Correio da Cidadania

Carta a um jovem jornalista “polêmico”

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O monopólio da grande mídia, sobretudo da mídia televisiva, sobre o conteúdo e a forma da informação a que a maioria da população tem acesso, é um dos pilares fundamentais da dominação de classes no contexto da sociedade capitalista contemporânea. Trata-se do meio principal através do qual os valores e as concepções ideológicas necessárias à legitimação de condições sociais extremamente desiguais são produzidos e reproduzidos.

 

Dentro desse quadro, a literatura também sofre a influência de elementos que são ou deveriam ser estranhos à atividade literária em si. Os best-sellers consumidos em massa constituem um exemplo emblemático da literatura tornada mercadoria e, enquanto tal, produzida com o único objetivo de render lucro.

 

Guia politicamente incorreto da História do Brasil, do “jornalista” Leandro Narloch, integra essa categoria. Vendida com a idéia de que se trata de uma obra crítica a respeito da história do Brasil, trata-se, na verdade, de uma peça ímpar de doutrinação ideológica. É o velho conservadorismo, travestido de ciência. Se não fosse o estado de embrutecimento intelectual em que a mídia conservadora nos deixou, essa obra seria motivo de pilhéria. Mas, desgraçadamente, ela encontrou larga aceitação entre a “intelectualidade” brasileira. É necessário, portanto, que olhemos mais a fundo e identifiquemos as motivações por trás da obra.

 

Após pôr termo à leitura do livro, não resisti em escrever algumas linhas com relação às teses nele expostas. Confesso que a tom provocativo produziu em mim tal necessidade. Seja como for, o próprio conteúdo da argumentação em si mesmo é já uma grande provocação; coloca o leitor numa posição de alteridade com relação aos seus próprios pressupostos e – por que não? – pré-conceitos, instando-o a se afastar das suas crenças mais profundas e, com isto, repensá-las à luz da análise de um quadro histórico, social e cultural, bastante mais complexo do que aqueles fatos reificados e simplificados do lugar-comum das crenças preconceituosas, enraizadas por costume e tradição. Nesse tocante, portanto, faço ao Narloch um elogio. O mérito da obra resume-se, essencialmente, nessa vontade crítica (será sincera?), cujo objetivo deve ser desmistificar os fatos históricos como são interpretados pela leitura do senso-comum, esta perspectiva que repousa sobre a tradição. O problema é que o autor não cumpre com seus propósitos, como uma leitura crítica deixa manifesto já prima facie.

 

O processo histórico deve ser compreendido respeitando-se sua complexidade intrínseca, seus movimentos contraditórios e antagonistas. Ao mesmo tempo, deve-se preservar o discurso científico das concepções banais e reducionistas, cujos efeitos podemos ver numa leitura da história que a compreende em termos de relações causa-efeito rígidas e unilaterais, ou de maniqueísmos que opõem uma luta do bem contra o mal etc. Em suma, todo “bom-mocismo”, todo enaltecimento aos heróis, deve ser expurgado de uma análise científica e conseqüente da história. Não é necessário recordarmos que essas criações míticas servem a propósitos e interesses concretos, seja de construir uma identidade nacional, seja de preservar uma tradição ou para legitimar certas condições sócio-históricas contemporâneas. Tais criações são sempre anacronismos, isto é, são frutos de um olhar ao passado através dos olhos do presente, a fim de se encontrar no passado as raízes daquilo que se quer justificar e legitimar no presente.

 

E é só. O livro possui esse mérito tão-somente, mais nada. O resto é um ingente desserviço (não para a classe cujos valores o autor defende) para o intelecto e para o povo. A “obra” não passa de uma coletânea de lugares-comuns e ideologias apologéticas do capitalismo e da ética burguesa, de seus valores e das suas supostas verdades. Daí porque eu inevitavelmente não entendi os objetivos que o autor diz colocar a si mesmo. Ele diz que intenta desconstruir o mito histórico corrente, fundado em certos interesses e valores, mas, precisamente ao contrário, não faz mais do que reiterá-los. O capítulo sobre os comunistas deixa isso escandalosamente patente (é lá que Narloch realmente mostra as garras). Ao invés de desconstruir crenças infundadas o autor as aprofunda, devido, em primeiro lugar, às suas convicções ideológicas, e em segundo porque ele acredita que a história oficial foi escrita, quando não por marxistas, por ideólogos das lutas por igualdade racial, social etc. Assim, Narloch não elimina da história os heróis e os anacronismos de uma análise que procura atribuir valores contemporâneos aos personagens e fatos do passado, antes erige novos heróis – e, conseqüentemente, novos vilões.

