Correio da Cidadania

Uma visita ao inferno dos porões da ditadura argentina

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Mês passado estive em Buenos Aires pela sexta vez. Em pelo menos três delas, tentei fazer a visita guiada ao Espacio para la Memoria – sem sucesso. Parte da dificuldade se devia à minha falta de datas. Em três ocasiões, fui participar de congressos, o que significava pouquíssimo tempo livre. A outra parte se refere à falta de estrutura do próprio espaço: praticamente não havia guias para fazer a visita. Em uma ocasião (acho que em janeiro de 2009), simplesmente não havia visitas, nem alguém com quem se pudesse conversar.

 

Foi difícil não apenas fazer a visita, mas também encontrar um tom para escrever este texto e dar-lhe um título. Tentei fugir de qualquer analogia religiosa ou ficcional, mas não consegui encontrar termo melhor (ou pior) que inferno. Certa vez, defini como "impressionante" um livro chamado La Voluntad. Um ano e meio depois de terminar a

 

Observar o crescimento do uso do lugar por diversas entidades me alegrou. De alguma maneira, dá-se vida a um lugar onde tantas vidas foram destruídas. Mesmo em janeiro, vi prédios aberto e funcionando, pessoas circulando. Gente. Vida.

 

A vida vencendo a morte: entrada de veículos que traziam
os seqüestrados no passado hoje serve ao Espacio para la Memoria.

 

O segundo motivo de alegria é perceber o investimento estatal no lugar – decisão política tomada pelo governo federal. A ocupação do espaço gera necessidade crescente de aporte de recursos públicos – uma eterna e difícil batalha em quase todos os países, quando se trata de lutar por direitos (e não de "salvar" bancos e multinacionais, por exemplo).

 

Um jovem que acompanhou a visita (além dos visitantes, havia três jovens que fazem capacitação para trabalharem como guias) diz que, a cada ano, cresce a demanda por visitas. Ou seja, o investimento na contratação de pessoas é uma resposta não só à luta política dos movimentos de direitos humanos argentinos, mas também ao crescente interesse de visitantes da cidade, do país e do exterior. Sou exemplo vivo: em anos anteriores, tinha a nítida impressão de que era um dos raros interessados em conhecer o lugar. Em janeiro de 2011, fiz uma visita guiada da qual participavam cerca de 25 visitantes (havia brasileiros além de mim), um guia e outros três jovens que trabalham lá.

 

 

Marcada para as 10h, a visita começou umas 10h25 – o que foi ótimo, diga-se de passagem, porque cheguei atrasado e nada perdi – e estendeu-se até umas 13h. Contudo, é bom deixar claro que estou falando de algo muito diferente de um passeio turístico. Tampouco, como destacou o guia, de uma aula de história. Trata-se de um debate político sobre questões do presente.

 

Temas que estão em discussão e em aberto na sociedade argentina – seja pelos processos judiciais em que há réus acusados de crimes contra a humanidade cometidos durante a ditadura, seja pela disputa sobre o que fazer com a ex-ESMA e como financiar seu funcionamento. Trata-se de assumir uma posição clara no presente a respeito do passado recente e da atualidade. E, óbvio, de qual Argentina se quer construir para o futuro.

 

Estas discussões resultam, por exemplo, na decisão do governo argentino de estabelecer uma política de Estado de montar equipes de antropologia forense para investigar valas comuns em cemitérios, buscando identificar vítimas (seqüestrados/desaparecidos/assassinados) da ditadura.

 

 

Após duas horas e meia de visita, os guias e visitantes seguiram discutindo história, política e direitos humanos. O acesso a documentos nessa sala em que se encerrou a visita é um dos pontos altos.

 

Ademais, foram três horas de discussão política interessantíssima e de alto nível sobre direitos humanos – incluindo um bate-papo livre e informal ao final. O conteúdo da visita e, principalmente, da fala de Pablo (o guia) é altamente politizado. Este texto foi construído, em grande parte, com informações fornecidas durante a visita pelo guia e pelo trio que mencionei.

 

Contexto

 

 

O nome oficial atual é Ex-Centro Clandestino de Detención, Tortura y Extermínio "Escuela de Mecánica de la Armada" (ESMA). Mais do que um título extenso, representa o reconhecimento, por parte do Estado argentino, do que houve naquele terreno. Acredito que a verdade nua e crua, pura e simples, dita abertamente, é a única forma que permite a mudança, a superação de problemas do passado, a percepção dos erros, de maneira que equívocos similares possam ser discutidos e combatidos no presente. E evitados no futuro.

