Correio da Cidadania

A história barateada e a recuperação da inocência

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No livro Conversas com Woody Allen, é de se notar o seguinte:

 

Eric Lax: Como era a primeira ideia para A rosa púrpura do Cairo?

Woody Allen: Quando tive a ideia, era só um personagem que desce da tela, grandes brincadeiras, mas aí pensei, onde é que isso vai dar? E me veio a ideia: o ator que faz o personagem vem para a cidade. Depois disso, a coisa se abriu feito uma grande flor. A Cecília precisava decidir e escolher a pessoa real, o que era um passo à frente para ela. Infelizmente, nós temos de escolher a realidade, mas no fim ela nos esmaga e decepciona. Minha visão da realidade é que ela sempre foi um lugar triste para estar... mas é o único lugar onde você consegue comida chinesa.

 

O novo filme de Woody Allen, “Meia-noite em Paris” (Midnight in Paris, com roteiro e direção próprios, Espanha/EUA, 2011), retoma e inverte a ideia de A rosa púrpura do Cairo: agora, em vez de um filme, uma cidade (de muitos sonhos), Paris; em vez de uma mulher, um homem, Gil (Owen Wilson), roteirista de filmes de qualidade duvidosa em Hollywood, prestes a terminar seu primeiro romance, ambicioso para realizar todo seu talento e mudar a carreira; mas, em vez de um abandono da realidade maçante... bem, aí é que está o nó, digamos assim.

 

De certa forma, há a retomada da ideia da realidade eivada de sonho e fantasia: em Paris, Gil entra em um automóvel antigo que o leva de volta à Paris dos anos 20, povoada pelos artistas vanguardistas que ele tanto admira: Scott Fitzgerald, Gertrude Stein, Luís Buñuel, Picasso... Nessa viagem ao passado, ele se encontra como escritor, descobre o amor e a si mesmo. Ao mesmo tempo, esse deslocamento espaço-temporal – dos EUA à Europa, dos anos de 2010 aos de 1920 – articula ao menos dois temas importantes: a perda da inocência e a recusa da realidade do presente. Antes de prosseguir, um aviso ao leitor: quem não quiser saber o final do filme, deve parar a leitura.

 

O tempo todo no filme duas perguntas estão interligadas: que relação podemos ter com a cultura? Qual o sentido da permanência do passado? A primeira liga-se à perda da inocência e é um tema caro à literatura escrita nos EUA (lembre-se Henry James, por exemplo). Com efeito, a personagem que deixa os EUA e vai à Europa em busca de conhecimento, história, cultura etc. serve para discutir o que significa ser americano. Essa viagem a Paris (a real ou a idealizada) pode ser entendida como uma busca por legitimidade identitária, a colônia buscando sua identidade cultural retornando às suas raízes na metrópole. Assim como na literatura, também no filme (e já em Vicky Cristina Barcelona, de 2008) vemos uma contumaz crítica à futilidade e superficialidade da sociedade americana, dominada pelo consumismo e pelo utilitarismo: a noiva de Gil, Inez (Rachel McAdams), e sua família só pensam em dinheiro, em satisfação imediata pelo consumo e em manter seu alto padrão de vida. A fala de sua mãe, Helen (Mimi Kennedy), é reveladora dessa atitude: “Barato é barato.” Ela pensa que Gil é barato e só dá valor ao que pode ser comprado caro (uma cadeira antiga, roupas ou restaurantes etc.), mas a relação viva que Gil mantém com a literatura não lhe é cara – antes, parece-lhe excentricidade e esquisitice. Parece, assim, que o esnobe Paul (Michael Sheen) é um espelho de Helen: derramando nomes, conceitos, datas e análises formais, complicadas e equivocadas por todo lugar, a cultura parece ser, para ele, erudição a serviço da vaidade, um grande baú de objetos, um grande estoque de supermercado, do qual ele pode sacar o melhor para cada ocasião, o melhor para capitalizar seu verniz social. Inez, Helen e Paul são personagens que bem ilustram como, na pós-modernidade, a integração da produção estética à produção de mercadorias banaliza toda criatividade, barateia toda inovação. Sabe-se bem o resultado, exaustivamente analisado por Fredric Jameson: tudo é pastiche, tudo é “imitação de estilos mortos, a fala através de todas as máscaras estocadas no museu imaginário de uma cultura que agora se tornou global” (Pós-modernismo: a lógica cultural do capitalismo tardio, p. 45).

 

Gil é o único a perceber o pastiche, mas tarda a perceber o caso entre Paul e Inez. Quando percebe, resolve abandonar definitivamente todo esse mundo. Desse ponto de vista, a perda da inocência pode significar que ele também deixa de lado o “american way of life” e sua ideologia de “winners x losers”. Mas, aqui, surpreende-nos um desvio! É o francês Gilles Deleuze, no belo ensaio “Da superioridade da literatura anglo-americana”, quem afirma: “Fugir não é exatamente viajar, tampouco se mover. Antes de tudo porque há viagens à francesa, históricas demais, culturais e organizadas, onde as pessoas se contentam em transportar seu ‘eu’”. É exatamente isso que faz principalmente Paul no filme; não desprezemos mais essa chama na rinha das vaidades França x EUA.

