Grupo de Pesquisa Estado e Poder (Unioeste) e do Grupo de Estudos do Trabalho e dos Conflitos Sociais (Universidade Nova de Lisboa).

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