 

Mapa do inferno

 

O atual Espacio para la Memoria foi, no passado, a Escuela de Mecánica de la Armada, conhecida pela sigla ESMA. A corajosa decisão de retirar o local das mãos da Marinha e transformá-lo num pólo de organizações de direitos humanos foi tomada pelo governo de Néstor Kirchner e consolidada no seguinte, de Cristina Kirchner. Existiu e existe, porém, uma luta ferrenha dentro do governo e da sociedade argentina sobre o que fazer com os prédios e com quem devem ficar.

 

A medida foi tomada em 2004, em conjunto, pelo presidente Néstor Kirchner e pelo então prefeito de Buenos Aires, Mauricio Ibarra. Um resumo do processo está aqui. (Um dos pontos que me impressionaram na fala do guia é que praticamente toda vez que menciona algo em termos de mudança/renovação da postura do Estado argentino em relação a direitos humanos, passado, ditadura etc., surge o ano de 2003. A meu ver, não é obra do acaso: trata-se do ano em que Néstor Kirchner assume a presidência.)

 

Hoje o espaço sofre com a falta de financiamento promovida pelo prefeito Mauricio Macri. A área é administrada por uma autarquia que combina prefeitura, governo federal e sociedade (no caso, movimentos sociais ligados a direitos humanos). É esta entidade, por exemplo, que contrata as pessoas que trabalham como guias. Funcionam nos prédios da ex-ESMA diversas organizações como Mães da Praça de Maio, UNESCO, H.I.J.O.S, Secretaria de Direitos Humanos do Mercosul, Iniciativa Latinoamericana para la Identificación de Personas Desaparecidas.

 

 

O terreno principal da ex-ESMA tem cerca de 17 hectares e conta com 35 prédios. Possui muitos acessos, está próximo a avenidas largas e a uma autopista por onde circula grande quantidade de gente. Está perto do Aeroparque, de onde partiam os vôos da morte, nos quais os seqüestrados eram jogados vivos no Rio da Prata ou no Oceano Atlântico (aliás, esta foi uma forma de desaparecimento típica da ditadura argentina – raros foram os processos judiciais para julgar e condenar os presos, como ocorreu em uma proporção maior de casos no Brasil).

 

Daí resulta uma contradição: neste local movimentado funcionou um centro clandestino de detenção durante sete anos e meio, mas pouco se falava a respeito, inclusive por conta da propaganda governamental (que contava com apoio e subscrição da mídia gorda), cujo slogan era "no te metás" ("não se meta").

 

A repressão tinha diversos objetivos. Um deles era matar, na sociedade e no povo, a organização, a capacidade de luta, a idéia de tomar os rumos do país nas próprias mãos. Esse esforço implicou o desaparecimento de cerca de 30.000 pessoas entre 1976 e 1983. Sumiram não apenas elas, mas a maior parte do que produziram: textos, poesias, cartas, desenhos, pinturas etc. O esforço para calá-las incluiu a tentativa (na maioria das vezes, vitoriosa) de destruir qualquer forma de manifestação.

 

Inglória da nação: navios de guerra adornam a grade
que cerca o antigo campo de concentração

 

Em tempo: registre-se que, tal qual no Brasil, houve militares que resistiram e foram perseguidos, presos, assassinados, expulsos de seus trabalhos etc. (E continuam sendo perseguidos no presente, como se pode ler nesta matéria de Carta Capital relatando a vergonhosa iniciativa de setores do governo Dilma Rousseff para anular a anistia a cabos da Força Aérea Brasileira afastados em outubro de 1964.) Estes militares eram minoria, mas existiram e cumpriram importante papel histórico. Na Argentina, parte deles se reunia  em uma organização chamada, pelo que anotei, Cemida (Centro de Militares para Democracia).

 

Pablo ressalta que quase todos os seqüestrados pertenciam a organizações: de trabalhadores, de bairro, estudantis, guerrilheiras. Destaca também o papel crucial de França e Estados Unidos na organização da repressão, fornecendo equipamentos, treinamento, know-how, financiamento e apoio político. (Para quem quiser saber a respeito da contribuição do governo dos EUA para a violação sistemática de direitos humanos nas ditaduras do Cone Sul, recomendo a leitura de um livraço chamado A Face Oculta do Terror, escrito pelo jornalista estadunidense A. J. Langguth. No caso da França, os métodos usados na repressão ao movimento de independência da Argélia nos anos 1950 foram exportados por militares franceses na década seguinte.)