 

Com Narloch, somos levados a descobrir que os ingleses foram os grandes mocinhos do século XIX, interessados em transformar o Brasil (e o resto do mundo) em novas nações soberanas e independentes do seu capital e da sua política, e que, do mesmo modo que os ingleses no século XIX, os norte-americanos foram os mocinhos do século XX, lutando pela democracia e pela livre-iniciativa contra a influência sediciosa dos comunistas totalitários. Por outro lado, os grandes vilões teriam sido, junto com os comunistas na política, os... professores de história das décadas de 1960 e 70, ideólogos marxistas-comunistas-leninistas. Pelo que se pode depreender daí, o autor não teve intenção alguma de desmistificar e rever a história oficial, mas simplesmente de reescrevê-la a partir da sua própria perspectiva ideológica. E o mais intrigante desta empresa é que ele parte do pressuposto de que a história oficial é ideologia marxista e não pelo contrário, ideologia burguesa. Se a ideologia burguesa hoje pretende encobrir suas mazelas, seu passado violento e criminoso pretende, portanto, conferir dignidade às minorias excluídas e às classes exploradas por ela, isto não é devido a um real arrependimento, ou a uma visão romântica, mas devido ao fato de que há grande interesse em se manter como dona da moral e da verdade, encobrindo ou legitimando sua história passada através da voz das suas vítimas.

 

Mas é no capítulo dedicado aos comunistas que Narloch se trai, deixando evidentes as motivações ideológicas que o levaram a escrever seu livro. Ele não só reproduz o discurso apologético burguês de que o comunismo é necessariamente mau (mau com “u” mesmo), vide tantas revoluções defraudadas ou degringoladas ao longo século XX, e o capitalismo é necessariamente bom, como também trata a idéia de revolução social (ou seja, de transformação de uma ordem social dada em outra) como uma utopia nociva para o desenvolvimento “pacífico” da sociedade (capitalista). O comunismo é, além disso, anacronicamente comparado ao messianismo religioso – aliás, argumento semeado invariavelmente pela ideologia corrente, e que está na ponta da língua de qualquer defensor da sociedade capitalista. É evidente, para qualquer estudioso mais capacitado de história e de ciências sociais, que esses pontos de vista não estão fundados de modo algum em argumentos científicos, mas na apologia vulgar.

 

Um estudioso sério, ao contrário de um retórico agitador e panegerista da ideologia burguesa (como é o caso de Narloch), dificilmente seria levado a discorrer sobre aquilo que não é de seu conhecimento. Nesse sentido, Narloch não deveria ter se atrevido a falar do marxismo, já que é notório que não sabe nada da matéria em questão. É simplesmente absurdo e inconseqüente o modo como ele traça uma linha direta e reta entre a teoria materialista da história proposta por Marx e os rumos tomados pela antiga URSS durante o período stalinista. Percebe-se rapidamente que o autor desconhece completamente a história do marxismo, assim como das suas conseqüências políticas e sociais históricas (nem sempre coerentes), limitando-se a propalar os chavões recozidos da apologética burguesa. Quando ele fala de Cuba, por exemplo, passa por alto (consciente ou inconscientemente?) o fato de que o país, antes da revolução, havia sido praticamente um entreposto colonial norte-americano desde sua libertação da metrópole espanhola, mantido sobre o tacão da política imperialista que assumia a América Latina como um seu quintal, e que Fulgêncio Batista era um ditador corrupto que transformou a ilha num bordel para magnatas ianques.

 

E se ele continuasse a argumentar, não seria temeridade aventar que, para Narloch, a miséria atual de Cuba é culpa do socialismo e da não-liberdade à “criatividade” da iniciativa privada, e não do embargo criminoso mantido à ilha, cujo isolamento econômico condenou o país a permanecer atrasado como havia sido desde o período colonial.

