Correio da Cidadania

Do fundo do poço

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Vira e mexe, volta à baila o tema da descriminalização das drogas. Uns opinam que com o sinal verde e a legalização da venda e do consumo o narcotráfico perderia espaço e a saúde pública cuidaria melhor dos dependentes, a exemplo do que se faz em relação ao alcoolismo.

Outros alegam que a maconha deveria ser liberada, mas não as drogas sintéticas ou estupefacientes como crack, cocaína e ópio.

Não tenho posição formada. Pergunto-me se legalizar o plantio e o comércio da maconha não seria um passo para, mais tarde, se deparar com manifestações pela legalização do tráfico e consumo de cocaína e ecstasy...

Presenciei, em Zurique, no início dos anos 90, a liberação do consumo de drogas no espaço restrito da antiga estação ferroviária de Letten. Ali, sob auspícios da prefeitura, e com todo atendimento de saúde, viciados injetavam cocaína, ópio, heroína, a ponto de o local ficar conhecido como Parque das Agulhas. Em 1995, encerrou-se a experiência. Apesar do confinamento, houve aumento do índice de viciados e da criminalidade.

Nem sempre o debate se pergunta pelas causas da dependência de drogas. É óbvio que não basta tratar apenas dos efeitos. Aliás, em matéria de efeitos, a minha experiência com dependentes, retratada no romance “O Vencedor” (Ática), convenceu-me de que recursos médicos e terapêuticos são importantes, mas nada é tão imprescindível quanto o afeto familiar.

Família que não suporta o comportamento esdrúxulo e anti-social do dependente comete grave erro ao acreditar que a solução reside em interná-lo. Sem dúvida, por vezes isso se faz necessário. Por outras é o comodismo que induz a família a se distanciar, por um período, do parente insuportável. Dificilmente a internação resulta, além de desintoxicação, em abstenção definitiva da droga. Uma vez fora das grades da proteção clínica, o dependente retorna ao vício. Por quê?

Sou de uma geração que, na década de 1960, tinha 20 anos. Geração que injetava utopia na veia e, portanto, não se ligava em drogas. Penso que quanto mais utopia, menos droga. O que não é possível é viver sem sonho. Quem não sonha em mudar a realidade, anseia por modificar ao menos seu próprio estado de consciência diante da realidade que lhe parece pesada e absurda.

Muitos entram na droga pela via do buraco no peito. Falta de afeto, de auto-estima, de sentido na vida. Vão, pois, em busca de algo que, virtualmente, “preencha” o coração.

Assim como a porta de entrada na droga é o desamor, a de saída é obrigatoriamente o amor, o cuidado familiar, o difícil empenho de tratar como normal alguém que obviamente apresenta reações e condutas anômalas.

Do fundo do poço, todo drogado clama por transcender a realidade e a normalidade nas quais se encontra. Todo drogado é um místico em potencial. Todo drogado busca o que a sabedoria das mais antigas filosofias e religiões tanto apregoa (sem que possa ser escutada nessa sociedade de hedonismo consumista): a felicidade é um estado de espírito, e reside no sentido que se imprime à própria vida.

O viciado é tão consciente de que a felicidade se enraíza na mudança do estado de consciência que, não a alcançando pela via do absoluto, se envereda pela do absurdo. Ele sabe que sua felicidade, ainda que momentânea, depende de algo que altere a química do cérebro. Por isso, troca tudo por esse momento de “nirvana”, ainda que infrinja a lei e corra risco de vida.

Devemos, pois, nos perguntar se o debate a respeito da liberação das drogas não carece de ênfase nas causas da dependência química e de como tratá-las. Todos os místicos, de Pitágoras a Buda, de Plotino a João da Cruz, de Teresa de Ávila a Thomas Merton, buscaram ansiosamente isto que uma pessoa apaixonada bem conhece: experimentar o coração ser ocupado por um Outro que o incendeie e arrebate. Esta é a mais promissora das “viagens”. E tem nome: amor.

 

Frei Betto é escritor, autor, em parceria com Marcelo Gleiser e Waldemar Falcão, de “Conversa sobre a fé e a ciência” (Agir), entre outros livros.

http://www.freibetto.org/ 

Twitter: @freibetto


Copyright 2011 – FREI BETTO – Não é permitida a reprodução deste artigo em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização do autor. Assine todos os artigos do escritor e os receberá diretamente em seu e-mail. Contato – MHPAL – Agência Literária (Este endereço de email está sendo protegido de spambots. Você precisa do JavaScript ativado para vê-lo.)

Comentários   

0 #2 utopiasMetis 17-10-2011 20:32
Eu gostei muito do artigo,porque ele toca
a minha sensibilidade: a minha utopia.
Mais de tudo no vinhedo do Senhor (Cristo), conhecido ditao popular. A muita
variedade na "raça humana", tem aqueles
que fujem do planeta para esquecer a pobreza, a familia, as responsabilidades,
a luta, a timidez, querer viver num outro
planeta, ter sensaçoes extremas, necessidade de imitar, booster a sua vontade de viver....A droga é um problema maior dentro de um mundo confrontado a outros grandes problemas maiores:sobpopulaçao, ecologia,consomaçao
violencias, com 9 ou 12 milhares de pessoas ( e milhares de animais tambem)
daqui a pouco. Temos que mudar o conceito
educaçao, vamos ter que educar durante anos na vida de cada pessoa a explorar e
aprender a olhar, sentir,tocar a natureza,os objetos,praticar o trabalho manual e as artes, comer pouco e sadio,
manter o corpo, quebrar com a arrogança
humana de ser uma raça superior, da performance capitalista, do individualismo histerico (agora mais com
a musica nas orelhas e o celular nas maos). Temos que sair desta "civilisaçao"
para uma outra, viva a utopia!!
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0 #1 Utopia x IDEALISMORaymundo Araujo filh 12-10-2011 20:19
Não é simples a discussão sobre drogas. E faço um alerta aos que queiram discutir esta questão, para que não confundam UTOPIA com IDEALISMO