 

Em certo momento, um colombiano que participava da visita argumentou que a situação na Colômbia é, há décadas, igual ou pior do que a ocorrida nas ditaduras do Cone Sul. Mas, do ponto de vista formal, existe uma democracia por lá. E, do ponto de vista político, um governo neoliberal que tem apoio dos EUA e da mídia gorda internacional (incluindo a brasileira). Portanto, nada a dizer ou a fazer a respeito, na opinião destes setores.

 

 

As relações entre repressão e interesses econômicos ficam claras a partir do exemplo deste prédio (acima), construído em frente à ex-ESMA, do lado oposto da Avenida del Libertador. Naquele terreno funcionava uma fábrica de lâminas de barbear da empresa Gillette. Ou seja, nos anos neoliberais do governo Menem, fecha-se uma fábrica, demitem-se trabalhadores e constrói-se um prédio de luxo no lugar. Apaga-se, junto, parte da memória, pois operários que pertenciam à comissão de trabalhadores da fábrica desapareceram durante a ditadura.

 

Propaganda do empreendimento imobiliário com o
"Parque da Reconciliação" do lado oposto da avenida.

 

O serviço se completa com a campanha publicitária do empreendimento, que anuncia, do outro lado da rua (onde se situava a ESMA), o Parque da Reconciliação (poético o nome, não?). Veiculada em 1998, evidencia o projeto do governo Menem de pôr abaixo os prédios e construir um parque público, com campos de golfe.

 

A visita da comissão da OEA em 1979

 

Outro exemplo está neste vídeo: http://www.youtube.com/watch?feature=player_embedded&v=9p9a9DlWN8M

De acordo com o guia, em 1979, a ESMA recebeu a visita de uma comissão designada pela Organização dos Estados Americanos (OEA). A comissão produziu um relatório expondo as violações de direitos humanos cometidas pelo regime e fazendo uma série de recomendações – as quais, evidentemente, foram ignoradas. Criou ainda uma oficina internacional para ouvir denúncias de violações. Montava-se uma mesa em praça pública (na Praça de Maio) e os representantes estrangeiros ouviam os depoimentos.

 

Esta oficina foi fundamental para legitimar a existência da figura do desaparecido político – governo, direita, mídia gorda e setores da sociedade diziam que isto "não existia" -, bem como dos familiares de desaparecidos. Tais conceitos adquiriram forma e materialidade nas filas que se formavam, diariamente, com centenas de pessoas que queriam falar. Criou-se um espaço para ouvir dotado de credibilidade e, imediatamente, elas correram para contar suas histórias. Vale lembrar que, naquele momento, espaços como mídia comercial, instituições do Estado e até mesmo confessionários religiosos eram suspeitos e poderiam ajudar a perseguir ou entregar à repressão quem se atrevesse a procurá-los para falar.

 

Pátio traseiro do Cassino de Oficiais, onde os carros desembarcavam os seqüestrados

 

Os preparativos para a visita levaram a mudanças na organização do Cassino de Oficiais, principal prédio de tortura e detenção dentro da ESMA, de maneira a maquiá-lo. Estas modificações tinham um duplo objetivo: negar a existência de um campo de concentração e extermínio e, ao mesmo tempo, deslegitimar as denúncias. Isto se fez, por exemplo, mudando de lugar escadas de alvenaria (destruindo a existente e construindo outra, em outra parte do prédio), levantando paredes para esconder a localização de elevadores etc. Ou seja, alguém relatava que fora levado do subsolo (onde funcionavam as principais salas de tortura) para o terceiro andar (onde ficava o principal cativeiro) de elevador, e os membros da comissão não viam elevador algum no prédio.

 

Durante o período da visita, os presos foram trasladados para uma ilha por um barco que saiu da cidade de Tigre. Ficaram em uma casa de campo para retiros espirituais (!) cedida pela Igreja Católica.