 

Impressionante mesmo é a maneira absurda pela qual ele justifica a tortura dos militares brasileiros: eles torturaram porque eram inexperientes na luta contra-guerrilheira. Enquanto os comunistas brasileiros eram ineptos, boçais, estúpidos mesmo, protagonistas de uma comédia (como o trapalhão Prestes), os militares eram apenas inexperientes em matéria de contra-insurgência, de sorte que não lhes restou outra opção do que caçar os comunistas mediante delações e tortura (ou seja, tiverem que se rebaixar ao nível imoral dos “terroristas”), posto que eram incapazes de vencer no corpo-a-corpo. O recrudescimento do regime, outrossim, foi responsabilidade dos guerrilheiros, cujas ações comprometiam a “ordem” do país, de modo que os militares no poder não tiverem outra opção do que baixar o AI-5.

 

Enfim, é desnecessário continuar a argumentar. À exceção de algumas passagens interessantes, nas quais Narloch apresenta pesquisas acadêmicas inovadoras (o que, portanto, não é mérito dele), seu livro não passa de um festival de teses descabidas, asserções infundadas e defesas apaixonadas da ideologia burguesa, do livre mercado, do imperialismo dos países desenvolvidos, da inferioridade dos povos ameríndios, da maldade e da incivilidade congênita dos povos explorados. É evidente que não existem vítimas (num sentido simplista) na história, não existem nem heróis, nem vilões. Ninguém pode negar o fato de que, por exemplo, a guerra era parte da estrutura social base da sociedade indígena, assim como o era a escravização para os negros africanos. Mas fechar os olhos para o fato de que a influência externa dos europeus, que entravam à época na fase histórica do capitalismo, desestruturou essas culturas milenares; ignorar que onde penetrava o dinheiro diluíam-se todos os costumes e valores culturais dos povos pré-capitalistas, destruindo todas as suas relações sociais; é não apenas compactuar com uma visão pouco justa da história, como também agir de má-fé. Não haveria de ser de outra maneira, isto é, essas culturas necessariamente seriam apropriadas e subsumiriam sob a nova organização social destina a conquistar o mundo, o capitalismo. Entretanto, não avaliar as conseqüências concretas da modernidade para esses povos, é pretexto para caracterizar todos os homens como maus, sejam eles oprimidos ou opressores, legitimando assim a guerra de todos contra todos. Para esse tipo de pensamento, se sempre haverá opressão e sofrimento na história, é razoável que sejamos nós os que oprimem e não os oprimidos.

 

Em suma, Narloch age de má-fé. Não há absolutamente nada de científico no seu livro. Pelo contrário, tudo o que encontramos nele é um festival de preconceitos típicos de uma elite tão boçal quanto estúpida como o é a elite brasileira. Não é à toa que o livro teve grande aceitação entre os veículos midiáticos empresariais, condição necessária para se tornar um best-seller. Narloch não é um jornalista, mas, como diria Marx, um sicofanta da ordem capitalista, isto é, um mero defensor desta ordem, de onde extrai as migalhas que os grandes burgueses lhe dão. Sua visão pouco correta e altamente deturpada da história, pretendendo-se apoiar em estudos científicos, mas que na verdade põe a nu a verdadeira ideologia burguesa, de fato não poderia ser diferente: um jornalista como Narloch, que trabalhou para a Veja, certamente não pode ter uma visão de mundo distinta da linha editorial dessa execrável revista. Afinal, existe um veículo de comunicação mais patologicamente ideológico do que a Veja? Qualquer um que tenha trabalhado nela não pode ser um historiador ou jornalista sério, mas deve necessariamente resumir-se a um defensor barato do pensamento da direita conservadora e odiosa desse país.

 

João Gabriel Vieira Bordin é cientista social.

Blog: www.laboratoriodialetico.blogspot.com

Comentários   

0 #6 Fraudes intelectuaisMárcio Xavier 07-10-2011 21:46
Ainda estou lendo o volume sobre o Brasil.

A fraude mais primária e deslavada pode ser desmascarada de cara: "metodologia" e "fontes" resumíveis em uma mera coletânea bibliográfica, meticulosamente pinçada.

Insiste em erros grosseiros, tentando passar como generalizações episódios avulsos e folclóricos. Abusa do falseamento em análises de causa com um primarismo digno de ...: Um jornalista panfletário, fingindo-se de historiador.