Sou da geração que em 1975 tinha 20 anos e, ao contrário do que diz Frei Beto sobre a sua geração (e não se com acerto pois Monterey , Ilha de White, Woodstock e tantos festivais lissérgicos, assim como a Contra Cultura, foram com jovens que tinham a idade do Frei Beto, inclusive com muitos adeptos no Brasil) pelo menos nos do meu meio social as experiências com drogas foram disseminadas.

O show business dos EUA e Europa, e também no Brasil nas décadas de 20, 30, 40 e 50, hoje sabemos, parece ter sido movido a álccol e cocaína. Tony Benett, em recente depoimento sobre Emy Winihouse, disse que ele cheirava muita cocaína, mas pelo que sei dele, não era um ser anti social ou criminoso. Aliás recomendo que vejam a gravação dele com Emy, de um antigo sucesso que é uma coisa primorosa (arte na veia). Está no you Tube acessando o nome dos dois conjuntamente.

O estranho aqui é que Frei Beto continua diferenciando as drogas legais, como o álcool, das ilegais, não se batendo contra a legalização das bebidas alcóolicas como é liberada hoje. E o cigarro, também não menciona. E são as drogas que mais matam e causam problemas de saúde pública.

Assim, primeiro vamos tentar desmistificar a drogadicção grave, daquela que tem reconhecida menos adesão quantitativa por parte do usuário.

A primeira, e quem nos diz isso são as pesquisas existentes, além da observação comum de qualquer um de nós, é uma minoria de usuários de álcool e outras drogas para alteração do estado de consciência que se transformam em doentes compulsivos, anti-sociais e incapazes para o trabalho, além de criminosos. E tanto menor serão, quanto puderem exercer suas necessidades drogadictas moderadas, sem que se coloquem em risco na compra dos produtos, ou na obtenção própria (plantio ou fabricação do mesmo).

O principal fator da auto moderação do uso de drogas, além do Amor, nomeado pelo Frei Beto, é a realização pessoal, laborativa e social, o que só é possível em, uma sociedade norteada pela justiça social e democracia (não aquela da burguesia, excludente). É a satisfação, e não outra coisa que modera a necessidade do uso de drogas, seja elas quais forem.

Há uns dois ou três anos, assisti na TV Brasil, um depoimento do filósofo Jean Paul Sartre sobre suas experiências com....LSD. Os mesmos que vi condenando Jimmy Hendrix acharam "muito interessante a dissertação do filósofo".

Toulouse Lautrec e Fernando Pessoa, e muitos outros, eram fãs do Absynto com seus 64% de teor alcóolico. A pobre angustiada Emy Winihouse, uma tremenda drogadicta durante anos, morreu limpinha, sem nenhum vestígio de drogas em seu sangue. Morreu de parar de usar drogas, sem a devida orientação, acompanhamento médico e método.

Artistas Cientistas, Políticos e até clérigos sempre fizeram o uso de drogas lícitas e ilícitas, e proporcionalmente à população de usuários, não me parecem que sejam maioria os que cometem delitos, paralisam suas relações afetivas, laborativas e culturais.

O fato de sempre estarmos em contato midiático com casos de usuários de drogas ligado a problemas de várias ordens, é porque só é notícia por usar drogas, quem comete delitos ou se expõem doentiamente de forma que seja explorável pela mídia, tão sem assunto como é a nossa, por opção.

Bem, mas temos os problemas do uso de drogas nas favelas, notadamente o OX, Crack. Ora! Que me desculpe os moralistas, mas o problema ali tem a droga como consequência, e não causa. A origem é a iniquidade social, a falta de responsabilidade do Estado e dos adultos com as crianças e a descrença dos jovens em relação aos seus futuros, visto que sequer sabem que têm direitos e que as suas pobrezas estão diretamente ligadas à riqueza das classes dominantes.

Portanto, sem fazer aqui nenhum tipo de apologia ao uso de drogas (eu seria um irresponsável se o fizesse), quero deixar claro que o começo para podermos discutir o assunto com método são:

1)A a não criminalização do uso de drogas.

2) Entender que todos são iguais perante a Lei, portanto se alguém pode legalmente beber até cair, qualquer um que queira se drogar mas é abstêmio alcoólico deve poder ter acesso a qualquer outro tipo de droga, pois todos são iguais perante à Lei.

3) Aí é a parte mais difícil, que diz respeito aos mecanismos que possibilitarão os usuários a terem acesso a elas.

Tudo isso, pressupondo que sem proteção às crianças e adolescentes, com horário integral na escola, uma poupança ou garantia de ocupação para que comecem a vida adulta com um mínimo de dignidade, da mesma forma quer penso que o Frei Beto ao defender o Direito ao Aborto, o faz pensando em uma política global de acolhimento, respeito, educação e exigências sociais para as candidatas, e não a abertura de açougues humanos.

Eu sugeriria que para o início de uma boa experiência social sobre a permissividade ou não do uso de drogas, que a população toda fosse impedida de consumir as drogas legais álcool e drogas, durante um Mês. Ou que fosse proibido por igual período o uso de açúcar refinado,por exemplo.

Questões complexas não se resolvem com autoritarismos ou simplismo.
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