 

Como se pode perceber, o apoio da Igreja Católica argentina à ditadura e à repressão não se deu unicamente em termos discursivos e/ou ideológicos, mas também através de ações materiais bastante concretas. Por outro lado, a Igreja Católica, tanto naquela época quanto hoje, não era um bloco homogêneo. Um momento emocionante para mim, dando conta dos sopros de alívio em meio à repressão, foi quando o guia destacou a importância de Dom Hélder Câmara para a luta social na Argentina, tanto para os de dentro da Igreja quanto para os de fora.

 

Existe humanidade e cotidiano no inferno?

 

Uma das coisas que me deixaram atônito durante a visita foi olhar (por dentro e por fora) o prédio do Cassino dos Oficiais e pensar:

 

Na aparência, um prédio estatal comum.

 

- Puta merda… Fisicamente, aos olhos, é só um prédio público como outro qualquer da América Latina. Parece com várias escolas, faculdades, instalações militares, hospitais, postos de saúde que já vi e/ou onde já estive. A cor bege insossa predominante, as paredes descascando, o chão e as escadas com degraus escorregadios e gastos, os corrimãos que poderiam produzir sorrisos se descidos por crianças a brincar. Mas dá arrepios. Dá vontade de chorar.

 

El Sótano, subsolo onde funcionavam as salas de tortura, é úmido, quente, abafado e tem teto rebaixado em uma das salas (precisei abaixar a cabeça para não bater em vigas de sustentação). Em dado momento, a divisão do espaço em saletas separadas por divisórias de madeira incluía banheiro, biblioteca, refeitório, salas de tortura, salas de oficinas (incluindo uma de falsificação de documentos), enfermaria etc. A distribuição das salas e do espaço do salão foi mudando ao longo do tempo. As obras para "melhorar" o espaço – ou seja, adequá-lo às necessidades impostas pela maneira de operar vigente em cada período – eram realizadas pelos próprios seqüestrados, em regime de trabalho escravo.

 

Jornalismo de ficção do bom e do melhor: reportagem do Clarín
sobre prisioneiros da ESMA apresenta-os como "extremistas que se
entregaram voluntariamente" e se encontram em "processo de recuperação".
O trabalho escravo era parte deste do "processo de cura" imposto
aos raros escolhidos para sobreviver

 

Enquanto uns eram torturados e assassinados, outros eram obrigados, após o período de tortura, a realizar trabalhos, com a perspectiva de sobreviverem. ("Após o período de tortura", evidentemente, é modo de dizer. Calcule o que é ficar preso num lugar e trabalhar de forma escrava ouvindo gritos de companheiros torturados e assassinados nas salas em volta, enquanto, por alguma razão bizarra, você foi escolhido para sobreviver.)

 

A falsificação de documentos, por exemplo, facilitava aos agentes da repressão a entrada em movimentos e organizações sociais. Um agente lotado na ESMA infiltrou-se nas Mães da Praça de Maio e obteve dados que permitiram o seqüestro e assassinato de várias mães que fundaram a associação. Já na enfermaria, aplicavam-se injeções de pentotal nos seqüestrados a serem embarcados nos vôos da morte.

 

Pontilhando o mapa: Centros Clandestinos de la Ciudad de Buenos Aires

 

O grau de bizarrice da ESMA não tem precedentes e comparação mesmo em relação aos demais centros de detenção na Argentina. Isto se explica, em grande parte, porque o lugar funcionava em função do projeto político – com aspirações presidenciais – do almirante Emílio Massera, que morreu em novembro último.

 

O papel aceita qualquer coisa: Massera e seu "Partido para a Democracia Social".
Tal como a daqui, a ditadura de lá pariu um PDS.

 

Houve estudantes secundaristas da ESMA (que faziam curso para se tornarem suboficiais), colocados para montar guarda e para trabalhar como carcereiros e/ou torturadores. Ou seja, o regime obrigou garotos de 17 e 18 anos a cometer crimes como parte da rotina de trabalho e estudo.

 

O terceiro andar do Cassino de Oficiais ficou conhecido como La Capucha, nome que expressa o fato de que todos os prisioneiros eram obrigados a usar capuzes. Calcule o que é passar dias, semanas, meses sem poder dirigir a palavra a outros prisioneiros, sendo chamado por um número e sem ver a luz, um rosto humano ou qualquer cor… Lá atuaram como carcereiros muitos dos jovens estudantes da ESMA.

 

Pais e filhos

 

Pablo informa que houve cerca de 500 crianças raptadas e entregues para adoção durante a ditadura.