 

Durante todo o filme fica evidente que Gil não se sente bem em meio a tanto consumismo e vaidade. Ele sonha com uma Paris que não existe mais e, fugindo para ela, numa grande fantasia dentro do filme, encontra tudo o que quer e não tem em seu tempo. A fantasia do filme nos faz perguntar qual a função da arte numa sociedade consumista. É claro que temos de questionar qual o sentido da criação artística em nossas vidas; na verdade, que sentido damos à criação de nossas vidas. As pressões da noiva e da família dela são pelo uso instrumental de sua arte – Gil deve continuar escrevendo roteiros para filmes classe Z e, com isso, ganhar muito dinheiro para sustentar os gostos decorativos de sua noiva. A viagem à Europa, afinal, era só para um breve e profícuo aculturamento, que deveria, no retorno ao lar, se converter em muitos dólares – o ar de sofisticação de um produto local vem das brisas que ele tomou na Europa. Um belo ideal de macho burguês, no fim das contas. Já insistia Hegel, no século XIX: se a arte desistir dos grandes interesses do espírito, tornando-se meramente decorativa e ilustrativa, terá deixado de ser arte. E, com efeito, arte, em sentido pleno, já era para Hegel uma coisa do passado, que tinha atingido seu apogeu entre os gregos, já que o reconhecimento de nós mesmos e de nosso lugar no mundo só para poucos passa pela experiência artística – não à toa Gil sente-se deslocado, pois só ele parece recusar essa morte da arte. De fato, ele se desloca, uma vez no espaço e duplamente no tempo; e também podemos dizer que essa forma de Woody Allen problematizar a relação modernidade x pós-modernidade não dá de barato sua admiração pela história e pela cultura modernista.

 

A viagem ao passado o faz encontrar Adriana (Marion Cotillard), jovem estudante de moda que, na Paris dos anos 20, torna-se amante de Picasso. Juntos, fazem uma viagem ao passado dentro do passado, à Paris dos sonhos de Adriana: a Belle Époque de Toulouse-Lautrec, Paul Gauguin, Degas e tantos outros expressionistas, simbolistas etc. Nesse momento, Gil tem uma revelação e é também então que a articulação espaço-temporal revela seu sentido. Ele recusa a possibilidade de aceitar totalmente a fantasia da fantasia e ficar na Paris da Belle Époque, numa viagem ao passado do passado; reconhece suas ilusões serem impossíveis, decide voltar a 2010 e viver em seu tempo.

 

Ora, isso não significa que, no fim, Gil se torne um esquizofrênico pós-moderno, um historicista fixado em imagens de um passado modernista e irrecuperável. Ao contrário, o filme parece sugerir justamente o oposto. Sua consciência súbita da insuficiência da nostalgia extemporânea não significa uma concessão ao consumismo superficial – antes, renova seu olhar: as ruas de Paris; a diferença de iluminação a marcar as diferenças entre as épocas; e, por fim, as luminosas cenas finais do close em Gabrielle (Léa Seydoux) e do close em Gil, indicam a possibilidade de renovação do olhar (arriscamos dizer que a luz – Paris, cidade luz... – é personagem central do filme; o trailer dá uma breve amostra e pode ser visto aqui: http://www.youtube.com/watch?v=BYRWfS2s2v4 ). Gil rompe com todas as suas relações, abandona a noiva fútil, a rendosa carreira de roteirista medíocre em Hollywood e decide ficar em Paris, dando novo sentido à sua vida – apenas por ter fugido da vida que tinha ele pode agora criar a própria vida.

 

Woody Allen certa vez disse que trazemos em nós mesmos as sementes de nossa própria destruição. “Meia-noite em Paris” acrescenta uma nota otimista a essa afirmação psicanalítica e trágica: também trazemos as sementes de nossa recriação. Descobrimos a terra fértil onde plantá-las ao começarmos uma fuga e um desvio.

 

Cordiais saudações.

 

* * *

AUTO-INDULGÊNCIA: Os leitores devem perdoar duplamente a este escritor. Em primeiro lugar, pela demora em escrever novos textos. Em segundo lugar, pela auto-propaganda: a partir de agosto, será oferecido, na PUC-SP, o curso de extensão “Diálogos entre filosofia, cinema e humanidades: o cinema como construção do conhecimento”, coordenado por este que vos escreve. Mais infos seguindo o link: http://cogeae.pucsp.br/cogeae/curso/4326.

 

Cassiano Terra Rodrigues é professor de filosofia na PUC-SP e sempre que pode busca traçar linhas de fuga.