O finado Paulo Francis prestaria esse desserviço com muito mais qualidade e competência.
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0 #5 RE: Carta a um jovem jornalista “polêmico”Alexandre 05-10-2011 12:09
Li o livro e gostei, me diverti com ele e não o usaria para rever "verdades" históricas, mas para companhia em uma viagem aérea. Agora, ataques aos grandes jornais e revistas é coisa, já sabemos, de petistas magoados com fatos publicados depois de constatados, inclusive pela Justiça, vide mensalão. Vai dizer que não houve? Acho que o João Gabriel é um jornalista frustrado, coitado.
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0 #4 RespostaJoão G. Vieira Bord 03-10-2011 23:34
Francisco, você me pergunta sobre de quem seria o mérito pelas "pesquisas inovadoras". Ora, o mérito é todo dos historiadores que as realizaram, não, obviamente, do Narloch. A questão aqui não é sobre essas pesquisas. Não sou historiador e não tive acesso a elas. A questão aqui é como o Narloch se apropria das e deturpa as problemáticas levantadas pelas pesquisas mais recentes em função das suas concepções político-ideológicas. Nesse sentido, minha crítica é, sim, voltada "ao homem", o que me leva ao comentário do Mauro. Embora se trate de uma crítica "ad hominem", não se deve confundi-la simplesmente com um recurso retórico. Seria pura inocência acreditar que o caráter de um indivíduo pode ser separado das suas atividades cotidianas ou intelectuais. Portanto, deve-se julgar o caráter do autor porque tal constitui um elemento intrínseco ao conteúdo do seu livro. Reafirmo: Narloch é um pseudointelectual estulto e vulgar, e não merece crédito algum. Mas porque acreditar em mim? Pergunte ao próprio: veja o que ele disse após as eleições presidenciais do ano passado: http://veja.abril.com.br/blog/augusto-nunes/feira-livre/sim-eu-tenho-preconceito/
Quanto à sua afirmação acerca da orientação político-ideológica da revista Veja, ela simplesmente não procede, Mauro. Quando se tratou de uma revista de "esquerda"? Desde a sua fundação (em 1968), no auge do recrudescimento da ditadura, ela se empenhou fortemente na criminalização dos "terroristas" de esquerda. Se a Veja falava em democratização, pode ter certeza que não era sem a benção dos militares. Seus editores queriam democracia, mas a partir de um processo de transição dentro da ordem, necessário para afastar o espectro da esquerda. Portanto, a Veja não queria nem mais nem menos do que queriam os Frias e os Mesquitas: uma transição à democracia que mantivesse o status quo, isto é, o domínio do Estado pela burguesia. E note-se que, do mesmo modo que essas duas empresas de informação, se é que podemos chamá-las assim, a Veja só começou a se colocoar mais diretamente contra o regime quando o modelo desenvolvimentista faliu, momento no qual a burguesia começou a se desagradar com a ditadura. Uma opinião pessoal: acho que você tem que começar a repensar o modo como vê as grandes empresas midiáticas, porque pode ter certeza que a última coisa que elas desejam é veicular a "verdade".
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0 #3 GUIA POLÍTICAMENTE INCORRETOFRANCISCO PUCCI 03-10-2011 12:55
Também li esse "guia" (aliás, o termo guia já delata a intenção doutrinadora) com desagrado. Confesso, contudo, que esperava uma crítica mais histórica. O Bordin, em síntese, disse que " À exceção de algumas passagens interessantes, nas quais Narloch apresenta pesquisas acadêmicas inovadoras (o que, portanto, não é mérito dele" (seria de quem?), MAS não gostou daquilo em que o autor não concorda com ele. O livro e a crítica ficaram, portanto, na mesma categoria.
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0 #2 Seu artigo - IIMauro 02-10-2011 20:21
O senhor não gosta da revista VEJA? no final dos anos 60 e na década de 70, a extrema direita colocava censores dentro da redação onde Henrique Caban era o chefe de redação. A "direita" execrava a revista a chamando de "esquerdista". Depois que a esquerda assumiu, veja passou a ser de "direita"...
É pra rir, não é mesmo?
Sempre vi não só a veja como outras revistas apenas como órgãos de informação que procuram sempre mostrar a VERDADE. Não importa se dói à direita ou à esquerda. Revistas e jornais devem SEMPRE ser livres. A imprensa deve ser LIVRE, mesmo que o poder não queira.
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0 #1 Seu artigoMauro 02-10-2011 20:13
Prezado Sr. João,

Li sua "carta à um jovem jornalista polêmico" onde pensei haver alguma crítica argumentativa ao conteúdo do livro do Sr. Narloch. Errei. Em seu texto só há argumento "ad hominen". Que pena. Pensei que houvesse mais substância em sua escrita. Perdi meu tempo lendo.

Mauro
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