 

 

Destas, 102 tiveram sua identidade recuperada. Ou seja, após processo judicial, descobriram e identificaram os verdadeiros pais. Em La Capucha funcionava diariamente… uma maternidade. Estima-se que 35 nenês vieram a este mundo na ESMA. Onze deles já sabem sua identidade. (Sobre a espinhosa questão do reconhecimento, recomendo o belíssimo documentário H.I.J.O.S – El Alma en Dos.)

 

O último caso de identificação entre os 102, relatado pelo guia, tem contornos kafkianos (novamente me pego usando analogias ficcionais e/ou religiosas para descrever a realidade). Trata-se de um advogado da Força Aérea argentina. Lidando com processos judiciais envolvendo a busca de reconhecimento de identidade de filhos de militantes, bateu-lhe a dúvida a respeito de seus próprios pais.

 

Arte e política: escultura na grade em frente à ex-ESMA.

 

Voltemos no tempo. O pai do garoto trabalha na Força Aérea… Por admirá-lo e por causa da criação que tem, o menino decide entrar para a Aeronáutica. Ao lidar com os processos, pensa sobre sua idade e história… Bate a dúvida. Enfrenta o processo de identificação e descobre que aqueles que lhe criaram na verdade não são seus pais. Pior: que o ato de adoção e de troca de identidade pelo qual se integrou a esta família é parte do sistema montado pela repressão. Nasceu na ESMA e sua história é semelhante às dos processos nos quais defende a Aeronáutica…

 

Em meio a relatos como este, e sabendo que o grosso da repressão na ESMA deu-se entre 1976 e 1978, não pude evitar pensar em minha própria história. Durante a própria visita, e nos dias seguintes, me peguei pensando em como deve ser pertencer a uma geração cujos pais foram assassinados em massa por se envolverem em questões políticas – ou por buscarem saber o que houve com familiares.

 

Não pude evitar pensar em como deve ser difícil saber que muitos amigos da sua idade na verdade não são filhos dos pais que os criaram, e que as histórias de vida montadas pelas famílias que os adotaram – as quais, em muitos casos, envolvem amor legítimo e genuíno – são mentiras ou, na melhor das hipóteses, meias-verdades. Ficções.

 

Entre o individual e o coletivo: um interlúdio pessoal

 

Não pude evitar, por fim, pensar em mim mesmo e na minha história: filho de militar (e oficial justamente da Marinha…), nascido em fevereiro de 1978. E se eu tivesse nascido na Argentina e sido criado por pai militar? Teria dúvida sobre paternidade/maternidade em algum momento da minha vida? Como comunicaria isso aos meus pais? Perguntas, especulações que, evidentemente, não tenho como responder. Mas que fazem pensar.

 

Fazem pensar, inclusive, em como vida pessoal e a história política se cruzam, se combinam e influenciam uma à outra de modos raros e, às vezes, improváveis. E como, raramente, temos a oportunidade de parar para refletir sobre tais assuntos. Os caminhos e descaminhos de minha vida pessoal – mas também da sociedade brasileira e de seus governos – fazem com que eu tenha certas dúvidas e questões, para as quais, provavelmente, nunca terei uma resposta razoavelmente precisa, completa e confiável.

 

Na medida em que nenhum governo tomou – e me parece claro que não será o de Dilma Rousseff (PT) a fazê-lo – medidas claras e decisivas para cumprir leis das quais o Brasil é signatário, passar o passado a limpo, identificar e condenar os responsáveis por crimes contra a humanidade, fico sem saber se coube a meu pai alguma parte no latifúndio da repressão, e que papel/parte foi. (Essa dúvida/questão/curiosidade hoje é menor e menos importante do que já foi no passado. Seja como for, a visita à ex-ESMA a fez aflorar.)

 

Mídia corporativa e ditadura: tudo a ver

 

Perguntado por um brasileiro que fazia a visita, o guia informa que a proprietária do Grupo Clarín (principal agregado de empresas a compor o oligopólio da mídia gorda argentina) responde a um processo que já dura nove anos a respeito de dois de seus filhos, supostamente adotados. Em diversos momentos da visita, Pablo destaca o papel crucial dessa mídia argentina na legitimação da repressão. Papel, aliás, que ela continua desempenhando ao calar sobre o tema e ao se posicionar contra a apuração e divulgação da verdade e contra o acerto de contas com o passado. Na maior parte do tempo, simplesmente se cala. Na Argentina e no Brasil.