Comentários   

0 #7 Agradecimentos aos comentáriosCassiano 31-01-2012 13:32
Como nem todos deixaram email para contato, agradeço aqui a todos os comentários, muito grato.
Cordiais e queridas saudações,
cass.
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0 #6 RE: A história barateada e a recuperação da inocênciaAna 26-01-2012 21:33
Cassiano! Seu texto é leve, gostoso de ler, e muito rico nas reflexões. Você traz questões muito boas, que eu não li em nenhum outro lugar. Parabéns!
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0 #5 RE: A história barateada e a recuperação da inocênciaEvandro 20-07-2011 17:29
Talvez pela estética tentasse se traduzir a consiência que ainda não aflorava em muitos no passado. Penso que hoje em dia a arte alheia às questões sociais não pode nem deve ser considerada arte. O conflito existencial já está todo decifrado e o que precisamos é resgatar a ordem das coisas. O cunsumismo é o maior indicador da estupidez humana; é a droga sem efeitos colaterias diretos; compra-se generosidade, sem pagar, a medida da ostentação/corrupção de caráter; faz-se da razão uma escrava servil e cada vez mais pronta a atender à lógica do ter. Ai daquele que discordar; não houve religião no mundo que criasse tal fanatismo, dado à tamanho convertimento. Ou consumo ou religião. Se escolhe os dois é porque a loucura ultrapassou a barreira do suicídio que a realidade contemporânea impõe. "Enquanto tenho para gastar Deus me dá forças para me manter vivo". Essa é a ordem; e que, não nessessáriamente, viver significa existir, fazer parte da história de si mesmo.
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0 #4 A Consciência da ConcretudeIvan Sampaio 19-07-2011 14:51
Gostei muito do texto! Lendo-o agora me veio a idéia de ver as viagens do personagem ao passado enquanto uma tomada de consciência da “concretude” – aqui no sentido hegeliano do termo - do seu tempo presente na cidade de Paris. É como se paulatinamente o personagem fosse se tornando apto a ver no passado de luzes da cidade o seu “vir a ser” do presente.
Nesse sentido concordo que não se trata de um processo de deslumbramento com um passado iluminado. Trata-se muito mais de aprimorar uma percepção de que esse pretérito da cidade foi aquilo que cresceu junto com ela e a tornou precisamente o que ela é no presente.
Ao conseguir fugir, não do presente, mas do senso comum; ao conseguir ver a cidade para além do olha da “consciência natural” o personagem se da conta não da decadência, não do apagar das luzes, mas de como foram esses brilhos do passado que construíram a cidade do presente.
Nesse sentido foi possível, a partir dessa mudança na visão, a produção da identidade real do personagem com a cidade. A partir da consciência da concretude do objeto o sujeito pode romper a sua separação com ele e passa a entender que sua subjetividade é parte do objeto.
Acredito que toda essa percepção culmina na visão otimista do filme justamente com a transposição dessa análise para observar o presente. Creio que a decisão final de ficar e Paris se deve ao processo de identidade gerado pela percepção da concretude da cidade, bem como à súbita percepção que, da mesma forma que o passado era o “vir a ser” presente, o presente é o “vir a ser” futuro.
De certa forma a história não apagou as luzes da cidade, mas as incorporou na cidade mesma. Acho que o final do filme é a esperança do personagem de poder tomar parte do “vir a ser futuro” de Paris, para um desenvolvimento que supera o atual estado de coisas de um tempo que é concretude de um passado, mas que pode vir a ser a concretude de um presente diferente.
Gostei muito do texto. Parabéns ao Prof. Cassiano. E valeu escrever aqui esse comentário e exercitar um pouquinho os conhecimentos do nosso curso de Hegel.

Abraço!
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0 #3 Revista PiauíEstevam Sartal 18-07-2011 21:14
Caro Cassiano,

como sempre, gosto bastante dos seus textos, sempre me fazem pensar em algum ponto que não havia me debruçado ainda!

Gostaria de sugerir como leitura uma resenha que está na Revista Piauí deste mês, o autor faz um paralelo entre a Paris do Woody Allen em "Midnight in Paris" e a Paris do Gerad Depardieu em Mamute. Ele aborda justamente a questão da idealização, que você acaba abordando na sua coluna. Fica como dica!


Abraços,

Estevam
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0 #2 RE: A história barateada e a recuperação da inocênciaérica 18-07-2011 19:27
se o objetivo era levar uma pessoa ao cinema, conseguiu!
gostei muito do otimismo final. lindo fechamento, vamos nos reinventar;)
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0 #1 A história Barateada e a recuperalção da inocênciavaleria mauricio 18-07-2011 18:33
Caro Cassiano
Ao ler o seu comentário,muito interesante,tenho que concordar que,"viajar" pode ser perigoso mas,não devemos desistir de nossos sonhos, embora
paresam utópicos.
Valorizar a "Arte e a cultura",parece difícel em países onde as condições básicas de sbrevivência ainda é precária.
Ainda assim,não só como professora e artista plástica,acho fundamental usar a imaginação e a criatividade,para resolver problemas e até para se distrair dos mesmos.
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