 

Luta do passado, luta do presente

 

A verdade às claras e em público: nomes e fotos de repressores que atuaram na ESMA

 

Um dos objetivos da conversão do lugar em espaço para a memória é justamente estimular a que se fale sobre o assunto. Trata-se de uma pequena, mas significativa possibilidade de romper o "pacto de silêncio" que se estabeleceu entre os militares e civis que participaram da repressão. Como explica o guia, os militares nada dizem. Os civis (médicos, enfermeiros, cozinheiros, guardas, jornalistas, serventes, técnicos, pedreiros, visitantes, engenheiros, secretárias) que trabalharam ou passaram pelo local, tampouco. Muito menos os setores da classe dominante argentina e internacional que tiveram participação crucial no regime: empresas multinacionais, mídia corporativa, Sociedad Rural Argentina (SRA) (não é só no Brasil que uma entidade do setor agrário representa o que há de mais atrasado, reacionário e antidemocrático na sociedade…).

A verdade às claras e em público (II): a marca d'água do painel é
uma lista em construção dos nomes de parte dos 5 mil seqüestrados que
passaram pela ESMA - dos quais apenas cerca de 200 sobreviveram

 

Na Argentina, há um padre preso por participar da repressão (houve párocos que repassavam aos militares informações ouvidas no confessionário). Há processos contra um médico, um ex-ministro da Economia, um juiz e, como dito antes, a dona de um dos oligopólios de comunicação do país. Ou seja, apuram-se os crimes contra a humanidade cometidos no período e as investigações atingem o andar de cima da sociedade.

 

Pablo informa que está previsto o julgamento de uma causa envolvendo a repressão na ESMA. São réus cerca de 20 dos responsáveis. Pela intensidade dos crimes e pela representatividade do sistema operado na ESMA, este julgamento é crucial para se estabelecer a verdade e a justiça. E tem uma carga simbólica tremenda.

 

Galeria de desonra: réus no processo da ESMA

 

No Brasil, raros são os exemplos de espaços que guardam alguma semelhança com este, como é o caso do Memorial da Resistência, em São Paulo (SP). Em Assunção (Paraguai), há o Museo de las Memorias. Em Montevidéu (Uruguai), o Centro Cultural y Museo de la Memoria (MUME). Tive o privilégio de ir a todos eles e recomendo as visitas.

 

No Uruguai, aliás, o povo teve a oportunidade de votar e decidir não uma, mas duas vezes a respeito da manutenção da lei de anistia. De forma soberana, optou por colocar uma pedra sobre o passado. No Brasil, mal conseguimos discutir o assunto, que fica a cargo dos altos escalões do Estado (Executivo, Legislativo e Judiciário), a quem pouco interessa mexer no assunto.

 

De tudo que a visita me fez pensar, e de todas as diferenças notáveis entre passado e presente, percebo um ponto em comum: aquele continua sendo um lugar de intensa atividade política. Em um dado momento, foi ponto chave de articulação e de prática da repressão (e, obviamente, de resistência por parte das vítimas) e do projeto político de Emilio Massera. Hoje, e cada vez mais, lugar de intensa atividade política de entidades de direitos humanos.

 

Visite

 

 

Para chegar lá: pegar a linha C (azul escura) do metrô em direção a Retiro e descer nessa estação. Trocar para a estação de trem e comprar um bilhete da linha para Tigre. Descer na estação Rivadavia. Em janeiro de 2011, o bilhete custava $ 0,80 (com subsídio do Estado nacional, como informa o verso). Guarde-o, pois não é preciso pagar a volta, mas é necessário inseri-lo na roleta na saída em Retiro. Pode-se também pegar um ônibus que vá toda a vida pela Avenida del Libertador.

 

 

Há várias entradas pela Av. del Libertador. A principal, de onde sai a visita, fica entre os números 8200 e 8300.

 

Esta página explica como solicitar/marcar uma visita.

 

Rafael Fortes é jornalista.

 

Blog: http://rafaelfortes.wordpress.com/

 

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Comentários   

0 #1 Odon Porto de Almeida 04-03-2011 17:12
É de extradinária importância relatos deste tipo,a reviver na memória de sucessivas gerações os crimes de lesa-humanidade praticados em nosso continente, com a orientação e conivência do Império. Revigoram também a luta do Povo Brasileiro em conhecer os crimes dá ditadura instalada em 1964.
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